02 Junho 2025
“O que está entrando em colapso é uma cultura, um sistema de crenças que carregamos há pelo menos dois séculos”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 30-05-2025. A tradução é do Cepat.
“O comportamento de Trump é uma encenação da incerteza”, argumentou o historiador Emmanuel Todd, em sua palestra na Academia de Ciências da Rússia, em 23 de abril, em Moscou. O título de sua conferência foi Antropologia e realismo estratégico nas relações internacionais e aborda questões que já mencionou em seu livro A derrota do Ocidente, ao mesmo tempo em que analisa outras como o governo de Donald Trump, que não apareciam em sua obra.
Vou abordar algumas ideias que podem ser de interesse para os movimentos anticapitalistas, centradas nas consequências da queda inevitável do império. Para ilustrar a profundidade dessa queda, Todd argumenta que não estamos simplesmente diante do fracasso econômico e militar dos Estados Unidos, mas diante de algo maior, que ele define como “um deslocamento das crenças que organizaram a vida social ocidental por várias décadas”. Ele não tem dúvidas de que estamos no início de uma queda dos Estados Unidos, mas indica que “devemos estar preparados para ver coisas muito mais dramáticas”.
Para não reincidir em questões já comentadas presentes em seu último livro, vou me concentrar no que Todd chama de “a revolução Trump”. Como toda revolução, contém uma violência extraordinária que se manifesta, internamente, em “uma luta contra as universidades, contra a teoria de gênero, contra a cultura científica, contra a política de inclusão dos negros nas classes médias estadunidenses, contra o livre comércio e contra a imigração”.
Em sua opinião, tudo isso parece estar ligado a uma derrota prévia, da qual a equipe de Trump estaria plenamente consciente. Por um lado, trata-se de uma evidente derrota econômica dos Estados Unidos, visível, entre muitas outras coisas, na limitada capacidade do complexo militar-industrial estadunidense de estar à altura dos desafios atuais e a notável superação da capacidade aérea da China, evidenciada nos combates entre a Índia e o Paquistão, questões que Todd não aborda.
Mas o tema central não é, em absoluto, a economia, mas o colapso do “sistema de crenças” que animava a superioridade produtiva e industrial ocidental. Por isso, o declínio dos Estados Unidos (e do Ocidente) pode ser tão terrível para os povos, porque a ansiedade que acarreta está levando ao que chama de “niilismo”, um impulso que “pode levar ao desejo de destruir coisas, pessoas e, em última instância, a realidade”. A atitude de Israel em Gaza se encaixa perfeitamente nesta avaliação.
No entanto, e talvez isto seja pior ainda, Todd acredita que o experimento de Trump fracassará devido a “um déficit de pensamento, uma falta de preparação, uma brutalidade, um comportamento impulsivo, irreflexivo”. Por isso, menciona conceitos como “deslocamento” e “atomização” no seio da sociedade estadunidense, atitudes que retroalimentam e aceleram o declínio.
Uma última questão sobre a sua conferência que nos diz respeito diretamente: estamos apenas no início do declínio dos Estados Unidos, que “nos revelará coisas que nem sequer conseguimos imaginar”. Este é o núcleo e o assunto central que devemos assumir, com calma e serenidade. Sem dúvida, refere-se à violência genocida do império e do capital, o que os zapatistas chamam de “quarta guerra mundial” contra os povos.
Em primeiro lugar, penso que análises assim são mais adequadas do que o uso de adjetivos como “fascista” para dar conta da complexidade do momento atual. Quando a esquerda usa e abusa desse conceito, demonstra sua preguiça intelectual, mas, por outro lado, deseja derrotar esse “fascismo”, ainda que ao preço do retorno dos progressistas ao poder.
Em segundo lugar, essas análises nos remetem à necessidade de nos colocarmos no tempo longo, mas sem deixar de resistir ao capitalismo e os poderes. O que já estamos vivendo e o que se avizinha são tão fortes, tão destrutivos para os povos, que não poderemos impedi-los, mesmo que continuemos resistindo. Quando o EZLN diz que resistimos e lutamos para que a criança que nascerá daqui a 120 anos tenha a liberdade de escolher, está colocando as coisas em seus justos termos. O colapso é tão destrutivo que o dia depois da reconstrução será muito longo.
Por último, a crise do capitalismo e do Ocidente está levando consigo o pensamento crítico do modo como o conhecemos hoje, este que definha buscando atalhos, apoiando-se nos caudilhos midiáticos, amante do imediato e das saídas estatais. Como disse Todd, o que está entrando em colapso é uma cultura, um sistema de crenças que carregamos há pelo menos dois séculos. Como a esquerda não consegue ver que faz parte da crise sistêmica, porque perdeu a capacidade de autocrítica, é inevitável que ela entre em colapso com o sistema.
Certamente, os desafios que enfrentamos são enormes. Mas as possibilidades são tão grandes quanto nossos sonhos.