23 Mai 2025
Na retomada da ofensiva contra Gaza, cem mortos por dia e um rastro de barbárie: o Ocidente regride no tempo, rumo a origens que nunca o deixaram, mas foram mascaradas por promessas vazias de democracia, justiça e direitos humanos.
O artigo é de Chris Hedges, publicado por The Chris Hedges Report e reproduzido por Outras Palavras, 22-05-2025. A tradução é de Antonio Martins.
Chris Hedges é jornalista e professor, escreveu 11 livros, incluindo Days of Destruction, Days of Revolt, em parceria com o cartunista Joe Sacco.
Daqui do Cairo até o posto fronteiriço de Rafah, em Gaza, são 320 quilômetros. No deserto árido do norte do Sinai, no Egito, dois mil caminhões estão estacionados — abarrotados de sacos de farinha, reservatórios de água, alimentos enlatados, suprimentos médicos, lonas e combustível. Eles permanecem parados sob um sol implacável, com temperaturas que ultrapassam os 37ºC.
A poucos quilômetros dali, em Gaza, dezenas de homens, mulheres e crianças – sobrevivendo em barracas precárias ou entre os escombros de prédios destruídos – são massacrados diariamente por balas, bombas, mísseis, disparos de tanques, doenças infecciosas e pela arma mais antiga da guerra de cerco: a fome. Uma em cada cinco pessoas enfrenta inanição após quase três meses de bloqueio israelense a alimentos e ajuda humanitária.
O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que lançou uma nova ofensiva e já provoca mais de 100 mortes diárias, declarou que nada impedirá este ataque final, batizado de “Operação Carruagens de Gideon”.
Ele declarou que “não há chance” de Israel parar a guerra, mesmo que os reféns israelenses restantes sejam libertados. “Estamos destruindo cada vez mais casas em Gaza”, afirmou. “Os palestinos não têm para onde voltar.” E acrescentou a parlamentares, numa fala que vazou de um encontro a portas fechadas: “Nosso maior problema é encontrar países que aceitem recebê-los”.
A fronteira de 14 quilômetros entre o Egito e Gaza tornou-se a linha divisória entre o Sul Global e o Norte Global – a demarcação entre um mundo de violência industrial selvagem e a luta desesperada daqueles abandonados pelas nações mais ricas. Ela simboliza o fim de um mundo onde o direito humanitário, as convenções que protegem civis ou os direitos mais básicos e fundamentais importavam. Anuncia-se um pesadelo hobbesiano onde os fortes crucificam os fracos, onde nenhuma atrocidade – incluindo o genocídio – é impedida, onde a raça branca do Norte Global retorna à selvageria e dominação atávicas e desenfreadas que definem o colonialismo e sua longa história de pilhagem e exploração. O Ocidente está regredindo no tempo, rumo a suas origens – que nunca o deixaram, mas que foram mascaradas por promessas vazias de democracia, justiça e direitos humanos.
Os nazistas tornaram-se os bodes expiatórios convenientes para o legado europeu e norte-americano de massacres em massa – como se os genocídios que estes países perpetraram nas Américas, na África e na Índia nunca tivessem acontecido, meras notas de rodapé insignificantes em sua história coletiva.
Na verdade, o genocídio é a moeda corrente na história da dominação ocidental.
Entre 1490 e 1890, a colonização europeia – incluindo atos de genocídio – foi responsável pela morte de até 100 milhões de indígenas, segundo o historiador David E. Stannard. Desde 1950, ocorreram quase duas dezenas de genocídios, incluindo os de Bangladesh, Camboja e Ruanda.
O genocídio em Gaza faz parte de um padrão. É o prenúncio dos genocídios que estão por vir, especialmente com o colapso climático, quando centenas de milhões serão forçados a fugir de secas, incêndios florestais, enchentes, colheitas escassas, Estados falidos e mortes em massa. É uma mensagem ensanguentada que se envia ao resto do mundo: “Nós temos tudo e, se tentarem tirar de nós, nós os mataremos”.
Gaza desmascara a mentira do progresso humano – o mito de que evoluímos moralmente. Apenas as ferramentas mudam. Se antes espancávamos as vítimas até a morte ou as esfacelávamos com espadas largas, hoje lançamos bombas de 900 quilos sobre campos de refugiados, metralhamos famílias com drones militarizados ou as pulverizamos com disparos de tanques, artilharia pesada e mísseis.
Louis-Auguste Blanqui, um socialista do século XIX, rejeitava — ao contrário de quase todos os seus contemporâneos, inclusive Friedrich Hegel e Karl Max, a crença de que a história humana é uma progressão linear rumo à igualdade e a uma moralidade superior. Ele alertava que essa visão positivista absurda é cultivada pelos opressores para enfraquecer os oprimidos.
“Todas as atrocidades dos vencedores, sua longa série de ataques, são friamente transformadas em uma evolução constante e inevitável, como a da natureza… Mas a sequência dos atos humanas não é inevitável como a do universo. Pode ser mudada a qualquer momento”, Blanqui alertou. E prosseguiu: “O avanço científico e tecnológico, longe de ser um exemplo de progresso, pode transformar-se numa arma terrível nas mãos do Capital contra o Trabalho e o Pensamento”.
“Pois a humanidade”, escrevia Blanqui, “nunca é estacionária. Ou avança ou retrocede. Sua marcha progressiva conduz à igualdade. Seu marcha regressiva passa por todos os estágios de privilégio até desembocar na escravidão humana – a palavra final do direito à propriedade.” Ele acrescentava: “Não estou entre os que afirmam que o progresso é inevitável, que a humanidade não pode retroceder”.
A história humana é marcada por longos períodos de esterilidade cultural e repressão brutal. A queda do Império Romano levou à miséria e à opressão na Europa durante a Idade das Trevas, aproximadamente do século VI ao XIII. Houve perda de conhecimentos técnicos, inclusive sobre como construir e manter aquedutos. O empobrecimento cultural e intelectual gerou uma amnésia coletiva. As ideias de estudiosos e artistas da Antiguidade foram apagadas. Não houve recuperação até o século XIV, com o Renascimento – um desenvolvimento possibilitado em grande parte pelo florescimento cultural do Islã, que, ao traduzir Aristóteles para o árabe e por meio de outras conquistas intelectuais, evitou o desaparecimento da sabedoria do passado.
Blanqui conhecia bem os trágicos refluxos da história. Participou de uma série de revoltas francesas, incluindo a tentativa de insurreição armada de maio de 1839, a revolução de 1848 e a Comuna de Paris, o levante socialista que controlou a capital francesa de 18 de março a 28 de maio de 1871. Operários em cidades como Marselha e Lyon tentaram, sem sucesso, organizar comunas similares antes que Paris fosse esmagada militarmente.
Estamos entrando numa nova era das trevas. Esta versão moderna vale-se de ferramentas como vigilância em massa, reconhecimento facial, inteligência artificial, drones, polícia militarizada, a revogação do devido processo legal e das liberdades civis. Faz tudo isso para impor um regime arbitrário, guerras incessantes, insegurança, anarquia e terror – os mesmos denominadores comuns da Idade das Trevas.
Confiar no conto de fadas do progresso humano para nos salvar é rendermo-nos passivamente ao poder despótico. Só a resistência – articulada na mobilização das massas e na ruptura do exercício do poder, especialmente contra genocídios – pode nos salvar.
Campanhas de extermínio em massa liberam os instintos selvagens que permanecem latentes em todos os seres humanos. A sociedade organizada, com suas leis, etiqueta, polícia, prisões e regulamentos – todas as formas de coerção – mantém esses instintos sob controle. Remova esses freios e os seres humanos se transformam, como vemos com os israelenses em Gaza, em animais predadores e assassinos, que se inebriam com a destruição – inclusive de mulheres e crianças. Eu gostaria que isso fosse apenas uma suposição. Não é. É o que testemunhei em todas as guerras que cobri. Quase ninguém está imune.
No final do século XIX, o rei belga Leopoldo ocupou o Congo em nome da civilização ocidental e do combate à escravidão, mas saqueou o país, causando a morte — por doenças, fome e assassinatos — de cerca de 10 milhões de congoleses.
Joseph Conrad retratou essa dicotomia entre quem somos e quem afirmamos ser em seu romance Coração das Trevas e no conto Um Posto Avançado do Progresso.
Em Um Posto Avançado do Progresso, Conrad narra a história de dois comerciantes europeus, Carlier e Kayerts, enviados ao Congo. Eles alegam estar na África para implantar a civilização europeia. O tédio, a rotina opressiva e, sobretudo, a ausência de quaisquer freios externos transformam os dois homens em feras. Traficam escravos em troca de marfim. Brigam por comida e suprimentos cada vez mais escassos. Por fim, Kayerts assassina seu companheiro desarmado, Carlier.
“Eram dois indivíduos perfeitamente insignificantes e incapazes”, escreveu Conrad sobre Kayerts e Carlier, “cuja existência só se torna possível por meio da alta organização das multidões civilizadas. Poucos homens percebem que sua vida, a própria essência de seu caráter, suas capacidades e audácias, são apenas a expressão de sua crença na segurança de seu entorno. A coragem, a compostura, a confiança; as emoções e os princípios; cada pensamento grandioso ou insignificante pertence não ao indivíduo, mas à multidão: à multidão que crê cegamente na força irresistível de suas instituições e moralidade, no poder de sua polícia e de sua opinião. Mas o contato com a selvageria pura e absoluta, com a natureza primitiva e o homem primitivo, traz subitamente um turbilhão profundo ao coração. Ao sentimento de estar isolado entre os seus, à clara percepção da solidão dos próprios pensamentos, das próprias sensações — à negação do habitual, que é seguro – soma-se a afirmação do incomum, que é perigoso; uma sugestão de coisas vagas, incontroláveis e repulsivas, cuja intrusão perturbadora excita a imaginação e testa os nervos civilizados tanto dos tolos quanto dos sábios.
O genocídio em Gaza implodiu os subterfúgios que o Ocidente usa para enganar a si mesmo e tentar enganar os outros. Ele escarnece de todas as virtudes que a civilização eurocêntrica alega defender, inclusive o direito à liberdade de expressão. É um testemunho de sua hipocrisia, crueldade e racismo. Os ocidentais não podem mais — depois de fornecer bilhões em armas e perseguir quem denuncia o genocídio — fazer reivindicações morais a ser levadas a sério. Sua linguagem, de agora em diante, será a linguagem da violência, a linguagem do genocídio, o uivo monstruoso da nova era das trevas, onde poder absoluto, ganância desenfreada e selvageria incontida assombram o mundo.