Órfãos do neoliberalismo progressista e descontentes: o Brasil polarizado e a necessidade imperiosa de criar horizontes de transformação social. Entrevista especial com Sérgio Costa

Desigualdades multidimensionais são uma chave poderosa para explicar a vida política e a polarização brasileira, afirma o pesquisador. Segundo ele, “por trás da polarização estão os movimentos de perdas e ganhos materiais e subjetivos dos diferentes grupos”

Foto: Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 23 Mai 2025

Hostilização e falta de entendimento no campo político brasileiro não são novidade. A radicalidade política e a capilaridade social que tomaram corações e mentes em todo o país, no entanto, indicam a existência de um fenômeno “completamente novo” e “inédito” no Brasil, diz Sérgio Costa na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Autor de Desiguais e divididos: uma interpretação do Brasil polarizado (Todavia, 2025), Sérgio Costa explica a polarização política brasileira a partir das transformações sociais, econômicas e ideológicas do período recente. Para o sociólogo, mudanças nas situações interseccionais estão motivando as escolhas políticas. Depois de um período de crescimento real da renda per capita nos primeiros governos Lula, o que foi acompanhado pela concentração da renda entre os mais ricos, assimetrias nas desigualdades de gênero e raça continuaram a fazer parte da realidade dos brasileiros, juntamente com o crescimento da criminalidade e da sensação de vulnerabilidade. Nesse contexto, pontua, “a direita e particularmente a extrema-direita foram capazes de identificar angústias que eram e são reais, e foram capazes oferecer uma explicação e soluções para tais problemas que, apesar de completamente falaciosas e inócuas, se mostraram convincentes”.

O discurso da extrema-direita, exemplifica, combina “indignação moral com respostas fáceis para os problemas sociais e econômicos que surgiram” e encontra “seus sujeitos entre aqueles que se sentiam perdidos e eram perdedores do neoliberalismo progressista”. Para que a esquerda possa oferecer um horizonte positivo, acompanhado de transformação social, menciona, “o primeiro passo é reconhecer que os sofrimentos e as angústias sociais que a extrema-direita mobiliza são reais”.

Sérgio Costa estará na Unisinos nesta segunda-feira, 26-05-2025, ministrando a conferência Desiguais e divididos: uma interpretação do Brasil polarizado, tema de seu mais recente livro. O evento é promovido pela Escola de Humanidades e pelo PPG Educação Unisinos e ocorrerá no Auditório da Biblioteca Unisinos, às 19h.

Sérgio Costa (Foto: José Amaral | Divulgação)

Sérgio Costa é graduado em Economia e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutor em Sociologia pela Universidade Livre de Berlim. É professor titular de sociologia do Instituto de Estudos Latino-americanos e do Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Berlim desde 2008.

Confira a entrevista.

IHU – Em que aspectos o Brasil é um país desigual e dividido?

Sérgio Costa – Desigual, o Brasil sempre foi. As desigualdades no Brasil são ubíquas, isto é, atravessam todas as esferas sociais, do cotidiano às instituições e envolvem distintas dimensões ou vetores: diferenças de renda e riqueza, assimetrias políticas, desigualdades ambientais, existenciais etc. Além disso, essas desigualdades são marcadamente interseccionais, ou seja, é impossível separar as desigualdades referentes a classes sociais daquelas que dizem respeito a gênero, raça, etnicidade, região etc. Por sua vez, a divisão do país, no sentido da formação de campos políticos que não se entendem e se hostilizam permanentemente e não apenas na época de eleições, mesmo não sendo um fenômeno completamente novo, adquire hoje uma radicalidade e um grau de capilaridade social que são inéditos na história do país.

IHU – A que atribui a polarização política no Brasil? Qual é a origem desse fenômeno?

Sérgio Costa – A polarização política contemporânea, como se sabe, não é algo que ocorre só no Brasil; é um fenômeno global. Ela tem uma origem tripla: social, econômica e ideológica.

Origem social

Do ponto de vista social, a transformação dos padrões de família, do mundo do trabalho e das formas culturais de vida, ao mesmo tempo que permitiu a emergência e afirmação de novas subjetividades (mulheres e minorias mais empoderadas, multiplicação das orientações de sexualidade e gênero etc.), levou a uma relativa perda de legitimação de formas conhecidas de se posicionar no mundo, como é o caso da masculinidade sexista e misógina ou da branquitude abertamente racista ou apenas “inocente”, isto é, a branquitude incapaz de refletir sobre os privilégios de que desfruta.

Origem econômica

Do ponto de vista econômico, o que Nancy Fraser chamou de neoliberalismo progressista, qual seja, a combinação entre capitalismo espoliador e políticas sociais pró-mercado, como as políticas de transferência de renda para os mais pobres, não se mostrou capaz de gerar bem-estar duradouro para as massas trabalhadoras. Serviu para aumentar as possibilidades e as expectativas de consumo das famílias sem permitir, ao mesmo tempo, que estas pudessem ter acesso adequado a serviços básicos de qualidade: moradia, transporte, saúde, educação. O ciclo do neoliberalismo progressista, que em alguns países ainda persiste, gerou também órfãos e descontentes.

Origem ideológica

Por último, a raiz ideológica da polarização diz respeito à ascensão da extrema-direita capaz de articular um discurso de plástico e escorregadio. Combinando indignação moral com respostas fáceis para os problemas sociais e econômicos que surgiram, este discurso da direita e particularmente da extrema-direita foi capaz de encontrar seus sujeitos entre aqueles que se sentiam perdidos e eram perdedores do neoliberalismo progressista. Segundo esta cartilha, a corrupção não é um problema sistêmico situado na interseção entre economia e política, mas fruto da degeneração moral dos governantes de esquerda. A má qualidade de ensino não é fruto da falta de investimentos e da privatização da educação, mas advém da instrumentalização ideológica das escolas pelos marxistas culturais. Na mesma chave, os problemas de segurança seriam produto da defesa pela esquerda dos direitos humanos dos bandidos e por aí vai.

Ou seja, a direita e particularmente a extrema-direita foram capazes de identificar angústias que eram e são reais, e foram capazes oferecer uma explicação e soluções para tais problemas que, apesar de completamente falaciosas e inócuas, se mostraram convincentes.

IHU – O que está por trás da polarização? Diria que ela é sintoma de algo que está além da política?

Sérgio Costa – Por trás da polarização estão os movimentos de perdas e ganhos materiais e subjetivos dos diferentes grupos. A história brasileira recente permite descrever esses movimentos de maneira muito ilustrativa. O ciclo que vai de 2003 a 2014 pode ser descrito como um momento de desordenamento das hierarquias sociais: pobres se tornam um pouco menos pobres; negros, mulheres, indígenas se tornam um pouco menos desempoderados, e a classe média estabelecida branca perde parte de seus privilégios e o quase-monopólio de uso de alguns bens e serviços (carro, empregada doméstica, uso de aviões e aeroportos, acesso à universidade). Para os muito ricos, contudo, nada muda; eles continuam aumentando seu quinhão na renda e na riqueza.

Com o avanço da crise econômica a partir de 2015 e, sobretudo, depois do impeachment de Dilma Rousseff e da guinada à direita com Temer e Bolsonaro, o ciclo que se segue é um período de reordenamento das hierarquias sociais: pobres se tornam outra vez mais pobres, mulheres e minorias se tornam outra vez menos empoderadas e a classe média estabelecida consegue reaver parte de seus privilégios. Por fim, o período que começa em 2023, no Lula 3, anunciava um novo ciclo de desordenamento das hierarquias que, não obstante, não tem se verificado na magnitude esperada. Mesmo em seus âmbitos mais exitosos, como a redução da pobreza, o desordenamento das hierarquias vem se dando a uma velocidade muito menor do que os eleitores de Lula contavam.

O confronto de opiniões e posicionamentos entre os perdedores e ganhadores de cada um desses ciclos definem os termos, isto é, os polos, da polarização política.

IHU – Qual é a oferta da extrema-direita para o Brasil e por que ela se tornou atrativa entre uma parte significativa da sociedade? Por que a extrema-direita de Bolsonaro ganha corações e mentes no país?

Sérgio Costa – Do ponto de vista de seus conteúdos, a extrema-direita foi capaz de identificar e nomear preocupações e sofrimentos sociais reais: corrupção, criminalidade, angústias com relação às transformações fortes dos mundos da vida (empoderamento de mulheres, sexualidades múltiplas, destradicionalização das relações de família etc.), expectativas frustradas de ascensão social etc. A extrema-direita logrou também criar explicações e supostas soluções muito simples para tais problemas que são altamente complexos, sugerindo, por exemplo, que a restauração dos modelos tradicionais de família, a valorização do mérito individual, a abolição dos direitos humanos para criminosos eram a saída para todos os impasses.

Adicionalmente, esse discurso cria outra vez um lugar no mundo e uma posição de poder para quem havia perdido materialmente e subjetivamente com as transformações observadas. Por exemplo, para um produtor rural ou dono de uma pequena empresa que já não pode mais humilhar mulheres, seus empregados ou negros com a mesma falta de cerimônia que fazia até há algumas décadas, repostar um meme que mostra gays, mulheres ou pessoas mais pobres que eles em situações constrangedoras, mesmo que isso pareça incompreensível para nós, pode ter algo de catártico, de libertador.

IHU – Quais são as transformações mais significativas ocorridas no Brasil nos últimos 20 anos? Como era o país nos anos 2000 e como é hoje?

Sérgio Costa – Para os termos do argumento que o livro procura desenvolver, a saber que há uma relação contingente entre mudanças nas situações interseccionais e as escolhas políticas, as principais mudanças que eu destacaria são:

i) há no período um crescimento significativo da renda per capita real que é, contudo, acompanhado de um crescimento brutal da concentração de renda e riqueza nas mãos dos milionários, o 1% mais rico;

ii) apesar das desigualdades brutais ainda existentes em termos políticos e de direitos existenciais entre homens e mulheres, brancos e negros, heteronormativos e grupos LGBTQIA+, o presente século viu tais assimetrias reduzirem significativamente;

iii) ainda que tenha havido uma queda expressiva do número de homicídios por 100 mil habitantes no período, a sensação de vulnerabilidade à criminalidade cresceu significativamente dados o aumento expressivo do poder de fogo das organizações criminosas e o crescimento da criminalidade contra grupos específicos, como negros, vítimas preferencias da violência policial, e a população LGBTQIA+.

Eu destaco essas mudanças porque elas são expressivas dos movimentos de desordenamento e reordenamento das hierarquias que são condicionantes importantes para as escolhas políticas tanto no campo da direita quanto no campo da esquerda.

IHU – Como a sociedade civil foi mudando nesse processo de transformação do país?

Sérgio Costa – As transformações da sociedade civil são profundas e dizem respeito tanto à diversificação das formas culturais de vida como destaquei acima quanto às formas de organização social e política. No contexto do estudo das divisões políticas, eu destaco uma transformação em particular: a digitalização dos processos de mobilização. A direita e, outra vez, a extrema-direita com mais ênfase conseguiram, muito mais rapidamente que as forças progressistas, expandir suas competências para a comunicação digital. Construíram redes muito capilarizadas nas várias plataformas, desenvolveram uma linguagem eficaz, de memes divertidos a bordões capazes de potencializar o ódio latente, e conseguiram gestar seus influenciadores com o poder de mobilizar milhões de seguidores em curto espaço de tempo, como visto recentemente nos casos das mentiras divulgadas sobre a planejada regulação dos pagamentos via Pix. As forças progressistas estão muito longe desta efetividade. Se ainda são, de algum momento, competitivas em termos de disputa de hegemonia, mas também eleitoralmente, isto se deve ao fato de que possuem mais enraizamento na sociedade civil, por assim dizer, analógica.

(Foto: Divulgação)

IHU – Que relações estabelece entre as desigualdades sociais e a vida política no Brasil? Como a relação entre ambos ajuda a compreender as transformações recentes em nível nacional?

Sérgio Costa – Quando se entende desigualdades sociais não mais apenas como diferenças de renda entre indivíduos, mas como desigualdades multidimensionais entre grupos definidos a partir da combinação de categorias interseccionais, tem-se nas desigualdades uma chave poderosa para explicar a vida política. O que quero dizer é que a adesão às forças mais à direita ou mais à esquerda do espectro político está relacionada de forma contingente com os movimentos observados na estrutura social. O vínculo é contingente porque as escolhas políticas dependem não apenas dos movimentos estruturais objetivos, mas da maneira subjetiva como esses movimentos são percebidos e julgados. Se alguém, por exemplo, se sente mais vulnerável à criminalidade porque observa mais pessoas tendo o celular furtado à sua volta, pode atribuir essa limitação de seus direitos existenciais tanto à desigualdade social e ao crescimento do crime organizado quanto a uma suposta cumplicidade entre um governo de esquerda e as organizações criminosas. Ou seja, o mesmo tipo de sofrimento social admite possibilidades variadas de interpretação que estão, por sua vez, associadas a escolhas políticas contrárias.

IHU – Como têm se articulado as mudanças na estrutura social e as escolhas políticas no Brasil?

Sérgio Costa – Numa aproximação grosseira, mas indicativa do que vem sendo observado, podemos dizer que os que ganharam no primeiro ciclo de desordenamento das hierarquias (2003-2015) e, consequentemente, perderam no ciclo de reordenamento das hierarquias (2016-2022) tendem a votar nas forças progressistas ou, como ficou conhecido no debate político, na esquerda. Aqueles que percorreram a trajetória oposta, qual seja, que perderam com o desordenamento das hierarquias e ganharam com o reordenamento das hierarquias, tendem a preferir a direita.

IHU – O senhor declarou que a esquerda precisa oferecer uma imagem de mundo melhor. Qual seria?

Sérgio Costa – Para se contrapor a essas táticas da extrema-direita de criar sujeitos a partir da destruição simbólica (não raro material) de outras subjetividades, as forças progressistas não podem naturalmente usar a mesma moeda usada pelos extremistas de direita. Não podem, por exemplo, desumanizar ou ridicularizar as figuras e as referências da extrema-direita. Isso só fortaleceria os vínculos entre aqueles que se sentem deixados para trás pelas transformações contemporâneas e por uma elite progressista e elitista com seus líderes supostamente antissistema. Não há obviamente receitas fáceis sobre formas eficazes de reagir nesse caso.

De todo modo, me parece que o primeiro passo é reconhecer que os sofrimentos e as angústias sociais que a extrema-direita mobiliza são reais. É preciso reconhecer como real a angústia da família de classe média branca que se sente, por exemplo, amedrontada porque as possibilidades de ter seus filhos estudando em universidades públicas diminuíram efetivamente desde a introdução do sistema de cotas. É preciso reconhecer que ter seu celular roubado é um drama existencial para uma adolescente com poucos recursos. Em alguns casos, essas angústias podem ser amenizadas por políticas públicas eficazes, por exemplo, ampliar as vagas no ensino superior público ou melhorar as políticas de segurança. Em outros casos, são necessários espaços de aprendizado coletivo que mostrem que ampliar direitos implica reduzir privilégios, mas que a vida é melhor e mais digna numa sociedade na qual a convivência social é baseada em direitos e não em privilégios. A isso me refiro quando insisto na necessidade imperiosa de que as forças progressistas busquem criar horizontes positivos de transformação social.

IHU – Em que aspectos as forças progressistas, de um lado, e a direita e ultradireita, de outro, se assemelham e se distanciam?

Sérgio Costa – A pergunta é bastante ampla. Por isso, vou tomar a liberdade de respondê-la a partir de uma tipologia recente que elaborei para pensar campos políticos na América Latina e que serve bem para o Brasil. Penso que é possível, num exercício de simplificação, pensar em quatro grandes campos políticos: autoritarismo de esquerda, autoritarismo de direita, liberais e progressistas.

O autoritarismo de esquerda que impera, por exemplo, na Venezuela e na Nicarágua e que tem muitos simpatizantes no Brasil compartilha com o autoritarismo de direita de Bolsonaro, Milei ou Bukele o desprezo pela democracia e pelo multilateralismo materializado no sistema das Nações Unidas. Ambos diferem, contudo, na valorização da redistribuição de riqueza e justiça social. Enquanto o autoritarismo de direita aposta no darwinismo social, o autoritarismo de esquerda, ao menos discursivamente, exalta a justiça social.

Os liberais no Brasil são mais propriamente neoliberais. São de direita e, até segunda ordem, aceitam o jogo democrático. Não obstante, aceitam também sem grandes problemas alianças com a extrema-direita. Como os direitistas autoritários, os liberais rechaçam políticas de redistribuição de renda, mas convivem bem com o multilateralismo e, principalmente, com o livre comércio. Os progressistas consideram o estado democrático de direito inegociável e apostam na justiça social e na redistribuição de renda comandada pelo Estado. Defendem um multilateralismo amplo, o que implica aceitar a regulação multilateral de temas abrangentes como meio ambiente e clima, direitos humanos, economia etc.

IHU – Quais são as teorias recentes sobre o Brasil que o senhor revisita no livro e como as avalia hoje? Em que aspectos elas ajudaram a compreender as transformações em curso no país e, de outra parte, quais foram seus limites?

Sérgio Costa – O livro está assentado em basicamente três pilares teóricos: a sociologia compreensiva de Max Weber, a pesquisa mais recente sobre desigualdade social e a teoria política pós-estruturalista. Da sociologia de Max Weber, o livro retira sua aposta na necessidade de compreensão entre os nexos objetivos e subjetivos dos processos sociais. Isto é, para entender explicando ou explicar entendendo, como queria Weber, é necessário compreender que mudanças estruturais condicionam mas não determinam escolhas políticas. Tão importante quanto as mudanças objetivas são os processos subjetivos de decodificação de tais transformações.

Da pesquisa mais recente sobre desigualdades veio a atenção para o caráter multidimensional e interseccional das distâncias sociais. Finalmente, a teoria política pós-estruturalista de autores como Stuart Hall e Judith Butler ajudou a entender o caráter contingente dos processos de subjetificação. Isto é, o mesmo sofrimento social provocado, por exemplo, pela interrupção das perspectivas de mobilidade social ascendente pode gerar reações regressivas como, por exemplo, ridicularizar ou humilhar os mais pobres como meio de autoafirmação. Pode, contudo, gerar a crítica dos excessos do individualismo e alimentar a solidariedade com os mais vulneráveis.

O outro achado do livro claramente inspirado pela teoria política pós-estruturalista é o reconhecimento do lugar da corporalidade na afirmação, negociação e, em alguns casos, transformação das desigualdades sociais. É verdade que Bourdieu, com seu conceito de habitus, já havia atentado para isso. A corporalidade do pós-estruturalismo é, contudo, uma categoria muito mais dinâmica e multifacetada, o que permite, por exemplo, pensá-la não só na chave de classe, mas também na embocadura interseccional. Isso permite entender o que está em jogo quando corporalidades (negras, queer, periféricas etc.) começam a frequentar espaços sociais onde não são esperados.

IHU – No livro, o senhor diz que “as escolhas políticas de indivíduos e grupos estão associadas à sua ‘situação interseccional’, qual seja, o lugar que ocupam nas hierarquias de classe, gênero, sexualidade e raça”. Pode explicar essa ideia?

Sérgio Costa – Situação interseccional é o conceito cunhado no livro no sentido de ampliar e atualizar o conceito de situação de classe de Max Weber. A situação interseccional diz respeito à nossa inserção material nas relações de classe, gênero e sexualidade, raça e etnicidades e outras que se mostrem relevantes. Essa inserção objetiva condiciona nossas escolhas políticas. O que, contudo, determina as escolhas políticas é a interpretação subjetiva e contingente desta inserção e dos movimentos que ela venha a sofrer ao longo do tempo.

IHU – Neste cenário político polarizado, quais as perspectivas para a próxima eleição presidencial? O que o atual cenário indica?

Sérgio Costa – Cientistas sociais costumam fazer bons diagnósticos, mas são, em geral, péssimos em fazer prognósticos. Pensando nisso, eu não me arriscaria a fazer previsões para as eleições presidenciais do próximo ano. Até porque me parece que o jogo ainda está sendo jogado. Isto é, os resultados do ano que vem dependerão mais do que ainda vai acontecer até outubro de 2026 do que do quadro atual.

É verdade que Lula tem hoje níveis medíocres de aprovação e a idade avançada pesa contra ele. Não obstante, lidera ainda as pesquisas de intenção de voto. A máquina digital da direita e da extrema-direita está mais afiada do que nunca, mas com seu líder maior inelegível, podem comparecer fragmentadas para a competição do próximo ano. Há ainda a opção aberta de surgir uma chapa de presidente e vice-presidente que concilie bolsonaristas e o campo liberal que não quer abolir a democracia. Penso que Lula perderia para uma chapa dessas.

Se a extrema-direita, contudo, partir para tudo ou nada e insistir numa chapa que não leve em conta alianças com grupos mais moderados, penso que tem menos chances de vencer. A fórmula que funcionou nos Estados Unidos para eleger D. Trump e J.D. Vance não funcionaria, a meu ver, no Brasil. Mas, como disse, ainda há muito jogo pela frente.

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