17 Mai 2025
“Exigir que as religiões ‘fiquem em casa’ é ignorar suas contribuições racionais, morais e comunitárias. É esquecer que muitas democracias modernas nasceram com o impulso ético de crentes que traduziram sua fé em direitos, leis e solidariedade. E isso significa não reconhecer que excluir a religião do debate público não fortalece a democracia, mas a empobrece”. A reflexão é de Gustavo Monzón, em artigo publicado por Semanario Voces, 10-05-2025. A tradução é do Cepat.
Gustavo Monzón é jesuíta uruguaio, doutor em Teologia Moral e Filosofia Política pelo Boston College e professor de Filosofia, Justiça e Direito na Universidade Católica do Uruguai.
A democracia se fortalece quando as ideias circulam, são discutidas e debatidas com cortesia e honestidade intelectual. As colunas recentes de Miguel Pastorino e Marcelo Aguiar neste semanário sobre o papel das crenças religiosas na esfera pública, demonstram que nossa sólida democracia uruguaia ainda carece de um diálogo fundamental. Este diálogo tem vários aspectos que podem ser resumidos em três pontos principais: O que significa a laicidade em uma sociedade pluralista? A religião pode trazer algo além de conflito? E o que significa ser um crente razoável no espaço público?
Filósofos como Charles Taylor, Jürgen Habermas e Hartmut Rosa apontaram que as democracias contemporâneas enfrentam uma crise de sentido e, além disso, uma deterioração das forças que incentivam a manutenção dos vínculos sociais. Nesse sentido, a iluminada profecia kantiana – segundo a qual até mesmo um “povo de demônios” poderia coexistir sob um ordenamento jurídico sólido – não só não se concretizou, mas acabou esvaziando o conteúdo motivacional das instituições e normas que tornam possível a vida em sociedade.
Diante dessa questão crítica, faz-se necessária a constituição de uma base moral compartilhada para incentivar o engajamento cívico e cultivar a virtude cidadã. Nesta busca, os autores anteriormente citados, longe de promover o integrismo ou querer retornar a um estado confessional, reconheceram que as tradições religiosas podem oferecer recursos éticos e simbólicos de que as democracias necessitam; especialmente em tempos de fragmentação e cinismo. Não se trata de impor dogmas, mas de contribuir para o espaço público a partir de convicções profundas, fortalecendo assim a conexão com as instituições e as normas possíveis.
Marcelo Aguiar rejeita veementemente essa ideia, recorrendo, a meu ver, a um antigo preconceito: o de que a religião, especialmente o catolicismo, é uma ameaça à liberdade, ao pensamento crítico e ao progresso. Sua visão da laicidade, entendida como a exclusão da religião da esfera pública, tem resquícios que remontam ao secularismo do século XIX. Essa concepção de secularismo surgiu da luta entre o catolicismo e um liberalismo racionalista e antirreligioso, que, para fortalecer o pluralismo na sociedade, deve privatizar a religião. Por outro lado, o consenso democrático do século XXI tem outros objetivos, como o respeito à diversidade e a tolerância a todos os pontos de vista, como garantia de uma sociedade que inclua todas as especificidades.
O preconceito de Aguiar não é de forma alguma original, mas é decorrente de uma desconfiança estrutural da religião. Ele acredita que as religiões, especificamente o catolicismo, buscam impor um estado confessional como regime político e que, se aceitam a democracia constitucional, não o fazem por convicção, mas por conveniência.
John Rawls, em O liberalismo político, oferece uma distinção fundamental para refletir sobre esse tema: aceitar a democracia como um modus vivendi – isto é, por conveniência, como uma trégua temporária entre visões antagônicas – não é o mesmo que assumi-la como parte de uma tradição política que a concebe como um regime justo, apoiado por razões públicas que podem ser compartilhadas por cidadãos com crenças muito diversas. A primeira forma de conexão com a democracia é precária e frágil; a segunda, duradoura e sólida. Se uma tradição religiosa apenas “suporta” a democracia porque não tem outra opção, não há garantia de que ela a apoiará quando se tornar a maioria em uma sociedade. Por outro lado, se a considerar justa e a incorporar à sua tradição política, será um verdadeiro aliado para fortalecer a vida democrática.
Durante muito tempo, o catolicismo e a secular democracia constitucional trilharam caminhos opostos. No século XIX, o magistério papal via na cultura política moderna, ancorada na liberdade religiosa e na democracia constitucional, uma ameaça: o secularismo era percebido como uma tentativa de apagar a influência pública da religião, e defendia-se a ideia de um estado confessional como a única garantia da ordem moral. Entretanto, após um longo processo de evolução doutrinal – e aceitando a democracia constitucional como um modus vivendi – a Igreja Católica não apenas abandonou essa posição, mas se tornou uma defensora ativa da democracia constitucional como o regime político que melhor salvaguarda a dignidade humana, e da liberdade religiosa como um direito humano fundamental para o livre exercício da fé.
Essa mudança não foi imediata. Foi, ao contrário, o resultado de uma evolução na tradição política católica. No final do século XIX, Leão XIII começou a construir pontes com a cultura secular sem renunciar à doutrina, e Pio XII reconheceu a democracia como uma forma legítima de proteger a dignidade humana contra os horrores do totalitarismo, tanto da direita como da esquerda. Essa evolução e fortalecimento do modus vivendi levou João XXIII, na Pacem in Terris (1963), a assumir plenamente os direitos humanos como base moral da ordem política moderna, e a incorporar a democracia constitucional aos valores políticos do catolicismo. Finalmente, o Concílio Vaticano II consolidou esse desenvolvimento doutrinal com a Declaração Dignitatis Humanae (1965), que afirmou que a liberdade religiosa não é apenas compatível com a fé católica, mas essencial para sua experiência autêntica em sociedades pluralistas.
Um dos principais e influentes protagonistas desse desenvolvimento doutrinal foi o teólogo jesuíta estadunidense John Courtney Murray. Com base na experiência estadunidense da coexistência pacífica entre laicidade e catolicismo, Murray propôs que a Igreja poderia se envolver com a cultura política secular através da razão, baseada em princípios compartilhados como a lei natural, a liberdade religiosa e a dignidade da pessoa. Para ele, a democracia constitucional não devia ser vista como uma ameaça à fé, mas como uma estrutura que permite que as religiões contribuam para o bem comum sem impor sua visão à força.
A partir desse desenvolvimento doutrinal, como afirma Samuel Huntington em A Terceira Onda: A democratização no final do Século XX, o catolicismo, sob a liderança de João Paulo II e sua defesa da liberdade humana, tornou-se um agente democratizador em diversos países que sofriam com regimes totalitários. O impulso democratizante do catolicismo consistia em ser uma religião que defendia firmemente o direito à liberdade religiosa, fundamento de todas as liberdades. Por esta razão, a tradição política católica não defende o estado confessional como um ideal político, mas – nas palavras de Bento XVI – uma sociedade bem ordenada deve ser governada por um “laicismo positivo” que, embora mantendo a separação entre Deus e César, seja capaz de integrar e valorizar as contribuições das religiões à vida pública, além de suas contribuições ao boletim paroquial.
Excluir a religião da vida pública não é um sinal de neutralidade, como afirmam os secularistas, mas uma forma moderna de exclusão. E, como nos lembra o teólogo John Courtney Murray, um dos grandes promotores da mudança conciliar, uma democracia precisa de vozes religiosas para que possam participar do debate público e enriquecê-lo com sentido, responsabilidade e horizonte moral. A experiência do catolicismo moderno demonstra que a fé não apenas não ameaça a democracia: ela pode ser uma de suas maiores aliadas.
Hoje, essa ideia é mais urgente do que nunca. Diante dos novos autoritarismos, alguns seculares, outros teocráticos, é tentador cair em trincheiras e guerras culturais. Mas a história recente mostra que quando a religião é marginalizada da vida pública, não é a neutralidade que ganha: ganha o vazio. E os vazios políticos são rapidamente preenchidos; às vezes com ideologias que exploram a religião, outras vezes com Estados que suprimem qualquer expressão de fé…
O catolicismo, na melhor das hipóteses, não é uma religião do poder, mas da consciência. É por isso que precisa de espaços de liberdade e por isso passou a valorizar a democracia não apenas como uma forma de sobrevivência, mas como um espaço no qual pode servir, falar e oferecer sentido. Não busca privilégios nem retorno a modelos do passado; busca participar, com sua própria voz, da conversação pública.
Exigir que as religiões “fiquem em casa” é ignorar suas contribuições racionais, morais e comunitárias. É esquecer que muitas democracias modernas nasceram com o impulso ético de crentes que traduziram sua fé em direitos, leis e solidariedade. E isso significa não reconhecer que excluir a religião do debate público não fortalece a democracia, mas a empobrece.
Hoje, mais do que nunca, precisamos de um secularismo bem compreendido: um laicismo que não exclua, mas que garanta a liberdade para todos. Nesse contexto, o catolicismo não é uma exceção incômoda: é um interlocutor disposto. Não está fora do pacto democrático. Faz parte dele, e de cuidar e fortalecer sua validade.