06 Mai 2025
"Francisco recebeu a pesada herança de uma Igreja que deve se confrontar com uma virada, com uma Reforma que lhe pede para repensar seu passado com lucidez para entender o que fazer com um coração reconciliado", escreve Marinella Perroni, biblista e professora emérita do Pontifício Ateneu Sant'Anselmo de Roma, em artigo publicado Donne Chiesa Mondo, maio de 2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um concílio e um pontificado são duas realidades complexas, que impactam a crônica, mas dão frutos na história. Como todos os outros pontificados, o de Francisco também será julgado pela história e, como todos os outros concílios, o Vaticano II também está vivendo o escrutínio do julgamento histórico. Mais do que dos historiadores, seria melhor dizer o julgamento da Igreja que vive na história. E sabemos bem como foi difícil, nesses primeiros sessenta anos, a recepção de um Concílio convocado com a intenção precisa de uma renovação da Igreja Católica e em um momento em que a Igreja Católica já havia se tornado verdadeiramente universal, pois estava representada no Concílio por bispos de todos os continentes que traziam consigo a força de Igrejas particulares que proclamavam e viviam a fé em contextos já muito diferentes entre si. Por outro lado, não teria sido possível ver se sucederem, após o Concílio, um papa polonês, um papa alemão e um papa argentino se a realidade não fosse a de uma igreja para a qual a qualificação de católica agora coincidia com o abandono do eurocentrismo e a diáspora nos confins da terra.
Além disso, uma coisa é certa: desde os primeiros dias de sua eleição, Francisco deu a entender que o Concílio Vaticano II não foi em vão. Isso deve ser dito sem ênfase, é claro, mas não sem convicção.
Basta pensar na homilia que ele mesmo proferiu em uma celebração em 11 de outubro de 2022, por ocasião do sexagésimo aniversário da abertura solene daquela assembleia que entrou para a história como um tempo de “primavera da igreja”, uma celebração que o Papa tinha pretendido também pela intuição do significado que justamente a memória do Concílio poderia e deveria ter durante o ano jubilar. “Voltemos às puras fontes de amor do Concílio. Redescubramos a paixão do Concílio e renovemos a paixão pelo Concílio": sessenta anos depois, Francisco tentou retomar o fio que havia desencadeado o clima, desenhando o horizonte, estabelecido os objetivos.
“Gaudet Mater Ecclesia” (A mãe Igreja se alegra): essas foram as primeiras palavras do discurso com o qual João XXIII abriu o Concílio e que Francisco reiterou: ”Que a Igreja seja habitada pela alegria. Se ela não se alegrar, renega a si mesma, porque esquece o amor que a criou”. E sabemos muito bem que, especialmente na primeira parte de seu Magistério, Francisco não teve medo de insistir justamente nas atitudes de alegria e de louvor que revelam a disposição confiante com a qual a Igreja olha para Deus e caminha na história.
Basta pensar nos títulos de seus quatro primeiros documentos que se referem à alegria do Evangelho (Evangelii gaudium), ao louvor de Deus diante do dom da criação (Laudato si'), à alegria de um amor capaz de se encarnar no claro-escuro da vida cotidiana (Amoris laetitia), à misericórdia (Misericordia et misera), uma palavra forte do léxico evangélico, que Francisco colocou no centro de seu pontificado ao escolher como lema a frase com a qual Beda, o Venerável, comenta a vocação de Levi, o publicano, em uma homilia: Miserando atque eligendo (Mateus 9,9: “viu um publicano e lhe disse ‘venha comigo’”).
Reconhecer a presença de Deus na história e ser grato por ela, porque é uma presença benevolente e cheia de graça, não remete justamente à constituição Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo, com a qual o Concílio fez o mundo entrar em uma assembleia quase inteiramente clerical e, assim, iniciou aquele processo de declericalização que Francisco entendeu como sendo a única possibilidade de tirar a Igreja Católica do marasmo em que corre o risco de ficar presa no início do terceiro milênio? Por outro lado, seu apelo incessante por uma Igreja que “é comunhão” e, por essa razão, não sucumbe “à tentação da polarização” não remete fortemente à constituição sobre a Igreja Lumen Gentium? Ele o disse também naquela noite com a intensidade que caracterizou sua eclesiologia ao longo de seu pontificado: “o Povo de Deus nasce extrovertido e rejuvenesce se entregando por inteiro”. Esse foi o sonho do Concílio e se transformou no programa de vida das igrejas nacionais e comunidades eclesiais que não cessaram seus esforços para construir um mundo um pouco menos injusto nestas últimas décadas.
Podemos nos perguntar se, precisamente como “homem que veio do Concílio”, não coube a Francisco vivenciar suas mesmas lacerações. Porque tanto o Espírito quanto a letra do Concílio tentaram de todas as maneiras não ceder às divisões, mediar as diferenças agora inevitáveis em uma Igreja espalhada por todo o mundo, encontrar uma linguagem capaz de não renunciar ao grande legado da tradição sem, no entanto, ceder ao medo diante da renovação que todo futuro impõe. Do Concílio, Francisco recebeu a pesada herança de uma Igreja que deve se confrontar com uma virada, com uma Reforma que lhe pede para repensar seu passado com lucidez para entender o que fazer com um coração reconciliado. Para libertar-se do peso dos abusos de poder e de consciência, bem como daqueles sexuais, certamente, mas, acima de tudo, para se confrontar com um mundo cada vez mais sedento de violência e manter firme sua fé na força que vem de seu Deus e na íntima bondade do ser humano. Mas também para encontrar novas maneiras de compor a doutrina e a disciplina para construir uma casa acolhedor para todos.
Francisco corretamente estava convencido de que o mundo precisa da Igreja: vimos isso na época do Concílio, quando a Igreja testemunhou que poderia ser para o mundo, como João XXIII gostava de dizer, a fonte na praça da cidade. Vemos isso nos dias sombrios que estamos vivendo, nos quais apenas um pontífice idoso e doente nunca deixou de ser a voz de um Deus que disse: “Porque eu bem sei os pensamentos que penso de vós, diz o Senhor; pensamentos de paz, e não de mal, para vos dar o fim que esperais” (Jeremias 29,11).