“Vivemos um novo 'boom' da psicanálise, o anterior foi na ditadura militar”. Entrevista especial com Rafael Alves Lima

Psicanalista revela florescimento da psicanálise brasileira no regime ditatorial. Para ele, “Ainda Estou Aqui” é exemplar no reparo psíquico e na construção de um regime de sensibilidades mais complexo da ditadura. No divã, mostra que existe uma luta de classe histórica nesta área e critica a atual medicalização do sofrimento

Foto: Anne Nygård | Unsplash

Por: Elstor Hanzen | 22 Mai 2025

Brasil e Argentina hoje estão entre os mais importantes territórios psicanalíticos do mundo. Isso se deve, paradoxalmente, à expansão durante os períodos ditatoriais. Além de crescer, esta ciência e sua prática clínica se adaptaram muito bem às ditaduras, revela o mestre e doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP).

Rafael Alves Lima afirma que os sinais de deturpação começam a aparecer quando viu, no seu livro Psicanálise na Ditadura (1964-1985): História, Clínica e Política (Perspectiva, 2024), derivações da adolescência à rebeldia, da imaturidade à insubordinação. “Nessa linha rapidamente se chega ao elogio da adaptação do sujeito à sociedade, ou à conclusão de que 'contestar é infantil' e 'suportar é adulto'".

Nesse contexto, a estratégia foi gerar uma espécie de conivência indireta, ou uma aliança tácita, o que considera um psicologismo que vai desencadeando uma falsa equivalência de ideias. O pesquisador destaca que na área havia uma ala conformista e outra conservadora ou reacionária. “A ditadura revelou o aprofundamento dessas fendas na psicanálise, um aprofundamento que nada mais é do que o resultado da luta de classes que lhe é intestina".

Para ele, “na ditadura, em que a liberdade da palavra e as condições mínimas para a mobilidade social estão severamente comprometidas, as elites se bastam, em um círculo vicioso”.

Atualmente, com o negacionismo e o avanço da extrema-direita, tudo está mais claro pelo menos. “Sabemos que os canalhas já estão na mesma sala de jantar que nós, há um bom tempo. São tempos bicudos”. Ressalta que a psicanálise vive uma segunda onda com a multiplicação incalculável de diagnósticos e medicalização do sofrimento, após o boom na ditadura. “O neoliberalismo precariza a clínica porque o sonho neoliberal é poder prescindir do clínico. Imagine um cenário em que o sujeito se autodiagnostica pelo app e pede o remédio pelo delivery”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor ainda trata do filme Ainda Estou Aqui. “É um tipo de elaboração dolorida, porque traz memórias escondidas à tona, revelando conteúdos traumáticos, verdadeiramente recalcados”.

Em meio a isso, relembra um episódio de 2014, quando o então deputado Bolsonaro cuspe no busto do Rubens Paiva em Brasília. “A trajetória da Eunice Paiva e de toda a família na busca por verdade, memória e justiça, é exemplar nesse sentido, é preciso saudar muito”.

Rafael Alves Lima | Foto: Arquivo Pessoal

Rafael Alves Lima é psicanalista, graduado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IP-USP. Mestre e doutor em Psicologia Clínica pelo IP-USP.

Confira a entrevista.

IHU – Em Psicanálise na Ditadura (1964-1985), você evidencia que, além de sobreviver bem ao regime militar, a psicanálise se desenvolveu e cresceu no período. Por que e como aconteceu isso?

Rafael Alves Lima – Pois é, esta é exatamente a contradição que me intrigou e levou à pesquisa. De fato, há muitos elementos na teoria e na clínica psicanalítica que idealmente não são compatíveis com regimes não democráticos. A liberdade de poder falar o que vier à cabeça, que é a condição elementar para o exercício da clínica, fica severamente ameaçada em uma ditadura.

Por meio dessa liberdade da palavra, chegamos a camadas profundas da teoria e da prática, como o compromisso com a verdade daquilo que se diz, ou mais ainda, com a coragem da verdade que fundamenta a ética da psicanálise. São princípios inegociáveis e, naturalmente, inconciliáveis com tudo o que caracterizou a ditadura militar no Brasil: censura, mentira, fraude, autoritarismo, golpe, violência e intolerância.

Durante a Alemanha nazista ou o fascismo italiano, a psicanálise esteve em condições tão deploráveis de sobrevivência que a gente pode até dizer que ela deixou de existir. Mesmo que ela não tenha desaparecido por completo, podemos verdadeiramente nos perguntar o que havia de psicanálise naquelas circunstâncias, porque em larga medida ela se tornou irreconhecível.

São cenários como esses que alguém como Elisabeth Roudinesco, uma das maiores historiadoras da psicanálise, tem em vista quando pensa na extinção da psicanálise em regimes não democráticos.

IHU – Já no Brasil e na América Latina, o movimento floresceu no período?

Rafael Alves Lima – Nas ditaduras latino-americanas se deu o contrário. Não há dúvidas de que Brasil e Argentina hoje estão entre os mais importantes territórios psicanalíticos do mundo. Isso se deve, em parte, a essa paradoxal expansão pela qual os movimentos psicanalíticos passaram durante os períodos ditatoriais nesses dois países, um tanto parecido também com o Chile e com outros países da América Latina.

Se eu puder arriscar uma analogia para tentar resumir o que fui formulando ao longo do livro, diria que a ditadura impôs aos movimentos psicanalíticos nacionais algo como agitar um vasilhame com água e óleo. Em condições normais de temperatura e pressão, a oposição de valores elementares “democracia x autoritarismo”, “verdade x mentira”, “liberdade x censura”, “transparência x fraude”, tenderia à separação nítida.

Mas quando sacudidos, a olho nu, parecem misturados. É nesse sentido que se pode observar no período ditatorial uma psicanálise dominante que parecia não incomodar o regime. O que não é o mesmo que dizer que não havia resistência. Havia, e ela era bastante expressiva, ao menos internamente. Entretanto, ela não era propriamente visível a olho nu.

Para o regime, esse estado de coisas teria sido suficiente, pois as resistências seriam toleradas se elas se imiscuíssem na desestabilização do vasilhame. É fato que a psicanálise cresce e se desenvolve no período, mas quando olhamos para tamanho desequilíbrio de forças, devemos nos perguntar: cresceu em que direção? É o que eu tento avaliar no meu livro, agora, sob o olhar da história, com água e óleo um pouco mais separados.

IHU – A criação da Comissão da Verdade, em 2011, teve algum papel na sua investigação?

Rafael Alves Lima – Certamente sim. A pauta da justiça de transição e a luta por memória, verdade e justiça na época, eram muito fortes. Mergulhei de cabeça na questão da reparação.

Foi uma espécie de sorte ter feito a pesquisa em um momento em que se realizava um documento oficial, investigando profundamente os crimes perpetrados pelo Estado, produzindo ao fim um relatório oficial com dados inéditos, possibilitando o reconhecimento de tantas pessoas mortas e desaparecidas, dando nome e endereço daqueles que torturaram e mataram. E, inclusive, havia uma psicanalista na Comissão da Verdade, a Maria Rita Kehl, uma referência para mim e para muitos da minha geração. O que, para mim, pelo menos, não era acidental – a psicanálise tinha muito a dizer sobre o problema que estava sendo enfrentado.

Diria que mais decisivo do que a Comissão da Verdade foi, para mim, especificamente, o projeto Clínicas do Testemunho, um projeto da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Digo que foi mais decisivo porque, de fato, fiz parte do Clínicas do Testemunho junto ao coletivo no qual atuei por doze anos, o Margens Clínicas.

Em paralelo, via grandes trabalhos de história da psicanálise sendo consagrados, recebendo prêmios Jabuti, como o “Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica” do Christian Dunker (que foi meu orientador e assina o prefácio do livro), ou “O Tronco e os Ramos” do Renato Mezan. Livros que articulavam psicanálise, política, cultura e sociedade, como os livros do Paulo Endo, da já citada Maria Rita Kehl, da Miriam Debieux, da Tania Rivera e do Joel Birman, entre outros, foram igualmente premiados.

Muitos desses foram meus professores na USP e, de algum modo, estar imerso nisso tudo fez uma síntese impremeditada das três dimensões que dão o subtítulo do meu livro: história, clínica e política. É claro que nada disso foi calculado, simplesmente queria fazer algo na linha do que esses psicanalistas e pesquisadores faziam. Virei professor logo depois do meu mestrado, em 2013, e testemunhei o nascimento de diversas clínicas públicas e coletivos de psicanálise no Brasil, fiz amizades e parcerias muito importantes nessa circulação. Minha pesquisa foi gestada nessa ambiência. 

Revisionismo, negacionismo, anticientificismo

De 2016 em diante, houve uma bifurcação, alguns sonhos sobreviveram, mas outros viraram pesadelos. O nosso projeto nas Clínicas do Testemunho foi concluído sob uma conjuntura política e institucional muito adversa, insalubre mesmo.

Objetivamente, a consequência nefasta desse grande projeto de depreciação é que as cadeiras universitárias brasileiras na psicologia dedicadas à história estão sob forte ataque institucional nos últimos anos, sendo desmanchadas ou deformadas, ameaçadas de extinção. Revisionismo, negacionismo, anticientificismo.

A lista é grande, e sabemos que os canalhas já estão na mesma sala de jantar que nós, há um bom tempo. São tempos bicudos. O desprezo pela história e pela reflexão crítica é a véspera do pior. Por caminhos talvez não óbvios, penso que recupero esse legado da luta pela verdade, memória e justiça ao me dedicar à docência e à pesquisa em história e filosofia da psicologia e da psicanálise. É a batalha que escolhi lutar neste momento da minha vida, e pelo jeito é uma batalha que está só começando.

Ingressei no doutorado em 2017 e fiz a pesquisa no momento mais difícil da vida política recente do Brasil. Ainda hoje, penso que segue sendo muito difícil firmar um lugar institucional estável para realizar pesquisas em história da psicanálise, ou mesmo em história da psicologia, muito embora haja um interesse crescente no campo.

Concordo com o diagnóstico geral do Adrian Brock, um historiador da psicologia de quem gosto muito: é como se no nosso campo psi as disciplinas históricas, ou, digamos, “histórico-filosóficas”, estivessem se transformando cada vez mais em matérias pedagógicas do que em tópicos de pesquisa. Algo como: “alguém já escreveu a história da psicanálise, ou da psicologia, ou das psicoterapias; logo, quem trabalha com história do campo psi deve se concentrar em ensinar o que esses historiadores já produziram, e não propriamente em produzir pesquisas inéditas”.

Ora, isso é muito pernicioso, porque petrifica as versões estabelecidas, desestimula o contato com as fontes primárias e, invariavelmente, prejudica a sofisticação historiográfica que é absolutamente imprescindível para o nosso campo.

Então, quando um livro como “História dos Saberes Psicológicos no Brasil”, da Marina Massimi, ganhou o Jabuti Acadêmico ano passado, isso me emociona. É um trabalho de fôlego, fruto de muitos anos de ensino e pesquisa de uma autora que é uma grande referência na área. É algo que me lembra desse espírito inquieto da primeira metade dos anos 2010 e me dá esperança.

IHU – O filme "Ainda Estou Aqui" remonta a duas teorias: de memória coletiva e de lugar de memória. Isso também dialoga de alguma forma na sua pesquisa?

Rafael Alves Lima – Certamente. Há uma enorme discussão sobre a relação, ou não relação, entre história e memória, é um debate gigantesco com autores de grande envergadura (M. Halbwachs, P. Ricoeur, P. Nora e tantos outros) que não tenho condições de esmiuçar aqui.

Posso dizer brevemente que é um filme que expressa de forma brilhante um certo regime de sensibilidades que é fundamental de ser trabalhado para pensar a ditadura. Para mim é curioso, porque remete a tempos muito anteriores à minha pesquisa – li Feliz Ano Velho na minha pré-adolescência (como tantos da minha geração), e anos depois fui aluno de Psicologia Social da Vera Paiva na USP.

A vida deu suas piruetas, e lá estava eu, no Margens Clínicas, quando aconteceu aquele episódio asqueroso do cuspe do Bolsonaro (na época deputado) no busto do Rubens Paiva em 2014 em Brasília. Eram conflitos que já estavam lá. Com a Clínica do Testemunho, que convivia politicamente com a Comissão da Verdade e com a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, toda essa sensibilidade dava sentido ao nosso trabalho. A trajetória de Eunice Paiva e de toda a família na busca por verdade, memória e justiça é exemplar nesse sentido, e é preciso saudar muito “Ainda Estou Aqui” e comemorar toda a justa repercussão que ele tem gerado.

A memória coletiva reivindica as necessidades do tempo presente. O filme resgata essa chance de construirmos uma sensibilidade mais complexa, criar alternativas para além do estigma dos “porões”. Não para negar a tortura e a morte que a ditadura levou a cabo, evidentemente, mas para possibilitar a empatia com o sofrimento daqueles que ficam – afinal, quando falamos de mortos e desaparecidos, falamos também de seus familiares, que por sua vez são igualmente vítimas da violência de Estado.

Reparação psíquica

Vimos muito isso no estudo: pessoas que haviam sido vítimas da ditadura, mas que não se reconheciam como tal, porque, diziam elas – não passaram por situações extremas de violência, por exemplo. Daí investimos em perguntas do tipo: “Te disseram por qual razão você foi demitido? Você era do sindicato? Te encorajaram a mudar de bairro ou de cidade? Te falaram para se calar sobre certos assuntos? Havia movimentações estranhas no seu entorno? Foi difícil se recolocar?”

E, de repente, a pessoa se dava conta de que aquela demissão havia sido excessivamente sofrida, muito mais sofrida do que outras, que foi muito difícil para ele e para toda a família, que os laços profissionais e de amizade se esgarçaram, que houve perdas simbólicas e materiais irreversíveis e coisas do tipo.

Recuperar essa narrativa possibilita o que chamamos de reparação psíquica. O filme retrata brilhantemente o custo psíquico desse processo de elaboração, de reparação, lá onde a luta por justiça se torna necessariamente uma luta por saúde. É um tipo de elaboração dolorida, porque traz memórias escondidas à tona, revelando conteúdos traumáticos, verdadeiramente recalcados.

O testemunho era esse encontro das águas entre a clínica psicanalítica e a memória coletiva. Acho que o filme aponta para esse mesmo horizonte de construção de um regime de sensibilidades mais complexo para pensar a ditadura, por meio de uma narrativa cativante e eloquente. 

IHU – Os movimentos psicanalíticos se aliaram ao regime militar brasileiro ou, no mínimo, foram coniventes com a ditadura?

Rafael Alves Lima – Pode parecer um truque retórico aqui, mas a resposta precisa ser: sim e não. Lembrando da analogia do frasco com água e óleo, sempre precisamos dizer: sim, mas não só, ou nem sempre, ou nem todos. Afinal, o que seria essa aliança e essa conivência?

Uma boa pista que trabalho no livro é inspirada no que o historiador da psicanálise Ely Zaretsky chamou de “ética da maturidade”. Idealmente, as perspectivas desenvolvimentistas da psicanálise não corresponderiam imediatamente a uma ideologia conservadora ou algo assim. O desenvolvimentismo está na teoria freudiana da sexualidade, tem uma versão em Abraham, e o arco chega até, se quisermos esticar um pouco mais, a perspectiva winnicottiana do amadurecimento emocional ou a teoria do apego de Bowlby. Ou seja, penso que o desenvolvimentismo em psicanálise é uma perspectiva epistemológica legítima, e não um problema político em si.

Os sinais de deturpação começam a aparecer quando vemos derivações, por exemplo, da adolescência à rebeldia, da imaturidade à insubordinação. Nessa linha rapidamente se chega ao elogio da adaptação do sujeito à sociedade, ou à conclusão de que “contestar é infantil” e “suportar é adulto”.

É um psicologismo que vai encadeando uma falsa equivalência de ideias gerando uma espécie de conivência indireta, ou uma aliança tácita. Pois não é preciso confirmar publicamente essa cumplicidade ideológica, bastaria envergar a teoria e a prática em certa direção para que o regime não se sentisse especialmente incomodado pela psicanálise dominante.

IHU – Houve um conformismo dos psicanalistas na prática clínica durante a ditadura?

Rafael Alves Lima – Vou pegar carona porque talvez haja uma diferença entre conformismo e conservadorismo. Até porque os estratos mais conservadores dos movimentos psicanalíticos da época eram mais catastrofistas do que propriamente conformistas. O termômetro para analisar esse pêndulo para um lado ou para outro é a atividade editorial da época.

Na segunda metade dos anos 1970, com o retorno dos psicanalistas que se exilaram na Europa, junto com a chegada dos psicanalistas argentinos, os movimentos psicanalíticos foram paulatinamente se transformando, com uma maior abertura crítica, que se refletiu na qualidade e na tendência das publicações de livros e revistas da época. Temas “tabus” que relacionavam psicanálise, política, teoria social, estética passam a circular sem maiores prestações de conta. Sob os ventos da iminente abertura política, os movimentos psicanalíticos mais tradicionais precisam rever suas condutas institucionais mais conservadoras, ao passo em que novas instituições eram fundadas na dianteira dos debates mais progressivos da época.

Os debates acompanhavam essa divisão. Na ala mais conservadora ou reacionária, o debate dominante era catastrofista, como se estivéssemos à beira de uma grande desorganização social com a queda da autoridade edípica e da família tradicional, rumo a um caos pulsional irreversível ou algo que o valha. Não era uma leitura social passiva, que se conformava com o que estava posto, percebe? É um discurso mais abertamente retrógrado, convicto, argumentado, como se a solução para os problemas sociais fosse retornar a um estado anterior, que no fundo é sempre uma miragem, uma mentira.

Do outro lado, na oposição, em uma crítica verdadeiramente sofisticada, começaram a circular obras de autores fundamentais da França de 68, da Escola de Frankfurt, da luta antirracista, da análise institucional, do freudo-marxismo latino-americano e tantos outros. Esse conjunto de obras que não eram necessariamente de psicanálise, mas que se valiam dela como expediente de construção do pensamento crítico – eu chamei no livro de “biblioteca crítica psicanalítica” – teve um impacto muito duradouro na psicanálise no Brasil.

No contexto da abertura ela se tornou na verdade a biblioteca que preparou a formação dos psicanalistas da minha geração, são livros que se tornaram obrigatórios nas nossas prateleiras. A biblioteca psicanalítica crítica é a expressão editorial desse caldeirão intelectual que transformou a psicanálise no Brasil, na potência que ela é hoje.

Quebrando tabus

É curioso que essa guinada crítica se consolidou tanto que certos temas tabus foram acolhidos sem maiores problemas. Minha geração, por exemplo, não tem mais isso de “não se pode falar de política na psicanálise”, como as gerações anteriores tinham.

Recolhi algumas reações curiosas após a publicação do livro. Lembro de um comentário na semana em que o livro saiu, desses bem “apaixonados” de redes sociais: “eu não li o livro ainda, mas já questiono as conclusões dele, porque é óbvio que a psicanálise jamais seria conivente com uma ditadura, qualquer que seja, direta ou indiretamente”.

Se quisermos pensar para além da situação esdrúxula da pessoa que nem leu o livro e já se antecipou, acho que há um índice intrigante nessa imediaticidade quase pavloviana da resposta. Essa defesa irrefletida da psicanálise vem de saída, como se ela fosse uma entidade descolada da realidade social e independesse de tudo para existir no mundo.

Por um lado, os princípios fundamentais (compromisso com a verdade, liberdade da palavra, reflexividade ética) parecem estar mais firmes do que antes, o que tende a ser positivo. Por outro, a adesão dogmática a esses princípios regride sob a forma de uma repulsa pela história, o que é temerário. Um amigo me contou que um colega psicanalista lhe disse que não leria meu livro, alegando algo como: “eu não acredito nos arquivos”.

Ninguém é obrigado a ler nada, evidentemente, mas chega a ser caricato, um tanto constrangedor, porque, veja...não é uma questão de crença. É uma pesquisa acadêmica. Pesquisei e encontrei os arquivos, dispus tudo o que se tornou relevante dentro do meu recorte em uma série, tracei uma cronologia dos acontecimentos, cotejei com outras fontes, confrontei as informações e, muito depois de tudo, depois de muita elaboração em cima desse material, construí enfim uma interpretação. A minha interpretação está sujeita a críticas, sem dúvidas, até porque não existe “a última palavra da história”. Mas o arquivo é o sustentáculo material da interpretação.

A lupa da história nos faz ver as complexidades dos fenômenos, evitando a repetição desses arroubos do “nunca”, do “sempre”, do “jamais”. Bem, trago isso para lembrar que o dogmatismo é muito tóxico para a psicanálise, tanto quanto ou até mais do que o conformismo e o conservadorismo. Espero que o livro possa ser recebido como um convite à reflexão crítica, historicamente informada, na desconstrução dessas reações dogmáticas instantâneas.

IHU – Como compreender a psicanálise brasileira antes de 1964, durante o regime de repressão, e depois desse período? Quais as principais diferenças a se destacar?

Rafael Alves Lima – Já adiantei alguns contrastes com o momento atual, mas posso acrescentar ao menos mais dois. Um que me parece absolutamente positivo diz respeito à condição das formações em instituições de psicanálise. Há muito mais instituições legítimas para realizar sua formação do que antes. Para quem chega de paraquedas no campo um cenário repleto de possibilidades, como este provavelmente, irá confundir ou se sentir perdida, desorientada ou algo assim.

Se você se fiar à história, procurar saber quem são as pessoas, a história do grupo que fundou a instituição, o que chamo no livro de “rotas filiatórias e migratórias”, que compuseram um movimento psicanalítico local, terá bons critérios para diferenciar o que é legítimo e o que é charlatanismo ou oportunismo, e saberá escolher. Quer uma formação tradicional, em uma instituição filiada à IPA? Tem. Quer em uma instituição também tradicional, mas fora da IPA? Tem também. Instituições lacanianas? Tem muitas. Tem também percursos de formação “fora” das instituições, como que passando por mais de uma delas, privilegiando grupos de estudos, circulações em espaços alternativos e afins. Para aqueles que não têm condições de circular presencialmente pelos espaços, há possibilidades online – supervisões, estudos e até análise assim.

É certo que fica mais difícil se localizar em um campo que conta com mais espaços legítimos para viabilizar uma formação em psicanálise do que conseguimos contar nos dedos das mãos. Posso estar sendo otimista, mas, se compararmos com o período ditatorial, penso que hoje estamos em um cenário bem mais interessante.

Uma outra diferença que faço questão de sublinhar diz respeito aos movimentos que poderíamos chamar de clínicas públicas de psicanálise no Brasil. Há diversos coletivos espalhados no Brasil todo, fazendo um trabalho incrível de ampliar o acesso ao tratamento psicanalítico a quem quer que seja. Havia trabalhos sendo desenvolvidos nessa direção durante a ditadura, no RJ nos anos 1970, em SP nos anos 1980. Mas com o tamanho que vemos hoje, não consigo ver nada nem perto daquela época. Nesse sentido, somos vanguarda, é um movimento nosso. E é interessantíssimo. Para mim, é a prova de que a psicanálise no Brasil deu certo.

Há quem diga que vivemos hoje um segundo boom da psicanálise, se considerarmos os primeiros anos da psicanálise no Brasil, poderíamos até arriscar que estamos já em um terceiro boom. Seja como for, é de fato um momento importante para a psicanálise.

IHU – A psicanálise foi e é feita pela e para a elite?

Rafael Alves Lima – É um tema interessante, e que está na pauta do dia por várias razões. Afinal, o que estamos chamando de elite? Elite é uma categoria sociológica que tende a ser usada para validar a posição social dos “mais ricos”, mas, ao mesmo tempo, é uma categoria que não se encerra neles. Grosso modo (penso aqui em Charles Wright Mills e em Pierre Bourdieu), arriscaria dizer que a elite se caracteriza menos por esse tipo de recorte de validação imediata, e mais pela facilitação no tráfego entre os mais diversos núcleos sociais dominantes.

Ilustramos com um cenário que, não por acaso, costuma se repetir: militares de alta patente organicamente ligados a grupos de grandes empresários e bilionários, cujos filhos estudam nas mesmas escolas dos filhos de políticos poderosos, que, por sua vez, são primos dos donos dos maiores jornais ou sobrinhos dos artistas mais influentes na cena cultural local – todos são sócios mais ou menos dos mesmos clubes de campo, estudam nas mesmas escolas e vão a vernissages nas mesmas galerias, convidados para os mesmos jantares nos mesmos salões nobres onde, em suma, a vida nacional é decidida.

A elite, nesse sentido, é elite do poder, no sentido de inventar ativamente distintos espaços sociais para que a manutenção do poder se autorregule. Bem, é evidente que no caso de um país absurdamente desigual como o Brasil, o dinheiro viabiliza esse tráfego. A classe trabalhadora não pertence à elite do poder. Na ditadura, em que a liberdade da palavra e as condições mínimas para a mobilidade social estão severamente comprometidas, as elites se bastam, em um círculo vicioso.

Os capitais da elite

O dinheiro é o catalisador determinante dessa repetição, mas junto há capitais simbólicos específicos, sendo acumulados e transferidos segundo regras específicas, e a circulação nesses espaços sociais depende também da especificidade dos códigos comportamentais, corporais, linguísticos. Vale lembrar que acumular muito dinheiro não garante automaticamente o passaporte para a elite do poder: há uma peneira, um teste de condutas que costuma ser decisivo.

Imagine um “novo milionário” que ganhou na loteria, pleiteando um lugar ao sol na elite do poder. Sobre ele estará a névoa da desconfiança, pois, afinal, ele pode ser um aventureiro, um inconsequente, talvez um criminoso, certamente um desprovido de capital cultural. São ilustrações de um habitus, para falar com Bourdieu, essa espécie de “patrimônio imaterial”, de disposição instantânea do corpo e da palavra para agir adequadamente nas ocasiões: é preciso não falar alto demais, ou falar sem pensar; é preciso saber se portar à mesa, ter repertório, ter lido e viajado o suficiente, ter sobrenome, cultivar o gosto refinado, saber se vestir.

Os estabanados nunca são convidados para as mesas das decisões, pois eles podem colocar eventualmente tudo a perder. A tendência autoconservadora da elite do poder inclui e exclui pelo dinheiro, sem dúvidas, mas também por essas disposições inconscientes do habitus, negociadas em capitais simbólicos e culturais específicos.

Elite que não se confunde com “ricos”

Bem, lembraria que a presença centenária da psicanálise na cultura brasileira fez com que que muitos psicanalistas ocupassem e ocupem ainda hoje o lugar de intelectuais públicos. Mencionei anteriormente a Maria Rita Kehl, e durante o período ditatorial, temos o exemplo notável do Hélio Pellegrino. Trata-se de alguém absolutamente ciente de seus privilégios; bastaria apenas lembrar que ele foi casado por décadas com Pentagna Guimarães – uma família mineira de banqueiros e empresários que figura entre as mais ricas do Brasil até hoje.

O ponto é que Pellegrino fez das oportunas facilitações de tráfego na elite do poder um instrumento de reflexão crítica, de luta e transformação. Foi colunista dos maiores jornais cariocas da época, foi perseguido em função de suas posições políticas e chegou a ser preso após o decreto do AI-5. Depois, participou ativamente dos principais veículos da chamada imprensa alternativa, como o jornal Opinião, e jogou muita gasolina no fogo quando o caso Amílcar Lobo veio à tona.

Se quisermos pensar em algo como uma “elite responsável”, orientada por alguma consciência de classe (a trajetória de Pellegrino me parece exemplar nesse assunto), eu diria que a psicanálise no Brasil ocupa positivamente um lugar importante na elite cultural e intelectual há mais de meio século. Ou seja, pegando carona na trajetória do Hélio Pellegrino aqui, trata-se de um tipo de elite, mas que decididamente não se confunde com essa burguesia ignorante, “aporofóbica” e reacionária que caracteriza um setor substantivo dos “mais ricos” do Brasil.

Agora, do ponto de vista das grandes decisões da vida nacional, a relevância política dos psicanalistas era absolutamente secundária, de importância menor. É uma versão da polêmica das nomenclaturas “ditadura militar”, “civil-militar”, “empresarial-militar” – predileções à parte, em todas ela há essa ênfase de que em última instância o regime era militar, quem mandava e decidia os rumos do país era o grupo militar dirigente.

Não tive notícias nos arquivos que pesquisei de participações diretas de psicanalistas nas conspirações do golpe de 64, por exemplo. Isso talvez seja suficiente para dizer que não haveria nada “espontaneamente elitista” na psicanálise, como se fosse uma “tendência burguesa acumuladora” ou algo que o valha.

Luta de classe na psicanálise

Desafiaria os leitores aqui a encontrar na obra de Freud uma sentença do tipo “a psicanálise deve se restringir a escutar pessoas ricas”. Pelo contrário. Hoje é bastante conhecido o discurso de Freud em um Congresso de Budapeste logo ao fim da 1ª Guerra Mundial, em que ele defende claramente que a psicanálise deveria lutar para construir clínicas públicas e gratuitas, acessíveis a quem quer que seja.

Esses são índices que confirmavam a necessidade de historicizar e regionalizar a pergunta que você me fez aqui, analisando quais foram as condições de recepção e difusão da psicanálise no Brasil desde antes do período ditatorial. O livro foi, no fundo, a forma que encontrei para acertar as contas com a famigerada caricatura de “elitista” que se incrustou nos movimentos psicanalíticos brasileiros.

É fato que muitos psicanalistas que participaram da implantação da psicanálise no Brasil eram ricos, no caso de São Paulo havia os grupos de quatrocentões, herdeiros da aristocracia cafeeira e afins. Mas é igualmente verdade que havia muitos psicanalistas das camadas sociais médias, médicos e não médicos, desprovidos do tal patrimônio imaterial, em processo de ascensão social. Ou seja, os movimentos psicanalíticos nacionais não eram blocos indivisíveis e homogêneos em termos de pertencimento de classe, havia rachaduras internas neles desde antes da ditadura.

O que a ditadura revelou foi o aprofundamento dessas fendas na psicanálise, um aprofundamento que nada mais é do que o resultado da luta de classes que lhe é intestina. Depois de todo esse preâmbulo, posso responder: por mais que ela tenha de fato se encolhido por décadas nas elites financeiras, foi na ditadura (paradoxalmente) que as rachaduras se escancararam e, junto com elas, escancarou-se a necessidade de a psicanálise firmar compromisso com a democracia e com a justiça social. É uma outra forma de interpretar a expansão anômala da psicanálise na ditadura, que estava na primeira pergunta: a história que prova que não há uma tendência inexorável da psicanálise rumo aos “mais ricos”.

IHU – Você também trata da criação da “Revista Brasileira de Psicanálise” (RBP) e do embate com a imprensa da época. O que pode elencar de mais relevante e singular a respeito?

Rafael Alves Lima – A RBP foi a primeira revista oficial especificamente de psicanálise publicada no Brasil, em 1928. Durou um só volume, passou uma longa temporada em hibernação editorial, e voltou a ser publicada em 1967.

Toda revista desse porte representa para aqueles que publicam nela um momento no que poderíamos chamar de o longo rito da consagração intelectual. A pessoa submete o artigo, ele passará pelo crivo pelos editores, que por sua vez encaminharão para os avaliadores, que dirão sim ou não para aquela publicação caso o conteúdo seja condizente com a linha editorial da revista – que por sua vez é também uma linha política que, em tempos de censura, faz cálculos do que pode ou não ser ali veiculado, e por aí vai. Veja que são muitas e muitas camadas, são muitos tributos pagos a muitos intermediários até o texto vir a público.

No caso de livros, que conta com paratextos (prefácio, quarta capa, orelha), que preparam a recepção do livro, os ritos de consagração são igualmente explícitos, mas uma revista como a RBP evidencia posições de toda uma instituição. Ou seja, tanto revistas do tipo RBP quanto livros são materiais para pesquisas históricas incríveis, e foi nessa aventura que eu embarquei.

Ter artigo publicado em uma revista como a RBP era como ganhar um selo de autenticidade, uma garantia simbólica de pertencimento ao campo. Ou seja, não é apenas uma questão de conteúdo, publicar é entrar no jogo do reconhecimento pelos pares como um agente legítimo.

Não é por acaso que os embates que apareciam na imprensa da época eram majoritariamente dedicados à formação dos psicanalistas. Havia muito charlatanismo e oportunismo no contexto do boom. Um caso que eu analiso no livro é o da autodeclarada “Escola Superior de Psicanálise”, cujo nome já diz muito, um nome que emula a academia, mas que de acadêmico não tinha nada. Muitos psicanalistas que veiculavam suas produções na RBP se viram impelidos a explicar o que é a formação de psicanalistas, o que fazia sentido naquele contexto histórico. Virginia Bicudo, por exemplo, escreveu artigos em que fazia uma defesa quase intransigente da instituição ipeísta.

Faltou coerência

Foi um ponto de contraste interessante para a pesquisa: quando um psicanalista que escrevia para a RBP precisou escrever algo para uma Folha de SP, por exemplo, ele tomou posições públicas mais ousadas ou mais conservadoras? A resposta é: na imensa maioria das vezes, as posições públicas eram predominantemente conservadoras, mas internamente, nas revistas oficiais, foram às vezes admitidas algumas posições um pouco menos tradicionalistas.

Durante a pesquisa comprando os exemplares da RBP em sebos. Virou quase uma pequena coleção particular, acredito que hoje eu devo ter todos os números da revista até meados dos anos 1980. Não há dúvidas de que se trata de uma revista comprometida, séria, com conteúdo de alta qualidade, editada por excelentes profissionais da área até hoje.

A Aline Rubin fez uma ótima pesquisa de levantamento das revistas de psicanálise do período militar, e é muito interessante observar que, de certo modo, a RBP serviu como um parâmetro direto ou indireto para outras revistas de psicanálise da época. O que salta aos olhos é a diferença com revistas assumidamente progressistas como a Tempo Brasileiro, ou a Revista de Cultura Vozes (para pegar duas que não eram exclusivas de psicanálise, mas que, de tempos em tempos, dedicavam edições especiais ao tema), a discrepância do tom político nos conteúdos era muito grande.

Estudar as revistas é uma ótima forma de entender essa diversidade de posições, o campo editorial costuma mesmo ser um termômetro do campo, e, com a psicanálise, não foi diferente.

IHU – Segundo o “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”, em 1952 havia 128 categorias para a descrição de modalidades de sofrimento psíquico. Em 2013, passou para 541 categorias. O que justifica tão amplo aumento nas formas de nomear o sofrimento psíquico em 60 anos?

Rafael Alves Lima – Esse aumento é estarrecedor e ainda precisa ser muito mais estudado e combatido do que vem sendo. Estive no Latesfip desde o ano que ele foi fundado, participei como coautor de alguns capítulos de dois livros que lançamos há alguns anos, o “Patologias do Social” e o “Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento Psíquico”.

Analisamos, por exemplo, como categorias diagnósticas tradicionais, como a neurose, foram paulatinamente desaparecendo (o que é muito esquisito, acho impossível pensar a psicopatologia psicanalítica sem a categoria de neurose), enquanto outras como paranoia ou mesmo fetichismo foram se tornando subespécies de “transtornos” ou “distúrbios”, o que emula uma falsa equivalência em psicopatologia. Essas categorias tinham e seguem tendo altíssima valência política (o fetichismo da mercadoria em Marx, a indissociabilidade entre capitalismo e esquizofrenia em Deleuze) e a pertinência delas indica exatamente a convivência produtiva entre crítica social e psicopatologia.

Nem precisamos apelar para a psicanálise aqui, bastaria notar que outras tradições em psicopatologia, como a fenomenológica, também estão sendo asfixiadas por essa esmagadora “manualização” da psicopatologia dos DSMs dos últimos anos. Não é por acaso que temos, de um lado, categorias impertinentes ou de reputação duvidosa como alguns transtornos ligados à infância (opositor-desafiador, hiperatividade e outros) se multiplicando de forma perigosa, autojustificada, quase uma reprodução por partenogênese.

De outro, categorias como a “personalidade antissocial” ou as ditas “disforias” ou “incongruências de gênero” sendo adotadas de modo negligente, como se fosse possível etiquetar o sofrimento psíquico e tratá-lo desconsiderando a singularidade da experiência do sujeito em termos de raça, território, gênero e classe.

O despreparo em relação a estes atravessamentos sociais leva a diagnósticos descontextualizados muito nocivos, nos quais pobres e negros são lidos como antissociais, pessoas não binárias como “disfóricas” e coisas nessa linha. Tudo isso vai na mais absoluta contramão daquilo que deve ser uma psicopatologia crítica, voltada a pensar a clínica e a cura como liberdade e emancipação, e não como uma rotulação despropositada.

A multiplicação incalculável de categorias diagnósticas é diretamente proporcional à multiplicação das formas mais sofisticadas da dominação capitalista na contemporaneidade. Uma depende da outra. É por isso que a crítica deve seguir seu curso nas duas frentes simultaneamente.

IHU – Atualmente, há um alto índice de uso de drogas psiquiátricas, uma mercantilização do bem-estar. Como vê e avalia esta realidade?

Rafael Alves Lima – É sempre importante lembrar que a história dos homens é também uma história do recurso a substâncias para obter prazer por meio da alteração dos estados de consciência. Para retomar o belo título do livro do Rodrigo Alencar, é a fome da alma, e ela atravessa os tempos.

Freud nos traz essa advertência da modernidade em “O mal-estar na civilização”, de que a intoxicação nunca será um atalho para a felicidade, muito embora prometa sê-lo. Acho que hoje, sob o neoliberalismo, essas promessas dobraram a aposta, e o efeito é que cada vez mais a gente tem recolhido os efeitos deletérios de um uso crônico de medicações. Esse uso indiscriminado tem se revelado bastante perigoso.

Tendo a pensar que a incompetência diagnóstica, quando reduzida a um mero checklist de sintomas, é o caminho mais curto para a medicalização do sofrimento. O neoliberalismo precariza a clínica porque o sonho neoliberal é poder prescindir do clínico. Imagine um cenário em que o sujeito se autodiagnostica pelo app e pede o remédio pelo delivery. Seria a morte da clínica, certo? Daí eu pergunto: será que estamos mesmo tão longe desse cenário? Ou ele está mais próximo do que estamos dispostos a aceitar?

Sempre tendo a achar que o pior não é a substância em si, mas a indústria que fabrica, vende, torna-a necessária. Esse regime de necessidade, em que a pessoa precisa dormir, precisa acordar, precisa desempenhar certos papéis na família e no trabalho, é o problema. A medicalização do sofrimento nada mais é do que a extensão inevitável dessa nossa forma de vida orientada por falsas urgências.

IHU – No fim de 2024, houve um debate, na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), sobre a possibilidade de retirada dos fármacos na vida dos pacientes. Considera positiva e viável essa mudança?

Rafael Alves Lima – Retirar as medicações abruptamente poderia ser algo clinicamente irresponsável, afinal, seria como jogar o sujeito no lugar mais adoecedor que é a própria sociedade. Retirar os recursos que ele tem pode ser temerário.

Agora, certamente há uma mudança viável que seria a suspensão dessa imediaticidade cultural da medicação. É espantoso como o sujeito, diante do sofrimento, pensa primeiro em remédio, depois em outro remédio, depois em talvez tentar uma substância que ainda não foi autorizada pela Anvisa. E, lá em último da fila, como a última opção, enfim, a palavra, a partilha, a experiência comunitária como saída do sofrimento. Parece, que salvo exceções pontuais, sequer tentamos viabilizar essas formas de vida comunitárias, nosso hiperindividualismo ignora completamente a possibilidade de outras formas de existir, ignora aquilo que os saberes originários e indígenas entendem por saúde e bem-estar, por exemplo.

Estamos insistindo no erro há décadas e isso é evidente. Retirar os fármacos para jogar as pessoas na lama neoliberal é piorar o erro, mas se formos capazes de reinventar a sociedade, talvez isso se torne uma medida interessante. Seguindo o raciocínio de que a indústria farmacológica tentacular é mais nefasta do que a substância em si, penso que mais do que retirar os fármacos, precisamos realmente tomar os meios de produção.

Penso no caso inspirador do Coletivo Socialista de Pacientes (SPK), de Heidelberg. Talvez as clínicas públicas de psicanálise possam almejar uma radicalidade mais enérgica em algum momento. De todo modo, só no interior de um processo de transformação mais arrojado que eu consigo imaginar uma mudança como essa sendo realmente positiva e viável.

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