17 Outubro 2024
O aquecimento global, pelo menos para os bilionários proprietários de minas e seus cúmplices ocidentais, continuará a ser uma reflexão tardia, bem como uma justificativa para a exploração de mais minerais essenciais da África. Considere isso um novo tipo de colonialismo, desta vez com um verniz de capitalismo verde. Há simplesmente muitos programas de inteligência artificial para executar, muitos dispositivos tecnológicos para fabricar e muito dinheiro para ganhar”. A reflexão é de Joshua Frank, em artigo publicado originalmente por TomDispatch, e reproduzido por Voces del Mundo, 14-10-2024. A tradução é do Cepat.
Colaborador regular do TomDispatch, Joshua Frank é um premiado jornalista californiano e coeditor de CounterPunch. Ele é o autor do novo livro Atomic Days: The Untold Story of the Most Toxic Place in America (Haymarket Books).
Considerada por muitos como a joia da coroa de Angola, Lobito é uma colorida cidade portuária localizada na pitoresca costa atlântica do país, onde uma faixa de terra de quase cinco quilômetros cria um porto natural. Suas praias de areia branca, águas azuis vibrantes e clima tropical temperado fizeram de Lobito um destino turístico nos últimos anos. No entanto, por baixo da sua nova e brilhante fachada esconde-se uma história repleta de violência colonial e exploração.
Os portugueses foram os primeiros europeus a reivindicar Angola no final do século XVI. Não cederam, durante quase quatro séculos, até que uma sangrenta guerra civil de 27 anos com guerrilhas anticoloniais (auxiliadas pelas Forças Armadas Revolucionárias Cubanas) e reforçadas por um golpe de Estado de esquerda na distante Lisboa, capital de Portugal, derrubou esse regime colonial em 1974.
O porto de Lobito foi o coração econômico do reinado português em Angola, juntamente com a sinuosa estrada de ferro de Benguela, com 1.866 quilômetros, que começou a operar no início do século XX. Durante grande parte do século XX, Lobito foi o centro de exportação para a Europa de produtos agrícolas e metais extraídos do cinturão do cobre africano. Hoje, o cinturão do cobre segue sendo uma região rica em recursos que abrange grande parte da República Democrática do Congo e o norte da Zâmbia.
Talvez não surpreenda saber que, meio século depois de Portugal ter terminado o controle colonial de Angola, o neocolonialismo está colocando as suas garras em Lobito. Seu porto e a estrada de ferro de Benguela, que atravessa o chamado corredor de Lobito, tornaram-se um centro-chave nos esforços da China e do mundo ocidental para passar dos combustíveis fósseis para fontes de energia renováveis no nosso novo e quente país. Se os interesses capitalistas continuarem a impulsionar esta transição crucial, o que é muito provável, até que o consumo global de energia seja radicalmente reduzido, a quantidade de minerais críticos necessários para alimentar o futuro global permanecerá insondável. O Fórum Econômico Mundial estima que serão necessários 3 bilhões de toneladas de metais. O Fórum Internacional de Energia estima que, para cumprir as metas globais de redução radical das emissões de carbono, precisaremos também de 35 a 194 enormes minas de cobre até 2050.
Não deveria surpreender que a maior parte dos minerais, do cobre ao cobalto, necessários para a maquinaria dessa transição (incluindo baterias elétricas, turbinas eólicas e painéis solares) seja encontrada na América Latina e na África. Pior ainda, mais da metade (54%) dos minerais críticos necessários são encontrados em ou perto de terras indígenas, o que significa que as populações mais vulneráveis do mundo são as que correm maior risco de serem profundamente afetadas negativamente pelas futuras operações de mineração e relacionadas.
Se quisermos compreender o que o futuro reserva para um país do mundo “em desenvolvimento”, como os economistas ainda gostam de chamar estas regiões, basta olhar para o Fundo Monetário Internacional (FMI). “Com a crescente procura, as receitas provenientes de minerais críticos deverão aumentar significativamente nas próximas duas décadas”, informa o FMI. “Estima-se que as receitas globais provenientes da extração de apenas quatro minerais essenciais – cobre, níquel, cobalto e lítio – atinjam 16 bilhões de dólares nos próximos 25 anos. A África Subsariana pode colher mais de 10% destas receitas cumulativas, o que poderá corresponder a um aumento do PIB da região de 12% ou mais até 2050”.
Acredita-se que só a África Subsaariana contém 30% do total das reservas minerais críticas do mundo. Estima-se que o Congo seja responsável por 70% da produção mundial de cobalto e aproximadamente 50% das reservas do planeta. Na verdade, a demanda por cobalto, um ingrediente chave na maioria das baterias de íons de lítio, está aumentando rapidamente devido à sua utilização em tudo, desde telefones celulares a carros elétricos. No que diz respeito ao cobre, a África tem dois dos principais produtores mundiais: a Zâmbia representa 70% da produção do continente. “Esta transição, acrescenta o FMI, se gerida de forma adequada, tem o potencial de transformar a região”. E, claro, não será uma transformação bonita.
Embora estes minerais essenciais possam ser extraídos nas zonas rurais do Congo e da Zâmbia, devem chegar ao mercado internacional para serem rentáveis, o que torna Angola e o corredor de Lobito fundamentais para a próspera indústria mineira da África.
Em 2024, a China comprometeu-se a investir 4,5 bilhões de dólares apenas em minas africanas de lítio e outros 7 bilhões de dólares em infraestruturas de mineração de cobre e cobalto. No Congo, por exemplo, a China controla 70% do setor mineiro.
Tendo ficado para trás durante anos nos investimentos nesse país da África, quer agora recuperar terreno.
Em setembro de 2023, à margem da reunião do G20 na Índia, o secretário de Estado Antony Blinken, dos Estados Unidos, assinou discretamente um acordo com Angola, Zâmbia, a República Democrática do Congo e a União Europeia para lançar o projeto do corredor de Lobito. Não houve muito alarde ou cobertura da imprensa, mas os Estados Unidos deram um passo importante. Quase 50 anos depois de Portugal ter sido forçado a abandonar Angola, o Ocidente estava de volta, oferecendo um compromisso de 4 bilhões de dólares e avaliando a necessidade de atualizar as infraestruturas construídas inicialmente pelos colonizadores europeus. Com uma necessidade crescente de minerais essenciais, os países do Ocidente estão agora se concentrando na África e nos seus tesouros de energia verde.
“Reunimo-nos num momento histórico”, disse o presidente Joe Biden ao dar as boas-vindas ao presidente angolano João Lourenço em Washington no ano passado. Biden chamou então o projeto de Lobito de “o maior investimento ferroviário estadunidense na África da história” e afirmou o interesse do Ocidente no que a região pode oferecer no futuro. “Os Estados Unidos, acrescentou, estão com a África... Estamos com vocês e com Angola”.
Tanto a África como os Estados Unidos, sugeriu Biden, se beneficiarão desta coalizão. É claro que esse é precisamente o tipo de retórica que podemos esperar quando os interesses ocidentais (ou chineses) procuram aproveitar os recursos do Sul Global. Se se tratasse do petróleo ou do carvão, surgiriam, sem dúvida, questões e preocupações sobre as intenções regionais dos Estados Unidos. No entanto, tendo a luta contra as mudanças climáticas como disfarce, poucos consideram as ramificações geopolíticas desta posição, e menos ainda reconhecem as repercussões do massivo aumento da mineração no continente.
No seu livro Cobalt Red (Cobalto vermelho), Siddharth Kara expõe as condições sangrentas enfrentadas pelos mineiros de cobalto no Congo, muitos deles crianças que trabalham contra a sua vontade durante dias a fio, com pouco tempo para dormir e em condições insuportavelmente abusivas. A terrível história é muito semelhante na Zâmbia, onde as exportações de cobre representam mais de 70% das receitas totais do país. Um relatório devastador de 126 páginas da Human Rights Watch (HRW) de 2011 expôs a miséria nas minas de propriedade chinesa na Zâmbia: jornadas de trabalho de 18 horas, ambientes de trabalho inseguros, atividades antissindicais desenfreadas e acidentes de trabalho mortais. Há poucas razões para acreditar que a situação seja muito diferente nas explorações agrícolas mais recentes de propriedade ocidental.
“Amigos dizem que há um perigo quando estão saindo do turno”, disse à Human Rights Watch um mineiro que se feriu enquanto trabalhava para uma empresa chinesa. “Você será demitido se recusar, eles o ameaçam com isso o tempo todo... Os acidentes mais frequentes são por quedas de pedras, mas você também pode levar choques elétricos, ser atropelado por caminhões de mineração no subsolo, cair de uma plataforma, que não são estáveis ...Quando sofri um acidente, estava em uma caixa de carga. O capitão da mina… não montou plataforma. Então, quando estávamos trabalhando, uma pedra caiu e bateu no meu braço. Quebrou a ponto de o osso sair do meu braço”.
A explosão de uma mina matou 51 trabalhadores em 2005 e as coisas só pioraram desde então. Dez trabalhadores morreram em 2018 numa área de mineração ilegal de cobre. Em 2019, três mineiros morreram queimados num incêndio em um poço subterrâneo, e um deslizamento de terra numa mina de cobre a céu aberto na Zâmbia matou mais de 30 mineiros em 2023. Apesar destes horrores, há uma corrida para extrair cada vez mais cobre na Zâmbia. Em 2022, cinco gigantescas minas de cobre a céu aberto e outras oito minas subterrâneas operavam no país, muitas das quais serão ampliadas nos próximos anos. Com novas minas apoiadas pelos EUA em andamento, Washington acredita que o corredor de Lobito pode ser o elo que faltava para garantir que o cobre da Zâmbia acabe em produtos de energia verde consumidos no Ocidente.
O escritório da KoBold Metals no pitoresco centro de Berkeley, Califórnia, fica o mais longe possível das minas sujas da Zâmbia. Mas na sede anódina da KoBold, situada no alto de uma fileira de bares e restaurantes da moda, uma equipe de empresários tecnológicos trabalha diligentemente para localizar a próxima grande operação mineira da Zâmbia usando Inteligência Artificial (IA) patenteada. Apoiada pelos bilionários Bill Gates e Jeff Bezos, a KoBold apresenta-se como uma máquina ecológica do Vale do Silício, comprometida com a transição energética ecológica do mundo (ao mesmo tempo que obtém enormes lucros).
É claro que a KoBold está interessada em garantir as reservas de energia do futuro, porque será necessária uma imensa quantidade de energia para manter o seu mundo artificialmente inteligente. Um relatório recente da Agência Internacional de Energia estima que, num futuro próximo, a utilização de eletricidade pelos centros de dados de IA aumentará significativamente. Em 2022, estes centros de dados já utilizavam 460 terawatts-hora (TWh), mas estão no caminho para aumentar para 1.050 TWh em meados da década. Para colocar isto em perspectiva, o consumo total de energia da Europa em 2023 foi de cerca de 2.700 TWh.
“Qualquer pessoa que esteja no setor das energias renováveis no Ocidente está à procura de cobre e cobalto, que são essenciais para a fabricação de veículos elétricos”, explicou Mfikeyi Makayi, CEO da KoBold na Zâmbia, ao Financial Times em 2024. “Isso vai sair desta parte do mundo, e o caminho mais curto para tirá-los é Lobito”.
Makayi não mediu palavras. Os minerais críticos das minas da KoBold não acabarão ficando na Zâmbia ou em qualquer outro país africano. Destinam-se exclusivamente aos consumidores ocidentais. O CEO da KoBold, Kurt House, também é sincero sobre suas intenções: “Não preciso ser lembrado novamente de que sou um capitalista”, brinca.
Em julho de 2024, House ligou para os investidores de sua empresa com uma grande notícia: a KoBold tinha acabado de tirar a sorte grande na Zâmbia. Sua nova tecnologia de IA localizou a maior descoberta de cobre em mais de uma década. Uma vez operacional, poderá produzir mais de 300 mil toneladas de cobre por ano ou, na linguagem que os investidores entendem, o dinheiro estará fluindo em breve. No final do verão de 2024, uma tonelada de cobre no mercado internacional custará mais de US$ 9.600. É claro que a KoBold apostou alto gastando 2,3 bilhões de dólares para ter a mina da Zâmbia operacional até 2030. Não há dúvida de que os investidores da KoBold estavam entusiasmados com a perspectiva, mas nem todos estavam tão entusiasmados quanto eles.
“O valor do cobre que saiu da Zâmbia é de centenas de milhares de milhões de dólares. Tenha esse número em mente e depois olhem à volta na Zâmbia”, diz o economista zambiano Grieve Chelwa. “A relação entre recursos e benefícios foi quebrada”.
A Zâmbia não apenas renunciou aos benefícios dessa mineração, mas – posso garantir-lhes – o seu povo terá de sofrer com a desordem local resultante.
A Konkola Copper Mines (KCM) é hoje o maior produtor de minério da Zâmbia, extraindo um total de dois milhões de toneladas de cobre por ano. É um dos maiores empregadores do país, com um histórico brutalmente longo de abusos contra os trabalhadores e o ambiente. A KCM opera a maior mina a céu aberto na Zâmbia, que ocupa uma área de 11 quilômetros. Em 2019, a britânica Vedanta Resources adquiriu a participação de 80% na KCM, cobrindo 250 milhões de dólares da dívida daquela empresa. A Vedanta tem muito dinheiro e é dirigida pelo bilionário indiano Anil Agarwal, carinhosamente conhecido no mundo da mineração como “o Rei do Metal”.
Uma coisa é certa: você não se torna o Rei do Metal sem deixar resíduos tóxicos em sua pele. Na Índia, as minas de alumina de Agarwal contaminaram as terras das tribos indígenas Kondh da província de Orissa. Na Zâmbia, as suas minas de cobre destruíram terras agrícolas e cursos de água que outrora forneciam peixe e água potável a milhares de moradores.
O rio Kafue corre por mais de 1.500 quilômetros, tornando-se o rio mais longo da Zâmbia e agora provavelmente também o mais poluído. De norte a sul, suas águas fluem pelo cinturão do cobre, carregando consigo cádmio, chumbo e mercúrio da mina KCM. Em 2019, milhares de aldeões zambianos processaram a Vedanta, alegando que a sua subsidiária KCM tinha envenenado o rio Kafue e causado danos irreparáveis às suas terras.
Na época, a Suprema Corte britânica considerou a Vedanta responsável, que foi forçada a pagar uma indenização não revelada, provavelmente na casa dos milhões de dólares. Uma vitória tão histórica para os aldeões zambianos não poderia ter acontecido sem o trabalho de Chilekwa Mumba, ativista que organizou as comunidades e convenceu um escritório de advocacia internacional a assumir o caso. Mumba cresceu na região de Chingola, na Zâmbia, onde seu pai trabalhava nas minas.
“As atividades mineiras causaram degradação ambiental. Como descobrimos, houve momentos em que os níveis de ácido na água eram muito elevados”, explicou Mumba, que recebeu em 2023 o prestigiado Prêmio Ambiental Goldman. “Portanto, houve queixas muito específicas sobre problemas estomacais das crianças. As crianças andam pelas aldeias e, se têm sede, não pensam no que está acontecendo, apenas pegam um copo e bebem água do rio. É assim que vivem. Por isso, muitas vezes contraem doenças. É difícil quantificar, mas está claro que o impacto existiu”.
Infelizmente, apesar dessa importante vitória jurídica, pouco mudou na Zâmbia, onde as regulamentações ambientais continuam fracas e quase impossíveis de aplicar, deixando às empresas mineradoras como a KCM a tarefa da autorregulação. Um projeto de lei da Zâmbia de 2024 procura criar um órgão regulador para supervisionar as operações mineiras, mas a indústria opôs-se a ele, motivo pelo qual não está claro se irá virar lei. Mesmo que a lei seja aprovada, é provável que tenha pouco impacto real nas práticas de mineração do país.
O aquecimento global, pelo menos para os bilionários proprietários de minas e seus cúmplices ocidentais, continuará a ser uma reflexão tardia, bem como uma justificativa para a exploração de mais minerais essenciais da África. Considere isso um novo tipo de colonialismo, desta vez com um verniz de capitalismo verde. Há simplesmente muitos programas de inteligência artificial para executar, muitos dispositivos tecnológicos para fabricar e muito dinheiro para ganhar.