Erradicar a fome no Brasil só será possível com emprego e renda. Entrevista especial com Vladimir Milton Pomar

Para o professor, a reindustrialização nacional deve assegurar uma reviravolta no mercado e, com emprego garantido, a população terá condições de se alimentar melhor

Foto: Coletivo Marmitas da Terra

Por: João Vitor Santos | 19 Outubro 2023

O professor Vladimir Milton Pomar é taxativo: “há mais de 20 anos que a disponibilidade de alimentos no Brasil é mais do que o dobro da necessidade da população”. Ou seja, a fome que assola o país não é uma questão de oferta de comida, mas de acesso a ela. Ele ainda compreende que o Brasil nunca erradicou a fome. “O que ocorreu foi uma momentânea melhora do poder de compra da parcela da população antes sem dinheiro ou com muito pouco dinheiro. Isto graças à combinação da oferta de recursos mínimos dos programas federais para essas famílias sem o mínimo para comprar comida, com a condição inédita de ‘pleno emprego’ em 2013 e 2014”, destaca em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

É por isso que ele defende que a fome tem relação direta com emprego e renda e que, sem melhorar esse quadro, a insegurança alimentar nunca será afastada. “O único caminho consistente em 2023 para a erradicação da fome no Brasil é ter emprego e renda para toda a população em idade ativa. E a reindustrialização do Brasil será decisiva para viabilizar essa necessária reviravolta no mercado de trabalho. O povo brasileiro precisa de pleno emprego novamente, o que só será possível com a reindustrialização e com investimentos do governo federal em infraestrutura”, pontua.

Ao longo da entrevista, o professor analisa como o desenvolvimento agrícola brasileiro sempre aconteceu baseado em um modelo capitalista, que vai muito mais na direção da grande e larga produção do que na busca pelo fim da fome nacional. Ele alerta para outro problema de saúde pública que, por mais contraditório que possa parecer, tem relação com a fome e a dificuldade de acesso a alimentos: a obesidade. “O mundo obeso come por dois mundos, impactando negativamente os preços com suas demandas em dobro”, alerta. E completa: “ao encarar o elevado excesso de peso como algo 'normal', estamos contribuindo diretamente para o aumento da quantidade de pessoas passando fome, no Brasil e no restante do mundo”.

Vladimir Milton da Rocha Pomar (Foto: Arquivo pessoal)

Vladimir Milton da Rocha Pomar é técnico agropecuário, professor, graduado em Geografia, bacharelado e licenciatura plena, pela Universidade do Estado de Santa Catarina Udesc. Possui mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – Flacso/SP. Tem realizado trabalhos acerca da China há 26 anos. É autor de O sucesso da China socialista (1949-2025) (Insular, 2023).

Confira a entrevista.

IHU – Por que a fome que vivemos hoje no Brasil – ou há 20 anos, como o senhor coloca – não pode ser associada à escassez de produção de alimentos?

Vladimir Milton Pomar – Porque há mais de 20 anos que a disponibilidade de alimentos no Brasil é mais do que o dobro da necessidade da população (kg/habitante/ano), graças ao aumento da produção agropecuária ano após ano – resultante dos aumentos da produtividade e da área plantada –, muito acima do aumento populacional.

A produção brasileira de grãos, acima de 300 milhões de toneladas, é praticamente igual à da Índia, país com 1,4 bilhão de habitantes. As exportações brasileiras de carnes de frango, suínos e bovinos em grandes quantidades confirmam que há excedente de alimentos todos os anos no Brasil.

IHU – O que fez do Brasil um grande produtor de alimentos e, ao mesmo tempo, um país de gente famélica?

Vladimir Milton Pomar – Primeiro, a fome no Brasil é uma situação antiga, porque a maior parte da população sempre teve pouco dinheiro, insuficiente para se alimentar de acordo com a necessidade, e uns 10% do total quase nenhum dinheiro, o que impossibilitou para essa parcela a compra regular até de quantidade alimentar mínima.

Quando havia grandes secas no Nordeste, como a famosa de 1915, relatada por Rachel de Queiroz no romance O Quinze, a situação ficava ainda pior.

Desde o fim da década 1970, o governo federal e os governos de estados com maior potencial agropecuário ofereceram aos empresários grandes áreas de terras e vários tipos de subsídios (incentivos fiscais, empréstimos de longo prazo com juros baixos e até negativos) mais variadas formas de estímulos para que migrassem para o Centro-oeste, para produzir grãos na região do Cerrado. Esses estímulos para a produção receberam reforço externo, com o aumento da demanda de soja pela China, levando a exportação desse produto a quantidades milionárias crescentes.

IHU – Como a ideia de virar o celeiro do mundo levou o Brasil para o mapa da fome e o fez marcado por grande degradação ambiental? O que está por trás desta máxima?

Vladimir Milton Pomar – A degradação ambiental resultou principalmente da expansão da “agricultura industrial” no Rio Grande do Sul, Paraná, na região do Cerrado e no sul da Amazônia, porque a lógica era de devastação total, para deixar totalmente “limpas” áreas gigantescas, facilitando a utilização de tratores e implementos de grande porte e colheitadeiras. Com isso, milhões de hectares no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e em outros estados passaram a ser totalmente expostos ao Sol e às chuvas, com sérios impactos nas condições dos solos e águas dessas duas regiões.

O que está por trás dessa ideia de “celeiro do mundo” é a lógica capitalista de produção de grãos em grande escala, utilizando o conhecimento técnico e a enorme capacidade instalada existente no Sul e no Sudeste brasileiros, que foram levados para o Centro-oeste para expandir a produção em níveis jamais sonhados há 50 anos.

IHU – O Brasil já havia conseguido erradicar a fome. Como conseguimos isso e por que voltamos ao mapa da fome?

Vladimir Milton Pomar – O Brasil não erradicou a fome. O que ocorreu foi uma momentânea melhora do poder de compra da parcela da população antes sem dinheiro ou com muito pouco dinheiro. Isto graças à combinação da oferta de recursos mínimos dos programas federais para essas famílias sem o mínimo para comprar comida, com a condição inédita de “pleno emprego” em 2013 e 2014, que proporcionou à classe trabalhadora melhores salários e, consequentemente, maior poder aquisitivo, com reflexos diretos no acesso à alimentação.

Portanto, o que houve realmente foi uma diminuição da pobreza econômica da maioria do povo. Com dinheiro, passaram a comer.

E voltamos ao mapa da fome porque os desgovernos federais a partir do golpe de 2016 e da eleição do NOJO em 2018 promoveram sucessivos prejuízos financeiros à maioria da população, via desemprego e redução real do salário-mínimo, empobrecendo rapidamente milhões de pessoas. Muitas dessas pessoas se viram obrigadas a sair de suas casas para viver em situação de rua, reduzindo drasticamente a sua alimentação. Diariamente dias as TVs mostravam geladeiras vazias, pratos vazios, e o desespero das mães e dos pais, sem comida para oferecer aos seus filhos e filhas.

IHU – Como podemos compreender o papel de instituições como a Embrapa no desenvolvimento da produção agrícola no Brasil? Em que medida essas instituições de apoio e extensão rural contribuíram/contribuem para a diminuição da fome no país?

Vladimir Milton Pomar – Essas instituições cumpriram/cumprem um papel fundamental para o aumento da produtividade de plantações e criações. Graças às suas atividades, o país aumentou a produção de grãos e de outros alimentos em todas as regiões, o que permitiu um crescimento exponencial das exportações de soja, carnes e outros produtos. Dessa forma, elas contribuíram e seguem contribuindo para o aumento significativo principalmente de produtos agropecuários para exportação.

Lembrando que a fome no Brasil hoje não tem a ver com a disponibilidade física de alimentos, calculada a partir de conta simples de divisão do total produzido pela população, mas sim com a falta de recursos de grande parte da população. Em outras palavras, não houve contribuição direta dessas instituições para a diminuição da fome no Brasil.

IHU – Debates sobre desenvolvimento econômico, indústria 4.0, startups, agro tech podem ser um caminho para a erradicação da fome?

Vladimir Milton Pomar – O único caminho consistente em 2023 para a erradicação da fome no Brasil é ter emprego e renda para toda a população em idade ativa. E a reindustrialização do Brasil será decisiva para viabilizar essa necessária reviravolta no mercado de trabalho. O povo brasileiro precisa de pleno emprego novamente, o que só será possível com a reindustrialização e com investimentos do governo federal em infraestrutura – construção de ferrovias, portos fluviais e marítimos etc.

IHU – Quais caminhos possíveis que o senhor indica para a erradicação da fome no Brasil de hoje?

Vladimir Milton Pomar – Está tudo pesquisado, debatido, escrito e colocado em prática, durante os dois governos Lula e o primeiro governo Dilma (2011-2014). Por isso, acredito que em 2024 haverá uma redução importante da quantidade de pessoas famintas e em situação de rua, graças ao aumento do emprego e da geração de renda.

A Companhia Nacional de Abastecimento – Conab tem um papel importante para a erradicação da fome, assim como os ministérios do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura e Pecuária, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e o Banco do Brasil. Essas estruturas do Estado têm condições de reduzir bastante o desperdício de alimentos na armazenagem e no transporte e de baratear os alimentos básicos (arroz, feijão, farinha de mandioca, ovos, leite...).

Todas as cidades com mais de 200 mil habitantes devem ter restaurantes para a população de baixa renda poder receber três refeições diárias, pagando preços irrisórios. Creches e escolas devem oferecer comida não apenas para as crianças, mas também para os seus familiares. Os alimentos fornecidos nesses espaços devem ser preferencialmente produzidos pela Agricultura Familiar e comprados via Programa de Aquisição de Alimentos.

IHU – O senhor também acompanha a geopolítica. Como podemos compreender o quadro da fome no mundo? E que espaço o Brasil ocupa neste contexto?

Vladimir Milton Pomar – A fome mundial é mais complexa, existem situações diferenciadas. Na Índia, por exemplo, metade da população passa fome, mas os números oficiais apontam bem menos gente nessa condição. Nos países vizinhos da Ásia Central, a situação não é diferente. O drama mundial é que, além de Índia, Afeganistão, Bangladesh e Paquistão, com grandes populações famintas, há também dezenas de países africanos nos quais um terço da população se alimenta bem, e os dois terços restantes se equilibram entre a condição de apatia e a de “amanhã quem sabe”.

O Brasil tem responsabilidade com centenas de milhões de pessoas no mundo, em especial da Ásia e da África, que dependem de sua oferta de alimentos no mercado mundial para baratear os preços e, assim, lhes permitir comprar o mínimo necessário.

IHU – Fome Zero no mundo até 2030 é um dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS, da ONU. Considerando o atual cenário, este objetivo é utópico demais? Quais os entraves que o impedem de ser atingido?

Vladimir Milton Pomar – Sim, essa meta é utópica, pelo simples fato de que há no mundo quase quatro bilhões de pessoas com menos renda do que o mínimo necessário para se alimentar. E os entraves para alcançar a meta de Fome Zero no mundo são principalmente a falta de recursos, informações e propaganda. Em compensação, há a possibilidade de redução dos preços dos alimentos via subsídios para os consumidores e consumidoras.

IHU – Como podemos compreender a China neste contexto de fome e guerras pelo mundo?

Vladimir Milton Pomar – Estudando. Lendo sites e publicações. Pensando que com 1,4 bilhão de habitantes, a China conseguiu acabar com a fome porque antes acabou com a pobreza. O preocupante, no caso chinês, é que o país continua diminuindo sua população e, ao mesmo tempo, aumentando a proporção de pessoas idosas no total de habitantes. Do ponto de vista da fome, tudo indica que, mantidas as atuais condições, a China terá alterações importantes na sua demanda. Sucessivas correções de rota serão necessárias, para evitar a fome e as guerras (que geram fome).

IHU – Deseja acrescentar algo?

Vladimir Milton Pomar – Sim, duas coisas fundamentais. As guerras na Ucrânia (maior produtor de alimentos e fertilizantes da ex-União Soviética) e na Faixa de Gaza impactarão negativamente a fome no Brasil e no restante do mundo, porque cada centavo a mais no preço da comida aumenta a quantidade de famintos. E a questão mundial de Saúde Pública, a “Pandemia do Século 21”: a obesidade. De adultos, jovens e crianças. O mundo obeso come por dois mundos, impactando negativamente os preços com suas demandas em dobro (ou mais, muito mais). México e Estados Unidos lideram em quantidade de pessoas obesas.

O mais assustador na questão da obesidade é a naturalização desse grave problema de saúde pública, que eleva os custos do atendimento do Sistema Único de Saúde – SUS e encarece os preços dos alimentos. Ao encarar o elevado excesso de peso como algo “normal”, estamos contribuindo diretamente para o aumento da quantidade de pessoas passando fome, no Brasil e no restante do mundo.

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