Novo Arcabouço Fiscal é um teto de gastos suavizado. Entrevista especial com Gláucia Campregher

“A filosofia por trás da proposta do NAF está equivocada”, afirma a economista

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

Por: Edição: Patricia Fachin | 10 Mai 2023

O Novo Arcabouço Fiscal – NAF, apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em contraposição ao atual teto de gastos em vigência desde o governo Temer, tem suscitado inúmeros debates entre os economistas, especialmente entre os mais heterodoxos. Eles argumentam que a proposta “é um teto, mesmo que seja um teto suavizado”. Este é o raciocínio da economista Gláucia Campregher. O NAF, explica, “é um teto porque parte do ponto de vista de que é preciso ter uma meta de resultado primário, que será entre +0,25 e -0,25%. Somente se cumprir esta meta se poderá gastar até – e não mais do que isso – 70% do aumento das receitas. Ou seja, o NAF parte do ponto de vista de que precisa aumentar as receitas primeiro para poder gastar depois”.

No final do mês passado, 27-04-2023, Gláucia Campregher participou da segunda mesa de debates sobre a Reforma Fiscal do governo Lula, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em parceria com o economista José Carlos de Assis. Segundo ela, “por trás da política do novo arcabouço fiscal, apresentado recentemente pelo ministro Haddad, existe a ideia de que o bom é ter superávit”. Entretanto, adverte, “é importante entender que a filosofia por trás da proposta do NAF está equivocada”. E questiona: “Não seria racional atrelar o crescimento dos gastos ao crescimento da população, à melhoria de vida da população? Se a concentração de renda melhorar, então o gasto pode cair. Pronto. Será que não conseguimos fazer uma racionalização de outra natureza? Por que a racionalização precisa ter, por trás, a filosofia de que, acima de tudo, o orçamento para a população deve ficar dentro da arrecadação? Por quê? Essa pergunta merece uma resposta”.

Na noite de ontem, 09-05-2023, foi realizada a quarta mesa de debate sobre a reforma fiscal do governo Lula, com a participação dos economistas José Carlos de Assis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro  UFRJ, Sergio Vale, da Universidade de São Paulo USP, e Paulo Kliass, integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. O vídeo do debate está disponível aqui.

A seguir, publicamos, no formato de entrevista, a exposição de Gláucia Campregher.  

Gláucia Campregher (Foto: Reprodução | YouTube)

Gláucia Campregher é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Viçosa – UFV, mestre e doutora em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU – Em que consiste a proposta do arcabouço fiscal do governo Lula?

Gláucia Campregher – Este novo arcabouço fiscal está sendo chamado, por muitos economistas, de calabouço fiscal porque tem uma armadilha embutida em si, com a qual muitos de nós estamos preocupados. Gostaria de apresentar o porquê, a essência que há por trás do que está sendo apresentado.

Existe um grande problema no Brasil, que captura a mentalidade dos economistas mais bem intencionados – que vai desde colegas meus até o ministro da Fazenda – e também abrange o senso comum, as pessoas que no cotidiano acompanham a política brasileira. Esse problema consiste na compreensão segundo a qual não podemos gastar mais do que ganhamos. Isto é, em achar que o endividamento, que significa estar pegando uma dívida porque se quer gastar mais do que se ganha, é alguma coisa, em si e por si, indesejável, quando não irresponsável. Essa é a visão do senso comum no país porque há uma máquina trabalhando essa ideia: quantas vezes escutamos na televisão, no jornal, no horário nobre, que é errado gastar mais do que se ganha. Quantas vezes o Estado é associado à família, ao pai de família, com o argumento de que seria absurdamente irresponsável gastar mais do que ganha? Quão terrível seria ele deixar, para seus filhos e netos, uma dívida?

Por trás da política do novo arcabouço fiscal, apresentado recentemente pelo ministro [Fernando] Haddad, existe a ideia de que o bom é ter superávit e, de duas, uma: ou, para a arrecadação superar os gastos, arrecada-se mais, isto é, aumenta-se o tributo (e é nisso que Haddad está apostando), ou gasta-se menos. Em outras palavras, enquanto não aumentam os tributos, controlam-se os gastos e estes só são aumentados depois que aumentar os tributos. Então, por trás desta política, que está virando uma proposta para substituir o famigerado teto dos gastos do governo Temer, nós estamos vendo uma proposta que é quase tão ruim quanto a outra porque ela também é um teto de gastos.

Superávit

A sociedade civil tem feito um grande debate em torno do arcabouço fiscal, mas uma das questões que este debate precisa levar ao governo é a seguinte pergunta: Por que o superávit é tão fundamental? Quem disse que ele é fundamental? Quem disse que essa é a regra? É assim desde que o capitalismo existe? Que eu saiba, não. É assim nos anos recentes? É assim na política americana, que ampliou o gasto de 2008 para cá? Quem disse que o aumento do gasto financiado por dívida é negativo? Se o gasto não é financiado por aumento de tributo, tem que ser financiado por dívida? Quem disse que a dívida pública não é rolável? Quem disse que os ganhos com a dívida pública não ficam na mão dos setores privados? Essa pergunta simples, quase infantil, é importante de ser feita.

Por trás da política do novo arcabouço fiscal, apresentado recentemente pelo ministro [Fernando] Haddad, existe a ideia de que bom é ter superávit – Gláucia Campregher

IHU – A que atribui essa preocupação com o superávit?

Gláucia Campregher – Eu diria que o motivo de acreditar nessa fábula, de que o superávit é tão importante, está associado a dois aspectos. Primeiro, existe uma associação de que, se o Estado faz dívida e gasta, ele vai colocar muito dinheiro em circulação, o gasto vai ser descuidado, projetos ruins serão implementados, políticos ruins vão roubar e, com isso, cria-se uma fantasia negativa em torno do gasto público e do Estado em si. Então, as pessoas começam a pensar que seria racional enxugar o dinheiro, diminuir o tamanho do cobertor, porque aí as várias dimensões necessárias do gasto público vão brigar entre si e vai vencer a que for mais racional. Como se a escassez de dinheiro fizesse alguma política ser mais eficaz, bem-feita, efetiva, como se a qualidade do gasto viesse junto com a menor quantidade de dinheiro. Esse, para mim, é um dos pés desse tipo de raciocínio.

O segundo aspecto é que, se o Estado gasta menos, a iniciativa privada tem mais espaço. Esse pensamento, por incrível que pareça, faz mais sentido. Mas se o Estado ocupa um certo espaço na educação, na saúde e no próprio sistema produtivo, qual é o medo da iniciativa privada? Tem como a iniciativa privada ganhar dinheiro também se o Estado assumir para si essas funções? Do meu ponto de vista, sim. É possível ter um sistema de saúde e educacional que arque com o grosso dessas atividades, inclusive beneficiando a população que tem salários mais baixos, sem inviabilizar que esses mesmos serviços sejam oferecidos, com maior qualidade, para quem pode pagá-los. Mas muitos agentes da iniciativa privada dizem que, se o Estado atua nesses setores, ele abocanha um ganho que poderia ser da iniciativa privada. Esses dois argumentos deixam um pé atrás na cabeça dos mais poderosos, dos que detêm capital, para poder fazer este tipo de aposta, e isso cria um preconceito.

O preconceito contra a dívida pública, contra o gasto público, e a ideia de que o Estado só pode gastar aquilo que ganha remontam a décadas, centenas e milhares de anos. Muitos antropólogos dizem que a dívida é associada à ideia de culpa, de pecado; não é costume associar dívidas à ideia de compromisso para com o outro. Eu a associo com a ideia de compromisso para com o outro. O crédito, não à toa, está associado à ideia de credere, de acreditar. Esse tipo de ideia está associado à defesa de um Estado que não seja responsável fiscalmente, mas responsável socialmente. A fiscalidade do Estado – seu aspecto fiscal, que tem a ver com a arrecadação e o gasto público – precisa ser funcional e não responsável; tem que atender às carências da população que, por sinal, é a grande promessa do governo Lula.

IHU – Quais são as preocupações e expectativas nesse sentido em relação ao novo governo?

Gláucia Campregher – Muitos economistas e movimentos sociais estão preocupados com essa situação porque, se as promessas de campanha não forem cumpridas, teremos um fascismo à espreita. Lula, hoje, está à esquerda do seu próprio governo, mas, no seu primeiro mandato, quando havia pressão por fazer superávit, ele dizia que o superávit do país não seria de 3% do PIB, mas de 5%. Quer dizer, além de se comprometer com o superávit, ainda dizia que iria fazer mais. Para que isso? Para dizer que conseguiria fazer mais do que a velha classe dominante? Que conseguiria apertar o cinto da população ainda mais?

Do meu ponto de vista, Lula aprendeu a lição de que não é assim. Espero que não apenas ele tenha aprendido, mas que toda a esquerda lembre Haddad de que não dá para fazer a mesma coisa de novo. Como dizia [Albert] Einstein, este é o pior entendimento do uso da razão: fazer a mesma coisa e esperar resultados diferentes. Não diria que um golpe virá se enfrentarmos as elites rentistas, mas que um golpe virá se fizermos a mesma coisa que Dilma fez no governo passado, tentando agradar o mercado em vez de tentar agradar o grosso da população, mesmo arriscando ser chamado de populista, gastador.

IHU – Quais suas preocupações com o Novo Arcabouço Fiscal – NAF?

Gláucia Campregher – Estou pessimista e preocupada, mas, ao mesmo tempo, feliz com as mobilizações de movimentos sociais e economistas em geral. Estou preocupada porque o NAF é um teto, mesmo que seja um teto suavizado. Ele é um teto porque parte do ponto de vista de que é preciso ter uma meta de resultado primário, que será entre +0,25 e -0,25%. Somente se cumprir esta meta se poderá gastar até – e não mais do que isto – 70% do aumento das receitas. Ou seja, o NAF parte do ponto de vista de que precisa aumentar as receitas primeiro para poder gastar depois. Não são todos os economistas que acreditam nisso.

A reforma fiscal do governo Lula em debate – Mesa 2:

Não são todas as pessoas que entendem o que significa a própria lógica do crédito; crédito não significa aumentar a receita para gastar depois. Crédito significa que a instituição recebe um crédito, porque se aposta naquilo que ela está fazendo, ou seja, antecipa-se o recurso e, por conta disso, uma vez fazendo os negócios, há um aumento de receita e depois o crédito é pago. A ideia de que, em primeiro lugar, precisa ter receita não vale nem para a iniciativa privada, muito menos para o Estado, que é o criador de moeda. Quando afirmo isso, não quero dizer que o Estado tem que ser irresponsável, que ele pode emitir dinheiro sem limite; não é verdade. Mas o estímulo à economia precisa ser muito presente nos momentos de baixa econômica, diminuído nos momentos de alta.

Haddad não tem que se preocupar em aumentar os impostos agora. Pode aumentá-los na época em que a economia estiver em alta. Os impostos são relevantes, mas não para financiar o gasto público; são importantes para tratar os temas que dizem respeito à desigualdade, à concentração da renda. Haddad está apostando muito no aumento dos impostos agora porque todo o raciocínio está equivocado: primeiro aumenta-se a arrecadação para depois gastar.

IHU – Quais são os outros problemas do NAF?

Gláucia Campregher – O NAF tem uma regra segundo a qual, se a economia baixar demais, haverá um teto para baixo, de 0,6%, mas, se a economia melhorar, terá um teto para cima, de 2,5%. Ou seja, estão atrelando a recuperação ao cumprimento de um número mágico que não sabemos nem direito de onde saiu. As primeiras simulações, que o grupo de pesquisa da Laura Carvalho, economista e professora da USP, está fazendo, mostraram que cumpridos esses números, haverá uma diminuição do papel do Estado e uma inviabilização das próprias políticas do período petista. Aquele supercrescimento dos gastos dos governos Lula I e Lula II não haveria mais. As mesmas projeções feitas para frente mostram uma diminuição do gasto público. Essas regras, como a Regra de Ouro e a Lei de Responsabilidade Fiscal, implementadas no país pouco antes dos governos petistas, fazem parte de um trabalho ideológico de que o gasto público, para a população, não pode crescer tanto assim.

Todo mundo reconhece a dívida social e a ministra [Simone] Tebet, antes de virar ministra, parecia muito simpática a essas questões, mas, depois que assumiu a pasta, disse que, para gastar aqui, tem que economizar ali. Trata-se da ideia de que não podemos ter um crescimento do gasto público para a população porque existe um compromisso com aqueles que compram os títulos da dívida pública. Não é verdade que este seja um dinheiro orçamentário, mas é verdade que essa parcela da população, que compra os títulos, pressiona e faz um terrorismo exatamente para que ganhem um dinheiro fácil, emprestando para o governo. É bom lembrar que essas pessoas têm poder de pressão sobre os juros. Este é o problema. Essas são as mesmas pessoas que têm representação no Conselho Monetário Internacional. Mas o Banco Central, ao ouvir a iniciativa privada, ouve meia dúzia de representantes desse mercado, que são exatamente os que fazem pressão por aumento dos juros, porque vão lucrar. Isso também cria outra fábula: primeiro, o Estado precisa mostrar responsabilidade, cortar gastos e apertar os cintos, para depois o juro cair. É isso que [Roberto] Campos Neto [presidente do Banco Central] afirma sem parar.

A desmontagem desse tipo de compreensão é fundamental para entendermos o que estou dizendo: o NAF é um teto, por mais que ele tenha algumas ressalvas. Os movimentos sociais estão pressionando para que o conjunto dos gastos das áreas da saúde e da educação fique de fora do teto. Talvez, seja isso que vai nos sobrar. Talvez toda a nossa militância, daqui para frente, seja tentar deixar mais coisas de fora do teto, como uma ciência de política e tecnologia para recuperar a indústria, uma política de recuperação do salário-mínimo.

IHU – O que é preciso esclarecer em relação ao modo de conceber o NAF?

Gláucia Campregher – Do meu ponto de vista, é importante entender que a filosofia por trás da proposta do NAF está equivocada. Outra coisa que está equivocada na filosofia por trás dessa proposta é a ideia de que é preciso racionalizar o gasto. Haddad está imaginando que este conjunto de detalhes, de atrelamentos, vai tornar tudo mais racional. Eu pergunto: não seria racional atrelar o crescimento dos gastos ao crescimento da população, à melhoria de vida da população? Se a concentração de renda melhorar, então o gasto pode cair. Pronto. Será que não conseguimos fazer uma racionalização de outra natureza? Por que a racionalização precisa ter, por trás, a filosofia de que, acima de tudo, o orçamento para a população deve ficar dentro da arrecadação? Por quê? Essa pergunta merece uma resposta porque não é assim que ocorre no mundo inteiro nem é assim desde o início do capitalismo. Não haveria capitalismo se a Inglaterra tivesse agido deste modo quando virou uma potência hegemônica e desenvolveu uma indústria no passado. Guerra nenhuma no mundo poderia ser financiada. Combate a epidemias e pandemias, como a de Covid-19, não seria possível se fosse assim. Sair de crises não seria possível.

IHU – Quais as projeções e expectativas caso o NAF seja aprovado como está?

Gláucia Campregher – Segundo as simulações que os economistas têm feito, esse tipo de política nos levará a uma situação pior do que estamos. Numa das projeções para 2030, a tendência, se aplicadas as medidas propostas no Novo Regime Fiscal, é haver uma redução das despesas correntes em relação ao PIB. Mesmo as projeções que consideram o crescimento do PIB e da arrecadação, sem mudar as regras dos impostos, dada a limitação de gastar até 70%, indicam que haverá, no frigir dos ovos, uma queda do gasto público.

Mesmo atendendo às necessidades prementes da população, será que não estaria na hora de ampliar novos gastos para enfrentar o próximo momento da indústria, onde o trabalho está se tornando cada vez mais irrelevante? Quem disse que esse tipo de demanda, de requalificação do trabalho, não é altamente estratégico e fundamental para termos um projeto de nação em voga mais uma vez?

A reforma fiscal do governo Lula em debate - Mesa 3:

Quero chamar a atenção de todos nós – acadêmicos e não acadêmicos, trabalhadores, militantes – que é do interesse do conjunto da população brasileira que comecemos a desconfiar de coisas que achamos óbvias. Se não fizermos uma mudança de mentalidade, compraremos ideias que se estabeleceram há muito tempo, que talvez já tenham se estabelecido equivocadamente e que, neste momento, irão inviabilizar não só as promessas de campanha do governo Lula, mas também a retomada de um projeto nacional. Estas ideias podem nos colocar, de novo, diante da ameaça do fascismo, que cresce e cresceu no mundo inteiro toda vez que tinha pobreza e desesperança.

Tenho muito medo, quero muito que o governo Lula acerte e que o presidente tenha entendido a necessidade de investir no gasto público, hoje, para poder fazer tudo que se necessita. Aliás, Lula disse na campanha: cabe a nós fazer pressão – e não só à Faria Lima – para que o governo dê uma guinada na sua proposta. No mínimo, teremos que esburacar este teto antes mesmo de ele nascer.

A reforma fiscal do governo Lula em debate:

Leia mais