Igreja Católica do Brasil: entre o restauracionismo e o liberacionismo. Apontamentos de Pedro A. Ribeiro de Oliveira

Fonte: PxHere

21 Fevereiro 2023

“A restauração identitária fez desmoronar aquela articulação de Libertação e reforçou o regime clerical de poder, levando a Igreja para formas anteriores ao Concílio Vaticano II. Hoje está evidente que o atual Papa, apesar de sua vontade e de seus esforços, está sendo deslegitimado pelos setores restauracionistas, tanto do clero (alto e baixo) quanto do laicato organizado em movimentos ditos carismáticos”, avalia Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo.

Segundo ele, a restauração identitária, que se dá com João Paulo II e Ratzinger, é uma reação às aberturas proporcionadas pelo Concílio Vaticano II para impedir “que as mudanças tirassem a identidade católica e relativizassem tudo”. A eleição de Francisco, entretanto, dá “novo alento ao polo liberacionista, que por insistir no espírito renovador do Concílio ganhou nova força com seu incentivo à sinodalidade”.

E indica que a única saída para a corrente liberacionista “é (1) reforçar desde agora a autonomia de cada grupo, movimento ou pastoral: sem romper com a instituição eclesiástica, abrir espaços próprios para funcionar e promover seus eventos, assumindo a forma de movimentos laicais, e (2) articular-se mais e melhor com outras entidades cristãs que partilham o mesmo projeto do Reino e com elas criar espaços ecumênicos onde se apoiem mutuamente”.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira é leigo católico, nascido em 1943, doutor em sociologia, foi professor nos programas de pós-graduação em ciências da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É membro do ISER Assessoria e da Comissão Ampliada do Movimento Nacional Fé e Política.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira na atividade realizada por videoconferência "A Igreja do Brasil: entre o fundamentalismo e a profecia".

O presente texto origina-se como apontamentos para a apresentação que Pedro A. Ribeiro de Oliveira fez na análise de conjuntura eclesial “A Igreja do Brasil: entre o fundamentalismo e a profecia”, realizada pelo Cepat. Portanto, não foi desenvolvido como artigo propriamente dito.

Eis o texto.

 

Igreja católica: fundamentalismo e profecia

“Fundamentalismo” e “profecia” são categorias da Teologia cristã. Prefiro usar categorias mais sociológicas, que vou explicar ao longo da resposta. Penso que para entender a situação atual é indispensável retomar o que significou o Concílio Vaticano II (1962-65), convocado por João XXIII para atualizar a pastoral católica. Muitas mudanças, mas quatro essenciais: Liturgia, para atualizar a forma de expressar coletivamente a Fé; Diálogo com o mundo moderno, e não Igreja regendo a sociedade; Igreja Povo de Deus, superando a concepção de dois estratos: a hierarquia que governa e o laicato que deve seguir suas ordens; e a Palavra de Deus acessível a todo o Povo de Deus.

São os quatro pilares da Igreja modelada a partir da crise da cristandade (Igreja aliada ao Estado, moldando a civilização ocidental). Daí outras consequências: ecumenismo, opção pelos pobres (na América Latina e Caribe), valorização da diocese como Igreja particular, pastoral de conjunto (conferências episcopais), leitura popular da Bíblia, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em lugar das paróquias, etc.

Foi como um rio represado durante o século dos Pios (IX a XII) que de repente extravasou, alagando tudo. O próprio papa Paulo VI, na metade final do seu pontificado tratou de pisar no freio, para interromper o processo de mudanças. Mas elas já tinham criado raízes entre o Povo de Deus.

Uma delas, oriunda da América Latina e Caribe, foi a criação das Comunidades Eclesiais de BaseCEBs. Animadas por leigas e leigos, elas ganharam enorme capilaridade social, sendo capazes de penetrar em espaços sociais não alcançados pela pastoral paroquial. Contando com o apoio de bispos, padres e congregações religiosas femininas, em pouco tempo elas se espalharam pelo nosso Continente inaugurando uma “nova forma de ser Igreja” – como as definiu a CNBB em documento de 1982. Até hoje a Igreja católica mantém essa imagem de defensora dos Direitos Humanos e dos pobres.

Aí entra João Paulo II, fazendo dupla com Ratzinger, para dar a interpretação oficial do Concílio. É o que eles mesmos chamaram de Restauração identitária: não deixar que as mudanças tirassem a identidade católica e relativizassem tudo. Por isso eu falo de corrente restauracionista (e não fundamentalista, conservadora ou tradicionalista). No polo oposto, falo de corrente liberacionista, porque é associada às várias modalidades de Teologia da Libertação.

Cresce hoje o tensionamento entre os dois polos. A Igreja estava perdendo o papel de líder moral do mundo capitalista, quando em 1990 a vitória do Ocidente capitalista na guerra-fria abriu uma oportunidade para reconquistar aquele papel. Para isso ela refluiu sobre si mesma, salvaguardando suas tradições e desacreditando o setor liberacionista, de modo a evitar conflitos com o capital globalizado e com o sistema neoliberal triunfante.

André Langer do CEPAT e Pedro A. Ribeiro de Oliveira na atividade "A Igreja do Brasil: entre o fundamentalismo e a profecia".

Foram então retomadas práticas religiosas anteriores ao Concílio, valorizando-se rituais de nossas avós e devoções populares que haviam sido quase abandonadas pelo clero. Essa forma de religiosidade pré-moderna combina com o avanço do neoliberalismo no mundo atual: ao buscar refúgio na liturgia do passado, suas celebrações despertam emoções adormecidas, reforçam a moral individual e familiar, e trazem a tranquilidade para quem reduz o cristianismo a uma religião para as “pessoas de bem”. Torna-se então uma “Igreja-espetáculo”, que tem público e não comunidades.

A renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco, porém, deram novo alento ao polo liberacionista, que por insistir no espírito renovador do Concílio ganhou nova força com seu incentivo à sinodalidade. Este é o momento que vivemos hoje: de muita incerteza, em que a balança parece pender para um lado e logo depois para o outro.

Relação entre fundamentalismo religioso e extrema direita

A relação entre religião e poder (social e político, porque trata-se do poder moral) é o tema maior da sociologia da religião desde Marx, que viu na religião o “espírito de um mundo sem espírito”. Não entro nas intricadas relações entre agentes do capitalismo nos Estados Unidos e a direita católica (tipo Steve Bannon), porque não tenho suficiente domínio do tema, mas abordo o problema a partir da teoria do campo religioso como um campo condicionado pela luta de classes.

É claro que não vemos agentes religiosos defendendo explicitamente os interesses da classe social à qual estão ligados: eles fazem isso ao difundir doutrinas religiosas que reforçam e recobrem esses interesses. (É o que Gramsci chamava de intelectuais orgânicos: quem formula e defende, na linguagem própria do seu campo – religião, arte, filosofia, política... – os interesses da classe à qual estão organicamente ligados.) Max Weber falava de afinidade eletiva. Prefiro falar de compatibilidade estrutural entre propostas religiosas e propostas políticas.

No caso do mundo atual, essa compatibilidade estrutural se dá mais em termos políticos amplos, do que em termos estritos, de tipo clérigos bolsonaristas versus clérigos petistas. É o campo do Patriarcado como sistema de poder. Poder localizado na figura do pater familias: o chefe (masculino) da família, que detém o poder sobre todo o grupo. Tem o direito de propriedade, o domínio sobre a mulher e o “pátrio poder” sobre os filhos e filhas. Gilberto Freyre definiu o senhor da Casa Grande como “dono da terra, dono dos homens, dono das mulheres”. O Patriarcado tornou possível o capitalismo ao garantir a propriedade privada da terra e a desigualdade social. Penso que continua sendo indispensável para sua sobrevivência. Daí sua dimensão política.

Há uma compatibilidade estrutural entre o patriarcado e a estrutura clerical da Igreja. Não falo do clericalismo como excesso de poder, mas como elemento organizador da diferença fundamental entre ministros ordenados (que têm o poder sagrado de distribuir a graça divina) e o povo (laos) que só tem o sacerdócio comum que lhe é conferido pelo Batismo – como se este não fosse o mais importante! (Recomendo muito o artigo reproduzido pelo IHU há menos de um mês: O clericalismo vai enterrar o catolicismo?, de Michel Bouvard.).

O distintivo socialmente mais relevante dessa diferença reside na obrigação do celibato para o clérigo. Podem ter igual formação teológica e igual dedicação às coisas da Igreja, mas só o homem que renuncia ao casamento pode ser padre e depois bispo. Viúvo também. O sacerdote renuncia ao posto de chefe de família, para habilitar-se a chefe da Igreja. Neste contexto, o campo da família, da sexualidade, das questões de gênero e outras que afetam as relações entre homens e mulheres tornam-se cruciais para a identidade do clero.

A essa estrutura clerical em que o padre fala e age em nome de Cristo, contrapõe-se a estrutura comunitária em que cada comunidade escolhe e investe das funções ministeriais de coordenação e presidência das celebrações, sempre por um tempo determinado. É outro tipo de poder, mas igualmente efetivo. Foi muito usado nas CEBs e talvez ainda possa ser encontrado hoje.

Agora concluo: o que torna estruturalmente (e funcionalmente) compatíveis o clericalismo e a extrema-direita ou o neofascismo é a defesa do patriarcado. Trata-se de salvaguardar a todo custo o supremacismo masculino, branco, heterossexual e cristão. É ele que baseia sua aliança na política, na cultura, na educação.

Veja-se o finado governo: desmantelou os organismos de governança, mas escorou o patriarcado e o capitalismo de rapina. Daí sua compatibilidade estrutural com o restauracionismo. Mesmo sem simpatia entre ele e o clero, a aliança se impunha para não deixar avançar o processo histórico de derrubada do patriarcado – liderado pelas mulheres, é bom lembrar. Todos conhecemos pessoas que nunca imaginaríamos apoiando aquele crápula, mas que o defenderam por medo do pior: a libertação das mulheres, das pessoas LGBTQIA+, dos negros, indígenas e todos os tidos como inferiores pelo supremacismo branco. É triste, mas assim é...

Entrando agora na conjuntura de 2023

Estamos numa situação de equilíbrio instável de forças entre restauracionistas e liberacionistas na Igreja católica do Brasil (e do mundo?). Para quem se alinha com o setor liberacionista, é uma realidade preocupante porque a Igreja católica do Brasil é politicamente importante. A experiência do século passado mostrou que as Igrejas cristãs podem oferecer uma excelente base para a mobilização popular. Mesmo tendo perdido muito da força mobilizadora de 40 anos atrás, ela ainda é capaz de convocar e mobilizar amplos setores da população. No mínimo, sem ela fica bem mais difícil fazer isso. No sentido inverso, o apoio de Igrejas ditas evangélicas e da restauração católica desempenham papel importante para a atual mobilização popular da direita. Será que ainda se pode contar com a Igreja católica como base de conscientização e organização popular?

No século passado, os organismos da Igreja católica motivados pela Teologia da Libertação – como as CEBs, Pastorais Sociais, CNLB, CRB, CBJP e alguns Movimentos e grupos ecumênicos – recebiam o apoio de setores de prestígio no episcopado e no clero, e isso lhes dava respaldo institucional. Eles ganhavam visibilidade social e midiática, e também apoio financeiro. Embora estivessem longe de constituir a maioria da Igreja, os grupos da Igreja da Libertação tinham a hegemonia na Igreja, pelo menos aos olhos externos.

A restauração identitária fez desmoronar aquela articulação de Libertação e reforçou o regime clerical de poder, levando a Igreja para formas anteriores ao Concílio Vaticano II. Hoje está evidente que o atual Papa, apesar de sua vontade e de seus esforços, está sendo deslegitimado pelos setores restauracionistas, tanto do clero (alto e baixo) quanto do laicato organizado em movimentos ditos carismáticos. A nomeação de bispos (e mesmo de certos cardeais) deixa isso claro. A Igreja católica vive uma situação de incertezas e turbulências que escapam ao controle do Papa, que aposta na sinodalidade para recuperar o modelo de Igreja do Vaticano II, mas só consegue envolver nesse projeto uma pequena parte do clero.

Nessa situação de incertezas, a Igreja católica do Brasil está quase paralisada: não toma posição diante das turbulências políticas, mal consegue controlar seu setor bolsonarizado e volta-se para atividades internas, enquanto tudo faz para abafar denúncias de abusos sexuais. Apesar de saber-se em processo de esvaziamento de fiéis, não tem forças para renovar-se internamente.

Por outro lado, este contexto deixa espaço pastoral aberto para a “Igreja da Libertação”, como os casos exemplares do projeto “Encantar a Política”, do 15º Encontro Intereclesial de CEBs, da Campanha da Fraternidade 2023, a Comissão de Justiça e Paz, o Centro de Fé e Política D. Helder Câmara e a firme defesa do Povo Yanomami. Ou seja, na ausência de pastoral de conjunto da CNBB, cada grupo com certa organização abre um espaço para atuar com certa autonomia. Esta é a correlação de forças que molda a atualidade eclesiástica do Brasil.

Se esta análise está correta, o momento atual é de consolidar posições na Igreja: manter os espaços pastorais conquistados e impedir o avanço do clericalismo. Só avançar para novos terrenos em oportunidades muito favoráveis, evitando empreendimentos que possam trazer desgastes.

A principal sinalização de rumo da Igreja católico-romana dependerá da continuidade do projeto de Francisco. Tudo indica que seu pontificado está chegando ao final, devido a sua idade, mas não há como prever qual será a linha de seu sucessor: uma Igreja sinodal – favorável à Igreja da Libertação – ou o retorno da restauração identitária que reforça a estrutura clerical? Cresce a oposição a Francisco e os restauracionistas já preparam sua sucessão, mas esta é uma incógnita.

Nesta conjuntura, é muito importante a eleição da CNBB em abril deste ano. A ala restauracionista tem ganhado força e poderá incentivar o clericalismo em aliança com as forças sociais de direita; por outro lado, existe a possibilidade de a CNBB retomar a linha libertadora da qual veio se desviando nos últimos mandatos. Seguindo a recomendação de usar o pessimismo da razão, devemos trabalhar com a probabilidade de vitória do restauracionismo.

Como situar os cristãos alinhados com o projeto de Libertação nesse futuro cenário em que perderemos os espaços ainda abertos para nossa atuação? A única saída que percebo hoje é (1) reforçar desde agora a autonomia de cada grupo, movimento ou pastoral: sem romper com a instituição eclesiástica, abrir espaços próprios para funcionar e promover seus eventos, assumindo a forma de movimentos laicais, e (2) articular-se mais e melhor com outras entidades cristãs que partilham o mesmo projeto do Reino e com elas criar espaços ecumênicos onde se apoiem mutuamente. Em síntese: constituir as bases de futuras comunidades ecumênicas preparadas para atravessar o deserto religioso que se vislumbra pela frente.

Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.

Leia mais