Desenvolvimentos religiosos na Europa: o próximo nível da secularização

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20 Janeiro 2023

"As mudanças sociais que, como efeitos colaterais, arrastam também a religião (pelo menos na Europa central), manterão as tendências de secularização estáveis por um tempo previsível – sem que as religiões sejam capazes de combatê-las eficazmente. O que isso significa para o futuro das religiões?"

O artigo é de Helmut Zander, professor de história comparada das religiões e do diálogo inter-religioso na Universidade de Friburgo, na Suíça, publicado por Herder Korrespondenz, janeiro-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

Cada vez mais pessoas estão virando as costas para a igreja institucional. A gramática religioso-cultural das sociedades ocidentais atuais se transformou ainda mais, como mostram novos estudos. As comunidades religiosas são incapazes de deter esta tendência e dificilmente a podem controlar. Isso tem consequências. Um futuro religioso sem futuro é algo a que regularmente se acena – ou se tenta evitar – nos think tanks eclesiásticos. Para alcançar o objetivo da "Nova Evangelização" da Europa, a cúria romana possui até um dicastério. Mas não haverá nenhum futuro de esplendor religioso, característico de um período que para a Europa central já terminou durante os anos cinquenta do século XX.

O fracasso não se deve aos abusos sexuais dos clérigos católicos (que, aliás, provavelmente tenham crescido paralelamente ao florescimento desde o século XIX), não é devido aos protestantes liberais que se racionalizaram, não é devido ao descrédito do Islã por suas variantes homicidas, não é devido à agressão nas relações professores-estudantes budistas. Tudo isso destruiu a vida de inúmeras vítimas e mergulhou a Igreja Católica em uma crise fundamental que em muitos lugares foi inclusive demasiado fraca. Mas para perspectivas sociológicas de longo prazo, esses fatores desempenham apenas um papel superficial. Os desenvolvimentos decisivos ocorrem na gramática religioso-cultural das sociedades ocidentais atuais.

É o que mostram as análises de Detlef Pollack, do Instituto suíço pastoral-sociológico e de Philippe Portier e Jean-Paul Willaime. Na Alemanha, em 2021, cerca de 360.000 católicos e católicas deixaram sua Igreja. Nunca haviam sido tão numerosos e, algo excepcional para a situação alemã, as saídas foram superiores às do protestantismo. O motivo: o escândalo dos abusos sexuais. É difícil dizer quanto ainda aumentará o número de saídas da Igreja. Nas regiões da Alemanha Leste, o número daqueles que não são praticantes (ou seja, não rezam, não participam de ritos) mantém-se estável há cerca de 15 anos: cerca de dois terços da população. Mais importantes são os desenvolvimentos na França. Se nos anos 1950 ainda 90% das francesas e dos franceses eram membros da Igreja Católica, em 2021 eram apenas um terço, com uma tendência negativa que vê apenas 15% dos membros entre os mais jovens. A tradição religiosa em segundo lugar é o Islã, onde a tendência é de crescimento, de forma que em algumas cidades e bairros o Islã se tornará a religião majoritária em um período previsível.

Por sua vez, na Suíça, o número absoluto de católicos é estável, por que as saídas são compensadas pelo crescimento das comunidades de migrantes com suas altas taxas de natalidade. Mas um número estável de membros da Igreja Católica significa um declínio relativo em termos percentuais – e em termos de importância – dado o crescimento da população suíça como um todo. A longo prazo e para todos os países, a diminuição do número de batismos é grave, porque a religião é essencialmente transmitida através da prática familiar, é herdada, por assim dizer, socialmente. As consequências dessa ruptura na socialização são muito mais drásticas do que qualquer outro fator. Também há mudanças que afetam a arquitetura mental, por exemplo, exemplo, a substituição da imagem de um Deus pessoal por representações de uma força ou de uma energia superior.

Gramática profunda da secularização

Os processos de secularização não podem ser interrompidos pelas comunidades religiosas e dificilmente podem ser controlados por elas. As razões são muitas. Em primeiro lugar, a educação desempenha um papel importante. As sociedades ocidentais durante o século XX foram completamente alfabetizadas, em 1948 o direito à educação foi elevado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos à dignidade de direito universal. No Ocidente, o desenvolvimento da educação foi por muito tempo relacionado com a religião: universidades e leituras religiosas caracterizam desde o final da Idade Média a história cultural europeia. Mas a educação tem uma influência ambivalente, pois é por excelência um fator de individualização. Faz com que a pessoa se torne autônoma e, portanto, permite não só a compreensão da religião, mas também a sua crítica.

Os dados sociológicos sobre a religião documentam as consequências com implacável frieza: os ambientes eclesiásticos particularmente caracterizados pela educação – dos católicos liberais nos Estados Unidos aos reformados genebrinos – resultam particularmente enfraquecidos no que diz respeito à adesão e prática religiosa. Os números globais dos estudos de opinião do Pew Research Center documentam: a educação escolar, assim como a riqueza e uma vida longa estão correlacionadas negativamente com a prática religiosa. O que significa que pessoas instruídas, ricas e saudáveis são menos religiosas.

Para o cristianismo, o efeito negativo da educação é mais perceptível porque, diferentemente do judaísmo e do islamismo, a entrada no cristianismo não está, em princípio, ligada ao nascimento, mas à educação – no sentido de introdução da catequese.

Grupos como o Boko Haram, que demonizam a educação ocidental, representam tentativas desesperadas de escapar da ambivalência da (inevitável) educação. Na Igreja Católica, a negação da educação muitas vezes assume um disfarce mais elegante: um retorno a uma piedade fideísta ou a uma teologia idealista e, em geral, o retiro para a própria fortaleza, sem contato com o inimigo, por assim dizer.

Crer sem nenhuma afiliação institucional

Na década de 1990, os aspectos religioso-sociológicos contribuíram para a queda do pertencimento institucional através da individualização. “Believing without belonging”, ou seja, crer sem pertencer, é o que a socióloga das religiões Grace Davie viu em aumento. Lançou como tábua de salvação uma espiritualidade individual, acreditando que se os laços da reflexão dogmática e da pressão social de uma instituição vinham a faltar, a religião voltaria a reflorescer na liberdade individual. Mas muitas e mais recentes pesquisas sociológicas não confirmam essa perspectiva. Deve-se antes prever que uma devoção livre das instituições não salva a prática religiosa, mas conduz ao seu contrário: primeiro perde-se a relação institucional, depois as convicções que estavam ligadas a ela e, por fim, qualquer prática.

A liberdade de uma religião estabelecida não resulta automaticamente na liberdade em favor de uma religião individual. No processo de secularização, a religião evapora não tanto no curso das vidas individuais, mas sim na ruptura de uma geração para a outra. Se isso for verdade, se devem abandonar as teorias de uma religiosidade antropológica, quase natural, sem enquadramento social – e reconhecer a consequência de tal desenvolvimento, ou seja, que reforça os ambientes religiosos conservadores em que a identidade está intimamente ligada ao pertencimento institucional. A Igreja católica conhece muito bem esse problema.

Uma outra razão é dada pela diferenciação de funções que caracteriza as sociedades modernas.

Diferentes funções são desempenhadas por diferentes instituições. Assim, áreas que antes estavam conectadas, são separadas: a pastora e o imã são considerados competentes apenas para as exigências religiosas e não mais pela psique. Nesse sentido, a diferenciação de funções é uma variante da secularização, na medida em que empenhos antes assumidos pelas Igrejas agora estão nas mãos de profissionais seculares.

A passagem mais evidente de funções outrora também religiosas deu-se com o Estado social que hoje desempenha em parte profissionalmente as tarefas da Caritas cristã. E não adianta muito o fato de que as raízes do estado social sejam cristãs, que a Diaconia (protestante) e a Caritas (católica) estejam entre as maiores provedoras de subsídios e prestem um serviço geralmente altamente respeitado e reconhecido. O estado social funciona – agora – mesmo sem motivação religiosa. Por meio dessa diferenciação, a religião foi, por assim dizer, libertada de certezas funções e reduzida a funções puramente religiosas. Mas essa liberdade priva as religiões dos apoios que as estabilizaram durante séculos de forma evidente e indiscutível.

Trata-se de um processo inevitável em uma sociedade altamente especializada e baseada na divisão do trabalho, algo que não diz respeito apenas às comunidades religiosas. Mas é um processo particularmente perigoso para estas últimas, porque elas tradicionalmente formam mundos de vida indiferenciados e abrangente.

Adiciona-se a isso a liberdade religiosa. Que inclui a liberdade com relação a qualquer convicção da religião (mas não só), incluindo a liberdade da abstinência à religião, da crítica à religião e do ateísmo. Com isso, o estado neutro em relação às religiões subtraiu juridicamente às religiões, até então as monopolistas, sua posição hegemônica. Na Europa existem religiões de Estado junto com outras religiões definida em base constitucional. Globalmente, no entanto, também existem outras possibilidades.

Em quase todos os estados árabes, o Islã é a religião de Estado. Na Rússia, a Igreja Ortodoxa russa tem de fato uma posição quase de religião de Estado. Mianmar reforça o budismo como religião hegemônica contra as minorias religiosas. No entanto, não é de todo garantido que a proteção do Estado possa estabilizar as religiões a longo prazo. Concorrência entre as religiões e às religiões. Não são apenas as comunidades religiosas que se beneficiam da liberdade religiosa, mas também os não afiliados institucionalmente, e os indiferentes, que vão dos agnósticos aos crentes frustrados pela Igreja, até aos ateus. Estes últimos eram considerados a maior ameaça à religião nos séculos XIX e XX.

Haviam gerado temores nas Igrejas, mas hoje são apenas uma minoria definida; pode-se quase dizer uma minoria a proteger. A mudança mais importante foi em direção aos indiferentes que não negam Deus, mas muitas vezes mantêm uma relação frouxa e descompromissada com a religião, muitas vezes com um viés agnóstico: “Mas o que eu sei!”, se diria na Renânia.

Finalmente, a liberdade religiosa significa pluralidade. Nesse ponto, foram em particular os sociólogos da religião estadunidenses da teoria da Escolha Racional, defensores da visão de que uma maior pluralidade teria significado maior concorrência religiosa e, assim, provocado uma prática religião mais vital. Parece que este também seja apenas um desejo, visto que muitos dados estatísticos mostram o contrário.

Uma penúltima observação diz respeito à distração e é tão banal quanto duradoura: existe simplesmente uma concorrência de algo atraente e agradável que impede de ir à igreja no domingo ou à mesquita na sexta-feira. Por exemplo: brunch em vez do serviço religioso.

Essa distração (Detlef Pollack), em oposição à atração, age na ponta dos pés e funciona melhor do que qualquer crítica à religião. O fato de essa distração funcionar não depende apenas das ofertas de gestão do tempo livre, mas também de uma mudança interna às igrejas, que foi considerado como uma libertação teológica: o potencial de ameaça das religiões está em grade parte esgotado; quem hoje confessa a infração da "obrigação dominical"? A “Civilização de Deus” (Michael N. Ebertz) retirou os dentes do dragão infernal; o medo de punições sádicas na vida após a morte ou da danação eterna empurram cada vez menos pessoas para a religião.

E por fim, então, o desencanto. Às vezes parece que se tenha quase esquecido esse legado da moderna filosofia da religião. O mundo, a natureza, não fala mais de Deus "simplesmente assim" para as pessoas. Ninguém imagina hoje que um trovão seja a voz de um Deus. A teoria do Big Bang não se transforma mais numa prova da existência de Deus. A doença não é mais um destino divinamente decretado. O mundo como campo de manifestação da religião perdeu gradativamente seu encanto. Naturalmente tudo é mais complicado: a devoção à natureza ainda existe, o corpo ainda é vivido como meio de experiência religiosa, ainda despertam assombro as imagens espetacular do telescópio James Webb. Porém, o leve, imediato encontro com o divino na natureza foi perdido. Essas mudanças também dizem respeito ao Islã, que está estruturado de uma forma completamente diferente?

Não há ali Igrejas com estruturas organizadas, mas comunidades ligadas a mesquitas e a Umma, a comunidade universal dos crentes; o direito desempenha um papel extremamente importante na estabilização da vida cotidiana, enquanto o direito canônico no cristianismo é um sistema de regras bastante distante: os imãs podem ser comparados a padres e pastores de maneira muito limitado; o Islã não é afetado em nosso país pelo descrédito parcial como religião de Estado. Todos isso aponta para o Islã um caminho particular – mas ele também não será capaz de se livrar das consequências da secularização.

Essas consequências devem ser distinguidas em dois níveis. Em primeiro lugar, na maioria dos países islâmicos, a estabilidade religiosa parece concreta; as estatísticas atuais reportam taxas ao Islã de 90% e, ainda por cima, para países como Indonésia, Arábia Saudita ou Irã. Existem, porém, fortes duvida que isso reflita a realidade de convicções e práticas. Os dados concretos são escassos, mas se os números elevados do Irã que os iranianos no exterior afirmam ter obtido pela internet estão corretos, veremos efeitos significativos da secularização neste país, por exemplo, assim que existir uma efetiva liberdade religiosa.

Na Europa, a situação parece diferente. Como religião de migrantes e de minoria, o Islã é menos afetado pelos fatores de secularização, por exemplo, no que diz respeito à diferenciação funcional: as comunidades islâmicas oferecem não apenas uma “pátria” religiosa, mas também linguística, étnica e cultural. Assim que esses vínculos perdem influência, é provável que os fatores de secularização se fortaleçam. A longo prazo, as comunidades islâmicas (e as de outras minorias, como os yesides ou os cristãos das Igrejas Orientais) deveriam permanecer mais estáveis do que as grandes igrejas.

Estamos em uma terra completamente nova na história mundial

As mudanças sociais que, como efeitos colaterais, arrastam também a religião (pelo menos na Europa central), manterão as tendências de secularização estáveis por um tempo previsível – sem que as religiões sejam capazes de combatê-las eficazmente. O que isso significa para o futuro das religiões? Em primeiro lugar: desconfiar de qualquer “plano geral”. A situação atual presumivelmente nunca existiu na história das religiões, movemo-nos numa nova terra ou terra de ninguém na história mundial, e cada prognóstico é confrontado com demasiadas incógnitas. Até o momento está relativamente claro que não estamos diante do fim da religião. As teorias da secularização ateísta carecem de suporte empírico.

Em vez disso, se opõem à secularização, a estabilidade da prática religiosa de grupo entre os evangélicos, os fundamentalistas católicos ou as comunidades migratórias – ou seja, onde não se seguem processos de diferenciação funcional.

Ao mesmo tempo, a vida religiosa torna-se ainda mais individualista, porque as pessoas sabem mais, são menos dependentes de instituições religiosas, o estado as protege em suas próprias escolhas e muitas vezes elas querem fazer coisas mais divertidas do que rezar. Elas irão se comportar com as religiões de modo mais "combinatório". Sufis protestantes que praticam o Zen e participam dos exercícios inacianos dos jesuítas são encontrados em ambientes de classe média instruída próximos ao mainstream.

As "igrejas do povo" não desaparecerão sem barulho. No entanto, se deparam com uma decisão difícil cujas consequências não conseguem calcular, por isso é difícil de tomar uma posição: devem buscar uma identidade clara com demarcações evidentes ou aceitar uma pluralidade interna, uma diversidade liberal – e assim deixar que seu perfil seja menos acentuado?

As grandes igrejas provavelmente tentarão combinar ambas as opções; qualquer outra coisa, diante de desenvolvimentos imprevisíveis, seria uma autodepreciação prematura. A Igreja Luterana da Dinamarca, à qual ainda pertence mais de 80% da população, demonstra quanta estabilidade pode ter uma igreja que hospeda facções decididamente heterogêneas. Mas também é evidente que em muitas lideranças eclesiásticas a salvação é buscada na igreja em 100%, enquanto a igreja popular composta por cristãos seguros de si, cristãos duvidosos e híbridos, está fadada ao declínio. Sören Kierkegaard chamava isso, esse medo, de "pecado".

As comunidades religiosas precisam simplesmente de uma multiplicidade de opções na sua forma de agir se não quiserem que o seu futuro seja reduzido a um gueto social. Quando ninguém sabe o que vai acontecer, é preciso permitir tudo, desde a extrema "direita" até a extrema "esquerda". E também é possível se perguntar: por que tantas pessoas, apesar dos escândalos desumanos ou dignos de opereta ocorridos nas comunidades religiosas, não rompem com a religião? Mas a resiliência da religião diante de seu declínio é outro capítulo.

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU: 

Em 2022 o IHU realizou os eventos Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas e XX Simpósio Internacional IHU – Cristianismo, Sociedade, Teologia. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transformação que abordaram, em diversas conferências on-line, a temática das religiões diante das transformações socioculturais no mundo atual. Acesse aqui a playlist com as conferências do Ciclo de Estudos. Acesse aqui a playlist com as conferências do XX Simpósio IHU

 

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