“A secularização é um desafio para a nossa imaginação pastoral”, afirma o Papa Francisco

(Foto: Reprodução | Regnum Christ)

29 Julho 2022

 

"O problema da secularização, para nós cristãos, não deve ser o da menor relevância social da Igreja ou da perda de riquezas materiais e privilégios; antes, aquela pede-nos para refletir sobre as mudanças da sociedade, que influíram sobre o modo como as pessoas pensam e organizam a vida. Se nos debruçarmos sobre este aspecto, damo-nos conta de não ser a que está em crise, mas certas formas e modos com que a anunciamos", afirmou o Papa Francisco na tarde de ontem, 28-07-2022, quando presidiu a Celebração das Vésperas com bispos, padres, consagrados, seminaristas e agentes de pastoral na Catedral Notre Dame de Québec, Canadá.

 

Citando Charles Taylor, filósofo canadense e referência mundial nas reflexões sobre a secularização, o Papa disse: "a secularização é um desafio para a nossa imaginação pastoral, é 'a ocasião para a recomposição da vida espiritual em novas formas e para novas maneiras de existir' (C. Taylor, A Secular Age)".

 

Segundo o Papa Francisco, "o olhar negativo (sobre a secularização), nasce com frequência duma fé que, sentindo-se atacada, considera-se como uma espécie de "armadura" para se defender do mundo. Com amargura, acusa a realidade dizendo: "O mundo é mau, reina o pecado", e assim corre o risco de se revestir dum "espírito de cruzada".

 

Eis o texto.

 

Amados irmãos Bispos, caros sacerdotes e diáconos, consagrados, consagradas e seminaristas, agentes pastorais, boa tarde!

 

Agradeço a D. Raymond Poisson as palavras de boas-vindas que me dirigiu e saúdo a todos vós, especialmente quantos tiveram de percorrer um longo caminho para chegar: as distâncias no vosso país são verdadeiramente grandes! Por isso, obrigado! Estou feliz por vos encontrar.

 

É significativo o nosso encontro nesta Basílica de Notre-Dame do Québec, catedral desta Igreja particular e sede primacial do Canadá, cujo primeiro Bispo, São Francisco de Laval, abriu o Seminário em 1633 tendo-se ocupado, durante todo o seu ministério, da formação dos presbíteros. E dos presbíteros, isto é, dos "anciãos" falou-nos a Leitura Breve que acabamos de ouvir. Assim nos exortou São Pedro: "Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, governando-o não à força, mas de boa vontade" (1 Ped 5, 2). Enquanto estamos aqui reunidos como Povo de Deus, recordemo-nos de que Jesus é o Pastor da nossa vida, que cuida de nós porque nos ama de verdade. A nós, pastores da Igreja, é pedida esta mesma generosidade no pastoreio do rebanho, para que se possa manifestar a solicitude de Jesus por todos e a sua compaixão pelas feridas de cada um.

 

E precisamente porque somos sinal de Cristo, o apóstolo Pedro nos exorta: Apascentai o rebanho, guiai-o, não deixeis que se extravie enquanto vos ocupais dos próprios afazeres. Cuidai dele com dedicação e ternura. E – acrescenta – fazei-o "de boa vontade", e não à força: não como um dever, não como assalariados religiosos ou funcionários do sagrado, mas com coração de pastores, com entusiasmo. Se olharmos mais para Ele, o Bom Pastor, do que para nós mesmos, descobrimos que somos guardados com ternura, sentimos a proximidade de Deus. Daqui nasce a alegria do ministério e, ainda antes, a alegria da fé: não de ver aquilo que somos capazes de fazer, mas de saber que Deus está próximo, que nos amou primeiro e nos acompanha todos os dias.

 

Esta, irmãos e irmãs, é a nossa alegria: não uma alegria fácil, como aquela que o mundo às vezes nos oferece iludindo-nos com fogos de artifício; esta alegria não está ligada a riquezas nem seguranças; nem sequer está ligada à persuasão de que tudo nos correrá sempre bem na vida, sem cruzes nem problemas. Antes, a alegria cristã está unida a uma experiência de paz, que permanece no coração mesmo quando somos atingidos por dificuldades e aflições, porque sabemos que não estamos sozinhos, mas acompanhados por um Deus que não fica indiferente à nossa sorte. Como quando o mar está agitado: à superfície é tempestuoso, mas em profundidade permanece calmo e tranquilo. Assim é a alegria cristã: um dom gratuito, a certeza de saber que somos amados, sustentados e abraçados por Cristo em cada situação da vida. Porque é Ele que nos liberta do egoísmo e do pecado, da tristeza da solidão, do vazio interior e do medo, dando-nos um olhar novo sobre a vida, um olhar novo sobre a história: «Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 1).

 

Então podemos interrogar-nos: Como vai a nossa alegria? Como vai a minha alegria? A nossa Igreja expressa a alegria do Evangelho? Nas nossas comunidades, existe uma fé que atrai pela alegria que comunica?

 

Se quisermos abordar estas questões na sua raiz, não podemos deixar de refletir sobre o que, na realidade do nosso tempo, ameaça a alegria da fé com o risco de a obscurecer, pondo seriamente em crise a experiência cristã. Pensa-se imediatamente na secularização, que já há muito transformou o estilo de vida das mulheres e homens de hoje, deixando Deus quase no último lugar. Parece que Ele desapareceu do horizonte, que a sua Palavra já não se assemelha a uma bússola de orientação para a vida, para as opções fundamentais, para as relações humanas e sociais. Desde já, porém, há que fazer um esclarecimento: quando observamos a cultura em que estamos imersos, as suas linguagens e os seus símbolos, é preciso estarmos atentos para não ficar prisioneiros do pessimismo e do ressentimento, deixando-nos cair em juízos negativos ou em inúteis nostalgias. Com efeito são possíveis dois olhares a respeito do mundo em que vivemos: um, chamá-lo-ia "olhar negativo"; o outro, "olhar que discerne".

 

O primeiro, o olhar negativo, nasce com frequência duma fé que, sentindo-se atacada, considera-se como uma espécie de "armadura" para se defender do mundo. Com amargura, acusa a realidade dizendo: «O mundo é mau, reina o pecado», e assim corre o risco de se revestir dum "espírito de cruzada".

 

Tenhamos cuidado com isto, porque não é cristão; efetivamente não é o modo como atua Deus, o Qual – assim no-lo recorda o Evangelho – «tanto amou o mundo, que lhe entregou o seu Filho unigênito, a fim de que todo o que n’Ele crê não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). O Senhor, que detesta o mundanismo e tem um olhar bom sobre o mundo. Abençoa a nossa vida, bendiz-nos a nós e à nossa realidade, encarna-Se nas situações da história, não para condenar, mas para fazer germinar a semente do Reino precisamente onde parecem triunfar as trevas.

 

Se, pelo contrário, nos detivermos num olhar negativo, acabaremos por negar a encarnação, porque fugiremos da realidade, em vez de nos encarnarmos nela. Fechar-nos-emos em nós mesmos, choraremos as nossas perdas, lamentar-nos-emos continuamente e cairemos na tristeza e no pessimismo: tristeza e pessimismo que nunca vêm de Deus. Em vez disso, somos chamados a ter um olhar semelhante ao de Deus, que sabe distinguir o bem e é obstinado a procurá-lo, vê-lo e alimentá-lo. Não é um olhar ingênuo, mas um olhar que discerne a realidade.

 

Para afinar o nosso discernimento sobre o mundo secularizado, deixemo-nos inspirar pelo que escreveu São Paulo VI na Evangelii nuntiandi, Exortação apostólica ainda hoje plenamente atual: para ele, a secularização é «o esforço, em si mesmo justo e legítimo e não absolutamente incompatível com a fé ou com a religião» (Exort. ap. Evangelii nuntiandi, 55), por descobrir as leis da realidade e da própria vida humana estabelecidas pelo Criador. De fato, Deus não nos quer escravos, mas filhos, não quer decidir no nosso lugar, nem oprimir-nos com um poder sacro num mundo governado por leis religiosas. Não! Ele criou-nos livres e pede-nos para sermos pessoas adultas, pessoas responsáveis na vida e na sociedade.

 

Coisa diversa – distinguia São Paulo VI – é o secularismo, uma concepção de vida que separa completamente do vínculo com o Criador, de tal modo que Deus Se torna "supérfluo e embaraçante" e se geram "novas formas de ateísmo", subdolosas e as mais variadas: "uma civilização do consumo, o hedonismo erigido em valor supremo, uma ambição de poder e predomínio, discriminações de todo o gênero" (Ibidem).

 

Compete-nos a nós, como Igreja e sobretudo como pastores do Povo de Deus, como pastores, como consagradas e consagrados, como seminaristas e como agentes pastorais, saber fazer estas distinções, discernir. Se cedermos ao olhar negativo e julgarmos de forma superficial, arriscamo-nos a fazer passar uma mensagem errada, como se, por trás da crítica da secularização, houvesse da nossa parte a nostalgia dum mundo sacralizado, duma sociedade doutros tempos onde a Igreja e os seus ministros tinham mais poder e relevância social. E esta é uma perspectiva errada.

 

Ao contrário, como observa um grande estudioso destes temas, o problema da secularização, para nós cristãos, não deve ser o da menor relevância social da Igreja ou da perda de riquezas materiais e privilégios; antes, aquela pede-nos para refletir sobre as mudanças da sociedade, que influíram sobre o modo como as pessoas pensam e organizam a vida. Se nos debruçarmos sobre este aspecto, damo-nos conta de não ser a fé que está em crise, mas certas formas e modos com que a anunciamos. Por isso a secularização é um desafio para a nossa imaginação pastoral, é «a ocasião para a recomposição da vida espiritual em novas formas e para novas maneiras de existir» (C. Taylor, A Secular Age, Cambridge 2007, 437 Tradução brasileira: A era secular, Editora Unisinos, São Leopoldo - nota do IHU). Assim, o olhar que discerne, ao mesmo tempo que nos mostra as dificuldades que temos na transmissão da alegria da fé, estimula-nos a encontrar uma nova paixão pela evangelização, procurar novas linguagens, mudar algumas prioridades pastorais, ir ao essencial.

 

Queridos irmãos e irmãs, há necessidade de anunciar o Evangelho, para dar aos homens e mulheres de hoje a alegria da fé. Mas este anúncio não se realiza primariamente por palavras, mas através dum testemunho transbordante de amor gratuito, como Deus faz conosco. É um anúncio que pede para se encarnar num estilo de vida pessoal e eclesial que possa fazer reacender o desejo do Senhor, infundir esperança, transmitir confiança e credibilidade. A propósito disto permiti que vos proponha, com espírito fraterno, três desafios, que podereis desenvolver na oração e no serviço pastoral.

 

O primeiro desafio: fazer Jesus conhecido. Nos desertos espirituais do nosso tempo, gerados pelo secularismo e pela indiferença, é necessário voltar ao primeiro anúncio. Repito: é necessário voltar ao primeiro anúncio. Não podemos presumir de comunicar a alegria da fé apresentando aspectos secundários a quem ainda não abraçou o Senhor na vida, ou então só repetindo algumas práticas ou copiando formas pastorais do passado. É preciso encontrar novos caminhos para anunciar o coração do Evangelho a quantos ainda não encontraram Cristo. Isto pressupõe uma criatividade pastoral para chegar até às pessoas onde elas vivem, não esperando que sejam elas a vir até nós – lá onde vivem! – encontrando ocasiões de escuta, diálogo e encontro. Precisamos de voltar ao essencial, precisamos de voltar ao entusiasmo dos Atos dos Apóstolos, à beleza de nos sentirmos instrumentos da fecundidade do Espírito hoje. Precisamos de voltar à Galileia. É o encontro com Jesus Ressuscitado: voltar à Galileia para – permiti a expressão – recomeçar depois do fracasso. Voltar à Galileia. E cada um de nós tem a sua própria “Galileia”, aquela do primeiro anúncio. Precisamos de recuperar esta memória.

 

Mas, para anunciar o Evangelho, é preciso também sermos credíveis. E aqui está o segundo desafio: o testemunho. Anuncia-se o Evangelho de modo eficaz quando é a vida que fala, que revela aquela liberdade que faz livres os outros, aquela compaixão que nada pede em troca, aquela misericórdia que fala de Cristo sem palavras. A Igreja no Canadá começou um percurso novo depois de ter sido ferida e transtornada pelo mal perpetrado por alguns dos seus filhos. Penso em particular nos abusos sexuais cometidos contra menores e pessoas vulneráveis, escândalos que exigem ações fortes e uma luta irreversível. Quero, juntamente convosco, voltar a pedir perdão a todas as vítimas.

 

O pesar e a vergonha que sentimos devem tornar-se ocasião de conversão: que nunca mais aconteçam! E, pensando no caminho de cura e reconciliação com os irmãos e irmãs indígenas, que nunca mais a comunidade cristã se deixe contaminar pela ideia da superioridade duma cultura sobre as outras e da legitimidade de usar meios de coação em relação aos outros.

 

Recuperemos o ardor missionário do vosso primeiro Bispo, São Francisco de Laval, que arremeteu contra todos aqueles que degradavam os nativos, induzindo-os a consumir bebidas para os dominarem. Não permitamos que nenhuma ideologia aliene e confunda os estilos e as formas de vida dos nossos povos procurando demovê-los e dominá-los. Que os novos progressos da humanidade sejam assimiláveis nas suas identidades culturais com as chaves da cultura.

 

Mas, para derrotar esta cultura da exclusão, é preciso começarmos por nós: que os pastores não se sintam superiores aos irmãos e irmãs do Povo de Deus; que os consagrados vivam a fraternidade e a liberdade na obediência em comunidade; que os seminaristas estejam dispostos a ser servidores dóceis e disponíveis e que os agentes pastorais não vejam o seu serviço como poder. Começa-se daqui. Vós sois os protagonistas e os construtores duma Igreja diferente: humilde, mansa, misericordiosa, uma Igreja que acompanha os processos, que trabalha decidida e serenamente na inculturação, que valoriza cada um e cada diversidade cultural e religiosa. Demos este testemunho!

 

Finalmente, o terceiro desafio: a fraternidade. Primeiro, fazer Jesus conhecido; segundo, testemunho; terceiro, fraternidade.

 

A Igreja será testemunha tanto mais credível do Evangelho quanto mais os seus membros viverem a comunhão, criando ocasiões e espaços para que toda a pessoa que se aproxima da fé encontre uma comunidade acolhedora, que saiba ouvir, que saiba entrar em diálogo, que promova uma boa qualidade nas relações. Assim dizia o vosso santo Bispo aos missionários: "Muitas vezes uma palavra amarga, uma impaciência, um rosto que repele destruirão num momento aquilo que foi construído durante muito tempo" (Instruções aos Missionários, 1668).

 

Trata-se de viver numa comunidade cristã que se torne escola de humanidade, onde se aprende a querer-se bem como irmãos e irmãs, dispostos a trabalhar, juntos, pelo bem comum. De fato, no coração do anúncio evangélico, está o amor de Deus, que transforma e torna capaz de comunhão com todos e de serviço a todos.

 

Um teólogo desta terra escreveu: «O amor que Deus nos dá transborda em amor (...). É um amor que impele o bom samaritano a parar e cuidar do viajante assaltado pelos ladrões. É um amor que não tem fronteiras, que busca o reino de Deus (...) e este reino é universal» (B. Lonergan, «The Future of Christianity»: A Second Collection: Papers by Bernard F. J. Lonergan SJ, London 1974, 154).

 

A Igreja é chamada a encarnar este amor sem fronteiras, para construir o sonho que Deus tem para a humanidade: serem todos irmãos. Interroguemo-nos: Como está a fraternidade entre nós? Os Bispos entre si e com os padres, os padres entre si e com o Povo de Deus: somos irmãos ou concorrentes divididos em facções? E como são as nossas relações com quem não é "dos nossos", com quem não crê, com quem possui tradições e usos diferentes? Este é o caminho: promover relações de fraternidade com todos, com os irmãos e irmãs indígenas, com cada irmã e irmão que encontramos, porque, no rosto de cada um, reflete-se a presença de Deus.

 

Queridos irmãos e irmãs, estes são apenas alguns desafios. Não nos esqueçamos de que só podemos levá-los por diante com a força do Espírito, que sempre devemos invocar na oração. Não deixemos, porém, entrar em nós o espírito do secularismo, pensando que podemos criar projetos que funcionam sozinhos e com as simples forças humanas, sem Deus. Isso é uma idolatria: a idolatria dos projetos sem Deus. E – uma recomendação ainda – não nos fechemos no "retrogradismo", mas avancemos, com alegria!

 

Ponhamos em prática estas palavras que dirigimos a São Francisco de Laval:

 

Fostes o homem da partilha, visitando os doentes,
vestindo os pobres, lutando pela dignidade das populações originárias,
apoiando os missionários cansados,
sempre pronto a estender a mão a quem estava pior do que vós.
Quantas vezes os vossos projetos foram derrubados!
Uma vez e outra voltastes a pô-los de pé.
Compreendestes que a obra de Deus não é de pedra,
e que, nesta terra de desânimo,
havia necessidade dum construtor de esperança.

 

Agradeço-vos tudo o que fazeis e de coração vos abençoo. E por favor, continuai a rezar por mim.

 

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