27 Mai 2022
"A propagação da pandemia é mais um capítulo da erosão democrática e de sistemáticas violações a direitos humanos perpetradas pelo presidente Jair Bolsonaro", escrevem Joana Zylbersztajn, advogada de direitos humanos e membro apoiadora da Comissão Arns e José Luiz del Roio, radialista, ex-senador na República Italiana e membro da Comissão Arns, em artigo publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 25-05-2022.
Eis o artigo.
O presidente da República do Brasil é uma pessoa coerente nos seus propósitos. Desde o início da sua vida pública fez questão de se posicionar contra os direitos humanos, defendendo a ditadura, a tortura e o extermínio. Em abril de 1998, como deputado federal, Bolsonaro afirmou no plenário da Câmara que a cavalaria brasileira havia sido incompetente, diferente da “cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”. Em entrevista na televisão aberta em maio de 1999, se declarou a favor da tortura como método repressivo. Desde então, são inúmeras as falas racistas, misóginas, homofóbicas, a favor da ditadura, com homenagens a torturadores e apoio a atos antidemocráticos.
Ao assumir o governo, o presidente passou a tomar medidas alinhadas ao seu posicionamento histórico. O relatório da organização Human Rights Watch indicou, antes da pandemia da Covid-19, que “durante seu primeiro ano de mandato, o presidente Jair Bolsonaro assumiu uma agenda contra os direitos humanos, adotando medidas que colocariam em maior risco populações já vulneráveis”. A pandemia, portanto, foi mais uma oportunidade para o presidente consolidar sua política de morte contra aquelas pessoas que ele sempre considerou “descartáveis”.
É neste contexto que acontece entre os dias 24 e 25 de maio a 50ª sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), provocada pela Comissão Arns, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Coalizão Negra por Direitos e Internacional de Serviços Públicos Brasil, para julgar “as responsabilidades do governo Bolsonaro por violações sistemáticas aos direitos fundamentais dos povos brasileiros perpetradas por políticas adotadas na pandemia de Covid-19”.
O TPP é uma corte internacional de opinião, de jurisdição informal, que julga violações de direitos humanos de povos e minorias. Fundado na Itália em 1979 no contexto da Declaração Universal dos Direitos dos Povos (Argel, 1976), tornou-se uma instituição de escuta permanente aos povos que enfrentam a ausência de lei e a impunidade em seus países. Nos últimos anos o Tribunal construiu uma agenda de trabalho global para os direitos humanos, promovendo denúncias, documentação, investigação e recomendações.
Até o momento, o TPP realizou 49 sessões em todo o mundo. Destacou casos de graves violações dos direitos humanos, crimes contra a humanidade, de guerra e genocídio. Evoluiu para tratar ainda de crimes econômicos, ecológicos e sistêmicos, cometidos por Estados ou agentes privados. Mesmo que não tenha efeito condenatório do ponto de vista jurídico, serve de alerta para que graves situações não se repitam e cria referências para a formulação de legislações nacionais e internacionais.

Sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) nesta terça-feira (24) na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo (Foto: Reprodução/YouTube)
Nesta 50ª sessão, as entidades denunciantes alegam que o governo federal adotou uma “estratégia deliberada de contaminação de brasileiros e estrangeiros vivendo no país, por meio da instrumentalização e da perversão de instituições do Estado brasileiro e do abuso de poderes normativos presidenciais. A propagação da pandemia é mais um capítulo da erosão democrática e de sistemáticas violações a direitos humanos perpetradas pelo presidente Jair Bolsonaro. A acusação aponta ainda que tal política de propagação do vírus afetou desproporcionalmente a população indígena, negra e os profissionais de saúde, acentuando vulnerabilidades e desigualdades no acesso a serviços públicos e na fruição de direitos humanos”.
As entidades promotoras desta sessão do Tribunal lançam mão de uma série de recursos comprobatórios para a sua acusação de crime contra a humanidade e de genocídio. São trazidos ao julgamento discursos compilados do presidente, levantamento de atos normativos e omissões, estudos científicos produzidos nos últimos anos por instituições nacionais e internacionais de pesquisa, além de uma série de testemunhos dos grupos especialmente afetados.
A defesa fica a cargo de representante designado pelo governo brasileiro. Em caso de o governo brasileiro não participar do julgamento, o TPP designará um relator ad hoc. O júri internacional da sessão terá doze membros de nacionalidades distintas. São especialistas reconhecidos na área do direito, das ciências sociais e em saúde global.
Na ausência de iniciativas de tribunais nacionais, regionais ou internacionais, o TPP passa a ser uma organização mais acessível de justiça. Espera-se que a sua 50ª sessão jogue luz sobre a situação calamitosa dos direitos humanos no Brasil governado por Jair Bolsonaro.
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Pandemia e autoritarismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU