Ucrânia: Putin, Cirilo e os vassalos

Vladmir Putin, Cirilo I de Moscou e Ksenia Sheremétyeva-Yusúpova. (Foto: Presidential Press and Information Office)

25 Fevereiro 2022

 

"Se o cisma intraortodoxo alimentou o conflito russo-ucraniano, ambos colocaram em séria dificuldade o caminho ecumênico das Igrejas, que hoje está, em grande parte, à frente da Igreja Católica", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 24-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

O modelo expansionista da Rússia de Putin e a afasia da Igreja Ortodoxa de Moscou caracterizam a agressão militar contra a Ucrânia.

 

Após um longo e tenso discurso transmitido pela televisão e após o reconhecimento da independência das regiões de Donetsk e Lugansk (Donbass), em 21 de fevereiro o presidente russo ordenou que os militares cruzassem a fronteira.

 

O modelo de conflito pós-soviético

 

Já havia ocorrido em 1992 em relação à Moldávia (russificação da Transnístria). Foi repetido com Putin em 2008 na guerra russo-georgiana (ocupando parte da Ossétia e Abkhazia) e novamente em 2014 na ocupação militar da Crimeia (tirada da Ucrânia).

 

Putin cria para suas fronteiras novas formações "estatais" que, por um lado, bloqueiam esses territórios na função de amortecedores e, por outro, envenenam os respectivos países em seu caminho democrático e de resgate econômico. Sempre submetidos à ameaça do grande vizinho. Mas acima de tudo alimentam a pretensão da "grande Rússia", do retorno aos territórios e condicionamento da União Soviética.

 

O fim da União é para o presidente russo a grande tragédia do século que deve ser necessariamente remediada, inclusive rasgando os pactos bilaterais e multilaterais assinados (como o acordo sobre mísseis de médio alcance - inclusive anulados também por Trump - e o tratado sobre as forças convencionais na Europa).

 

A expansão da OTAN (aliança atlântica) é invocada para fortalecer as defesas russas e enfraquecer a atração da União Europeia. Como disse o arcebispo greco-católico Borys Gudziak (responsável pela América do Norte), o motivo da agressão russa não é a oportunidade de uma saída militar no Mar Negro. Não é a defesa da população de língua russa porque estes constituem a maioria do exército que defende a Ucrânia e são aqueles que acabam mortos pelos foguetes e pelos franco-atiradores. Eles são a maioria das 14.000 vítimas nos oito anos de guerra”. Tampouco se trata da defesa da Igreja Ortodoxa da obediência russa, "porque muitas das pessoas mortas foram batizadas na Igreja Ortodoxa russa". A verdadeira razão "é porque a Ucrânia é uma democracia nascente e, em muitos aspectos, ativa".

 

Um país em trânsito do totalitarismo para a liberdade é intolerável nas fronteiras russas porque o que acontece em Kiev pode acontecer em Moscou. Entre os primeiros resultados da operação militar devem ser registrados a recompactação da aliança atlântica (Suécia e Finlândia apresentam o pedido de entrada), a convergência na União Europeia, a renovada centralidade dos Estados Unidos.

 

Mas também a expectativa sobre onde o exército russo vai parar, sobre o fortalecimento dos nacionalismos de direita dos países vizinhos (Polônia, Lituânia, Estônia), sobre que legitimidade dará à China para prosseguir com a ocupação de Taiwan.

 

Oração e Paz

 

O clima de guerra obrigou, especialmente as Igrejas, a fortalecer a pregação pela paz. O Papa Francisco convocou todos os católicos a uma oração pela Ucrânia em 26 de janeiro, como havia feito pelo Líbano em 2020.

 

Três dias antes, disse: "Acompanho com preocupação as crescentes tensões que ameaçam infligir um novo golpe à paz na Ucrânia e voltam a questionar a segurança do continente europeu, com repercussões muito mais amplas”. "Como é triste quando pessoas e povos orgulhosos de serem cristãos veem os outros como inimigos e pensam em fazer a guerra!"

 

Na mesma onda, o núncio na Ucrânia, D. Visvaldas Kulbokas, o card. Leonardo Sandri, prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais, o Conselho das Conferências Episcopais Europeias, o Patriarca Ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu, ("pedimos paz, estabilidade e justiça duradouras na região"), a presidente da Igreja Protestante alemã Igreja, Annette Kurschus. Os bispos poloneses, fortalecidos pela proximidade ao antiocidentalismo russo e as relações históricas com a Ucrânia, propõem, com alguma ambição, um encontro de todas as confissões interessadas no conflito.

 

De dentro da Ucrânia, os apelos à paz estão se multiplicando. O Patriarca Ortodoxo Epifânio (Igreja Autocéfala) denuncia a ameaça russa e pede paz. O bispo latino de Kiev, Vitalii Kryvytskyi, afirma que não há pânico, mas muitos estão pensando em se mudar para as regiões ocidentais do país. O arcebispo maior dos ucranianos (grego-católicos), Sviatoslasv Shevchuk, afirma: "As pessoas dizem que se o papa vier à Ucrânia, a guerra terminará". O bispo grego-católico Tuchapets lidera a recitação diária do rosário pela paz em sua eparquia.

 

O embaixador ucraniano junto à Santa Sé, Andriy Yurash, lembra que o governo é a favor de diálogos diretos entre Ucrânia e Rússia em território neutro como o Vaticano. Em 16 de fevereiro, proclamado dia da unidade nacional, o Conselho Pan-ucraniano das Religiões se reúne na Catedral de Santa Sofia em Kiev para uma oração comum.

 

Da parte da liderança eclesial russa, que normalmente se manifesta bastante, um silêncio substancial. Um silêncio que vê aumentar o fosso entre as duas Igrejas ortodoxas ucraniana, aquela pró-russa (bispo Onúfrio) e aquela autocéfala (bispo Epifânio). As últimas pesquisas de opinião dão a maioria da população ortodoxa ligadas a esta última Igreja. A divisão eclesial de 2019, com a concessão da autocefalia por Bartolomeu, alimentou as suspeitas mútuas.

 

Do lado político-eclesial pró-Rússia, o alarme veio sobre um hipotético acordo entre a Ucrânia e a Santa Sé. Seria, dizem eles, mais uma ferida na relação recíproca entre as confissões. D. Borys Gudziak conclui: "É realmente espantoso que a Igreja Ortodoxa Russa compactue com o agressivo ataque militar contra um país e uma sociedade democrática".

 

Russkiy-mir e o sonho imperial

 

Além do caso dos bispos ortodoxos de Donbass diretamente envolvidos, como D. Hilarion de Mariupol que pediu aos mosteiros que abrissem suas portas aos refugiados, de Moscou, geralmente intervencionista, poucas palavras chegam. D. Hilarion, presidente do departamento de relações exteriores do patriarcado, dá como certa a distância entre as duas repúblicas autônomas de Donbass e a Ucrânia e pede a retomada do diálogo entre as partes, deslocando a questão para o conflito entre Rússia e Ocidente.

 

A plena adesão da Igreja Ortodoxa russa à política de Putin é ainda mais reforçada. Nenhuma voz da liderança eclesial se levantou para fazer perguntas sobre as intervenções na Geórgia, no Azerbaijão, na Ucrânia (antes para Crimeia, hoje para o Donbass). De alguma forma a cúpula eclesiástica, e em particular o patriarca Cirilo, antecipou o projeto de governo, teorizando o Russkiy-mir (pensamento russo), ou seja, a extensão da responsabilidade moscovita sobre as Igrejas das nações que antes faziam parte do União Soviética e sobre os territórios mais ou menos próximos.

 

Mal e mal suportado o caso georgiano (sede de um antigo patriarcado), a pronta intervenção (a rápida substituição do bispo metropolitano) amenizou o perigo de divisão na Bielorrússia. A derrota ucraniana (autocefalia) está longe de ser aceita. As fronteiras geográficas foram assim repetidamente definidas por D. Hilarion: Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia, as antigas repúblicas asiáticas, Letônia, Lituânia, Estônia (além do Japão, China e Mongólia).

 

Mais recentemente, a abertura de um exarcado para a África. Em 2 de fevereiro, D. Hilarion recebeu uma das mais importantes honrarias russas de Putin, a ordem de Alexander Nevsky. Naquela ocasião, ele se expressou assim: “Nosso departamento às vezes é chamado de Ministério das Relações Exteriores da Igreja. O que não é correto porque não tratamos apenas de assuntos externos, mas também de relações inter-religiosas em nossa pátria. E nos últimos anos nos sentimos cada vez mais como uma espécie de departamento de defesa, porque temos que defender as sagradas fronteiras de nossa Igreja”.

 

“A Igreja Russa foi sendo formada ao longo de mais de dez séculos e nós a herdamos dentro das fronteiras em que foi criada. Nós não a criamos e não podemos destruí-la. Assim, continuaremos a resistir aos desafios externos que enfrentamos hoje”.

 

Putin fala como Cirilo

 

Putin, no discurso mencionado no início, depois de ter acusado o governo e a liderança ucraniana de ser um regime fantoche, corrupto, neofascista e economicamente falido, pousou de paladino da liberdade religiosa, invocando a defesa da Igreja Ortodoxa Ucraniana pró-russa, com os mesmos argumentos usados pelo patriarcado: “As autoridades ucranianas transformaram cinicamente a tragédia da divisão da Igreja em um instrumento de política de Estado. A atual liderança do país não responde aos pedidos dos cidadãos (ortodoxos pró-russos) para revogar leis que violam os direitos dos crentes”.

 

Aliás, há novos projetos de lei punitivos contra a Igreja que se referem a D. Onúfrio. "Kiev continua a preparar uma repressão contra a Igreja Ortodoxa ucraniana do Patriarcado de Moscou".

 

Além do Russkiy-mir (pensamento russo), pesa muito a longa tradição ortodoxa da "sinfonia" entre igreja e estado, igreja e poder. Na longa história da ortodoxia não há uma elaboração do possível conflito entre poder civil e poder eclesial. E, apesar de experimentar períodos de perseguição bastante longos (como no caso do regime soviético), ainda não construiu uma doutrina a respeito, exceto um texto russo sobre a doutrina social da primeira década do século e um segundo, mais recente, resultado do Concílio de Creta.

 

O futuro do ecumenismo

 

Se o cisma intraortodoxo alimentou o conflito russo-ucraniano, ambos colocaram em séria dificuldade o caminho ecumênico das Igrejas, que hoje está, em grande parte, à frente da Igreja Católica.

 

É verdade que o papa pode falar com todos os ortodoxos e que as outras confissões cristãs favorecem o esforço ecumênico, mas o cisma entre helenistas e eslavos ortodoxos redesenha as conversas (as teológicas são cada vez menos possíveis) e redefine os encontros, como o esperado segundo encontro com o Patriarca Cirilo. O papa não poderá ignorar o caso ucraniano.

 

Mas talvez seja precisamente o desastre humano já em curso (14.000 vítimas, um milhão e meio de refugiados) e que uma ampliação da guerra que explodir ainda mais que forçará todos os crentes àquelas relações de estima e proximidade, de ajuda e de compreensão, de oração e de perdão que permitirão escutar o imperativo de Jesus para a unidade da sua Igreja.

 

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