A guerra assimétrica de Putin

Foto: 7th Army Training Command | Flickr CC

24 Fevereiro 2022

 

“Os líderes europeus não entenderam qual era a situação global, erraram em sua avaliação ao manter a confiança nas promessas de Putin. Por outro lado, os EUA foram muito mais cautelosos e, assim, voltam a ser central para o que é mais valioso: entender a realidade das coisas. Isso cria uma nova subordinação política da Europa aos Estados Unidos”, escreve o sinólogo italiano Francesco Sisci, em artigo publicado por Settimana News, 23-02-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Ainda não é uma invasão tradicional, mas certamente com o desdobramento de forças, tiros, lançamentos de mísseis, movimentação de tropas, quedas da bolsa e aumentos de preços, já estamos em meio a uma guerra assimétrica, típica do século XXI.

 

Ou melhor, é o exemplo mais recente da guerra híbrida de Alexander Goncharov, o general russo que conseguiu impor seu modelo de conflito para a Segunda Guerra Fria na Europa, assim como a guerra de trincheiras era típica da Primeira Guerra Mundial, os avanços dos tanques na blitzkrieg foram a marca registrada da Segunda Guerra Mundial e os conflitos proxy (por procuração) tornaram a Primeira Guerra Fria.

 

O presidente russo, Vladimir Putin, continua com sua política de tensão, temeridade, ordenando que seus soldados entrem nas áreas já disputadas pelos independentistas de língua russa da Ucrânia. Até agora, é uma mini-invasão, e o resto do destacamento das forças armadas ainda parece funcionar como uma ameaça.

 

Em seu discurso, porém, de forma mais ampla, o presidente russo nega a situação política que surgiu após o colapso da URSS. Os Estados que surgiram não têm essa dignidade: existe apenas a Rússia, uma verdadeira nação com verdadeira história, que, portanto, mais cedo ou mais tarde deve reabsorver os outros “pequenos Estados” surgidos do desaparecimento soviético.

 

Sem ter a menor ideia de suas intenções finais, suas ações e palavras parecem buscar uma saída honrosa para serem apresentadas internamente. Não está claro quando e como isso vai acontecer, se vai acontecer, mas certamente parece ser uma crise semelhante a Cuba, quando o líder soviético Kruschev desafiou os EUA em 1962, exatamente 60 anos atrás, todo um ciclo do horóscopo chinês atrás.

 

A situação terminou com um compromisso, mas talvez também esqueçamos que nessa época também começou a rixa com a China e logo depois da queda de Kruschev.

 

É claro que as semelhanças históricas devem ser tomadas com cautela. Kruschev estava no poder há pouco tempo. Putin lidera Moscou há mais de duas décadas. A estrutura do sistema soviético era muito diferente do atual russo. Mas semelhante a então é a consolidação ou não do poder em Moscou, então com uma agenda reformista, agora com uma agenda revanchista. Além disso, os laços com a China foram reforçados recentemente, então Pequim agonizava há mais de uma década sob o que considerava um jugo soviético.

 

No entanto, Putin aparece de costas contra a parede e sem nenhuma boa solução à sua frente.

 

Parece que ele está realmente agindo para tentar rasgar a rede na qual ele caiu. As alternativas ao seu atual temor são piores: recuar sem resultados é um desprezo, mas invadir é arriscado e envolve repercussões sociais que já derrubaram regimes em Moscou em outras ocasiões, como argumentamos.

 

Putin está tentando mostrar sua imagem como um homem forte, fingindo que está esmagando os fracos políticos ocidentais e semeando divisões no debate ocidental, alegando ser em cada país ocidental um parceiro melhor do que seu inimigo local. Ainda para uma saída, ele precisa de um lado externo, mas não é fácil porque os Estados Unidos não confiam nele, certo ou errado. Aqui a página vira para os Estados Unidos.

 

Todo o impasse é, de fato, um grande presente inesperado para o presidente Joe Biden, exatamente o oposto da crise cubana de 60 anos atrás, que colocou o então presidente Kennedy em apuros.

 

Na Europa, os Estados Unidos estão de volta como um ator político e o farol político para os países da UE que acreditavam que Washington era supérfluo em seus assuntos continentais apenas algumas semanas atrás. A OTAN ressuscitou do túmulo. A posição dos EUA na Ásia foi fortalecida ao tranquilizar os aliados de sua presença. A China está avisada de que a Rússia é aventureira e os EUA são sérios.

 

Nos EUA, aguardando as eleições de meio de mandato, Biden é o homem que finalmente, após mais de vinte anos de esforços inúteis, conseguiu conter Putin.

 

Felizmente, por ingenuidade ou por um erro de cálculo do próprio Putin, Biden sonolento, educado e de fala mansa aparece como a resposta que muitos nos Estados Unidos e fora dela estavam esperando, o punho de ferro em uma luva de veludo. Aqui também estão as diferenças com a situação de Putin.

 

O presidente russo tem interesse em encontrar uma saída o mais rápido possível, para depois tentar consertar as coisas em casa. Biden pode “ganhar” e se mostrar forte caso uma solução for encontrada mais cedo ou mais tarde. As agitações de Putin apenas reforçam a centralidade estadunidense no exterior e em casa.

 

Mesmo assim, muitos querem uma solução, o diabo como sempre está nos detalhes. Pelo que Putin poderia querer declarar vitória e ter uma arma para lutar por si mesmo em casa?

 

Talvez estacionar algumas tropas em Donbass seja suficiente se for realmente acompanhado por uma retirada de tropas na fronteira ucraniana. É claro que isso não eliminará as sanções que o Ocidente aplicará à Rússia, o fortalecimento da OTAN ou a consolidação dos EUA no mundo. Mas poderia ser suficiente para Putin?

 

A questão aqui não está na Ucrânia, mas sim nos equilíbrios em Moscou. Não está claro o quão grande e forte é a oposição ao presidente russo em suas estruturas e o que ele precisa para se sentir seguro. De fato, Putin parece ser um pato manco; não está claro quando ele pode tropeçar e o que pode acontecer no tropeço.

 

Esse é o maior risco associado ao fato agora claro de que o apaziguamento não funciona com ele: simplesmente o encoraja a novas demandas mais fantásticas. Isso pode ser mais um sinal de fraqueza interna. O colapso da Bolsa de Valores de Moscou, as sanções contra a venda de títulos russos e a ameaça de apreensão dos ativos e contas dos oligarcas russos no exterior colocam os interesses da aristocracia de Putin objetivamente contra os de Putin.

 

Os dois interesses só podem se fundir se a aristocracia acreditar que os interesses se fundirão em um futuro próximo e a aposta de Putin renderá juros. Mas essa perspectiva parece cada vez mais instável à medida que a frente anti-russa do Atlântico se fortalece.

 

Portanto, é necessário manter a calma e monitorar a situação minuto a minuto. Nisto, os EUA têm outra vantagem. Desde o início viu claramente a situação real entre a Rússia e a Ucrânia, ao contrário da Alemanha e da França, que se iludiram de que poderiam conter Putin com concessões ou foram forçadas por políticas energéticas mal concebidas. Eles deram grande influência a Moscou, que a usou insensivelmente.

 

Para alguns países europeus importantes, é um ponto de virada. Nas últimas três décadas, a Alemanha impulsionou sua política pensando que poderia ser uma espécie de maior Suíça guiada pela geoeconomia e pela neutralidade política. A França buscou seus interesses nacionais mesmo à custa de atritos com aliados, fingindo ser uma superpotência e sendo ouvida. A Itália simplesmente desistiu da política externa vendendo-se ao maior lance do dia. Essas ideias podem ser egoístas, mas podem funcionar. No entanto, todos eles precisavam que ninguém e particularmente a Rússia não infringisse sua segurança política geral. Isso aconteceu com a Ucrânia, quando Putin está forçando seu caminho para o oeste, tentando forçar um país independente de volta aos moldes de estilo soviético.

 

Além disso, há uma consequência intereuropeia. Os países da “nova” UE (Polônia, Báltico e Romênia) estavam mais lúcidos com medo dos movimentos russos desde o início. Tais avaliações revelaram-se precisas. É claro que esses países não têm a força econômica da “velha” UE, mas a avaliação política correta pode lhes dar mais influência em breve.

 

Em suma, isso cria uma nova “subordinação” política da Europa aos Estados Unidos. Os líderes europeus não entenderam qual era a situação global, erraram em sua avaliação ao manter a confiança nas promessas de Putin. Por outro lado, os EUA foram muito mais cautelosos e, assim, voltam a ser central para o que é mais valioso: entender a realidade das coisas.

 

Independentemente da solução para a desordem atual, a capacidade de ver as coisas como elas são, em um mundo coberto de propaganda e pensamento positivo que tem precedência sobre a avaliação da realidade, é o mais precioso, o único e verdadeiro anel sagrado.

 

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