Em meio a temores nucleares, lembremos um papa que ajudou a evitar o Armagedom

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

14 Agosto 2017

Embora possa ser prematuro comprar a ameaça da Coreia do Norte em disparar mísseis balísticos próximos a Guam e a Crise dos Mísseis de Cuba, o nível gerado de ansiedade é inegável. A situação atual evoca memórias de um papa que muito se assemelha a Francisco: o Papa João XXIII, líder católico que ajudou a evitar uma guerra nuclear proferindo um apelo oportuno e apaixonado pela paz.

A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 13-08-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

É imaturo comparar o perigo representado pela ameaça da Coreia do Norte em realizar testes com mísseis balísticos lançados no litoral de Guam, ao lado da resposta austera dada pelo presidente americano Donald Trump, com o terror que preocupou o mundo em outubro de 1962 em meio à Crise dos Mísseis de Cuba.

Nessa época, na linha de fogo não estava somente um território insular remoto americano. Se os soviéticos e americanos tivessem se lançado numa guerra declarada sobre Cuba, o planeta inteiro estaria em risco.

Hoje, Guam representa um exemplo claro e, ao mesmo tempo, indesejado. O governador da ilha, Eddie Calvo, já disse que o território está bem protegido, contando com o sistema de defesa antimísseis THAAD, projetado especialmente para derrubar o tipo de armamento que o ditador norte-coreano Kim Jong-un possui.

Além disso, os moradores da ilha há tempos estão acostumados com a retórica franca por parte das autoridades norte-coreanas, e até agora eles não parecem alarmados. No entanto, os pastores deste país esmagadoramente católico estão tentando oferecer um conforto espiritual.

Em nota divulgada quarta-feira da semana passada, a Arquidiocese de Agana, em Guam, instou os fiéis a “olharem para Deus nestes tempos difíceis”.

“Na sequência do noticiário nacional de que a Coreia do Norte ameaça atacar a nossa ilha com mísseis, a Arquidiocese de Agana lembra a todos para que permaneçam fundamentados na paz de Cristo”, diz o texto.

Visto que as coisas poderão se intensificar rapidamente, vale a pena revermos o papel que a Igreja Católica desempenhou na crise cubana meio século atrás – em particular, a contribuição de São João XXIII, conhecido como o “Papa Bom”.

Assim que o drama começou em meados de outubro, hoje sabemos, João XXIII foi contatado pelo presidente americano John Kennedy e instado a se pronunciar. O contato fora mantido em segredo na época.

Kennedy não queria deixar a impressão de que se encontrava sob influência do Vaticano, sendo ele o primeiro presidente católico”, disse o padre jesuíta Norman Tanner, historiador da Igreja, em entrevista à Rádio Vaticano em 2012.

Segundo o religioso, “a partir de registros históricos posteriores, ficou claro que Kennedy de fato fez um pedido ao papa”.

Em 22 de outubro, o presidente foi à televisão para anunciar que um míssil disparado de Cuba desencadearia uma resposta de retaliação contra a União Soviética, e que os EUA estavam impondo um bloqueio naval a embarcações russas. Em 24 de outubro, Khrushchev advertiu que um tal ato de “pirataria declarada” pelos EUA levaria à guerra.

Era essa a situação mundial quando João XXIII foi à Rádio Vaticano, numa quinta-feira, 24-10-1962, falando em francês – idioma da diplomacia internacional –, para emitir um apelo apaixonado pela paz.

“Nós suplicamos a todos os governantes que não fiquem surdos a este grito da humanidade”, disse ele. “Que façam tudo aquilo que está em seu poder para salvar a paz. Evitarão assim ao mundo os horrores de uma guerra, da qual não se pode prever quais serão as terríveis consequências”.

“[Pedimos] Que continuem com discussões, visto que esse comportamento leal e aberto tem grande valor como testemunha da consciência de cada um e diante da história”, declarou João XXIII na ocasião. “Promover, favorecer, aceitar conversações, em todos os níveis e a qualquer momento, é uma regra de sabedoria e prudência que atrai as bênçãos do céu e da terra”.

Esta declaração foi reproduzida nas capas dos jornais do mundo inteiro na manhã seguinte, incluindo o órgão do partido soviético Pravda.

Dois dias depois, Khrushchev anunciava que os navios russos estavam retornando para casa, e a crise cessou.

Tanner enfatiza que não devemos exagerar as consequências do que João XXIII fez, e sim considerar a sua ação como um “fator” – e não uma “intervenção crucial”. Mesmo assim, diz na entrevista, até mesmo Khrushchev admitiu que o discurso papal fez diferença.

“Do lado russo, sabemos que houve contatos com o Papa João XXIII pouco antes desta transmissão”, informa Tanner. “Mais tarde, soubemos que Khrushchev reconheceria publicamente a sua gratidão e dívida a João XXIII por, por assim dizer, ajudar naquela situação difícil em estava, dando-lhe um motivo para a retirada”.

Na ocasião em que fez o seu pronunciamento, João XXIII já sabia que estava prestes a falecer. Dois meses depois, ainda assombrado pela proximidade de uma guerra nuclear, publicou a sua encíclica final, Pacem in Terris.

Tanner diz ainda que este documento marcou um ponto de inflexão no magistério social papal.

Pacem in Terris faz um apelo a todas as nações, a todos os Estados, e esta dimensão em nível mundial foi uma ênfase nova”, disse. “Antes, quando os papas falavam sobre justiça e paz, havia uma ênfase maior nos direitos dos Estados católicos, no direito de um país católico de se defender, mas João XXIII apelou mais diretamente à natureza humana, aos direitos humanos e à importância da paz em si a todas as pessoas, de um jeito que transcendeu a preocupação imediata da Igreja Católica de Roma”.

A carta encíclica endereçava-se não somente à hierarquia, ao clero e aos fiéis da Igreja Católica, mas também “a todas as pessoas de boa vontade”.

De forma parecida com João XXIII, o Papa Francisco já fez vários apelos à paz, incluindo a advertência em abril deste ano de que uma guerra nuclear desencadeada pelo impasse norte-coreano destruiria “uma boa parte da humanidade e da cultura, tudo, tudo”.

Não há dúvida de que ele continuará nesse sentido, talvez já mesmo em sua próxima oração do Angelus.

O legado de João XXIII é um lembrete oportuno de que tais declarações não são varinhas mágicas, mas, nas mãos de um pontífice admirado e eficiente, e instalado no momento certo, elas podem, a todo instante, transformar o mundo.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Em meio a temores nucleares, lembremos um papa que ajudou a evitar o Armagedom - Instituto Humanitas Unisinos - IHU