''Quem sou eu para julgar?'' O primeiro ano de um papa radical

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

20 Dezembro 2013

Na maioria das quartas-feiras, o papa dá uma audiência geral, e esta estava lotada. Era uma manhã agradável de outubro, e mais de 100 mil peregrinos, turistas e romanos tinham se canalizado na Praça de São Pedro. Foi o primeiro dos três grandes encontros que o Papa Francisco presidiu naquela semana para uma celebração da família durante o "Ano da Fé" da Igreja Católica.

A reportagem é de James Carroll, publicada na revista The New Yorker, 23-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Cercas de madeira impunham ordem na praça. Eu estava a cerca de 30 metros do papa. Na minha frente, havia alguns funcionários do Vaticano de smoking e gravatas-borboleta brancas, vários clérigos, um homem baixo de kipá e um belo casal de mãos dadas. Além deles, Francisco, 76 anos de idade, em sua batina e solidéu brancos, parecia energizado pela multidão festiva. Um homem grande com um sorriso pronto, ele leu um breve texto em italiano, mas com fervor. "Que tipo de amor temos uns pelos outros? (…) Será que nós tratamos uns aos outros como irmãos e irmãs? Ou julgamos uns aos outros?". A multidão estava em silêncio, ouvindo com atenção. Depois que Francisco falou, outros resumiram os comentários em várias línguas. Em seguida, uma fila de prelados se aproximou da sua cadeira.

Agora, os prelados tinham ido embora, e Francisco, com os guardas a uma distância discreta, movimentava-se ao longo das cercas, cumprimentando as pessoas. O casal da fila da frente estava na faixa dos 30 anos, eram altos e estavam vestidos com roupa escura. Ao contrário de outros no corrimão, que estavam acenando e chamando "Papa Francesco! Papa Francesco!", eles ficaram em seus lugares. Mas quando Francisco se virou para eles, a mulher se inclinou para frente com tal gravidade que o papa percebeu e parou. Lágrimas corriam em seu rosto. Francisco pegou a sua mão, que ela tomou como uma licença para colocar a boca em sua orelha. Ela sussurrou algo. Francisco olhou assustado, recuou um pouco, em seguida, virou-se para o seu parceiro. O papa o abraçou, em seguida chamou a mulher para se juntar a eles. Ficaram assim por um tempo, o casal envolto nos braços do bispo de Roma. Então, Francisco colocou as mãos sobre a cabeça do homem. Os ombros do homem balançaram ligeiramente. O papa fez um sinal da cruz no ar acima deles e seguiu em frente.

À medida que a multidão se dispersou, eu me aproximei do casal. O homem estava chorando. A mulher me disse: "Já faz quatro anos e meio que meu marido tem um tumor no cérebro. Ele está ficando cada vez pior. Viemos apenas para isso, para receber a sua bênção, não importando qual seja – física, emocional ou espiritual". Ela me disse que eles eram da Argentina, como Francisco. "Eu me sinto muito próxima dele. Seu olhar, sua voz, tudo está próximo do meu coração. Mas, certamente, não porque ele é da Argentina”.

Uma vez, eu me senti assim mesmo, com outro papa. Isso foi em 1960, e eu tinha 17 anos, com o objetivo de ser um oficial da Força Aérea, como meu pai, um grande general. À minha família foi concedida uma audiência privada com o Papa João XXIII. Meus pais, minha avó, meus quatro irmãos e eu rumamos até a escada de Bernini que leva aos apartamentos papais na Cidade do Vaticano. Meu pai estava de uniforme, duas estrelas em cada ombro. Minha mãe e minha avó foram cobertas com mantilhas negras. Fomos levados a uma pequena sala de teto alto com paredes de tecido vermelho, um trono elevado situava-se em uma das extremidades. Um monsenhor nos alinhou. Em seguida, o Papa João entrou, sorrindo, com as mãos estendidas.

Ele era baixo e corpulento, todo de branco, embora seus sapatos fossem vermelhos. Seus olhos dançavam. Com um grito de "Bravo!", ele bateu palmas, saudando os meus pais pela sua grande família católica. João, que nasceu Angelo Giuseppe Roncalli, na Lombardia, era um dos 14 filhos de um agricultor.

Eu era um rapaz alto, e o papa estendeu a mão aos meus ombros para me puxar para baixo. Ele colocou a boca na minha orelha, sua bochecha contra a minha. Podia sentir o cheiro de seu sabonete. Ele falou comigo em italiano – ou seria latim? – em um sussurro íntimo. Anos mais tarde, eu olharia para trás, para a minha reação tão ingênua, mas nos braços do Papa João eu senti o abraço de Deus. Eu não tinha como compreender o significado do vindouro Concílio ecumênico de João – a reunião de bispos conhecidos como o Concílio Vaticano II, que se reuniu em quatro sessões, entre 1962 e 1965, e que iria reformar a Igreja, mas para mim ele desempenhou um papel fundamental. Em pouco tempo, eu abandonei o meu sonho da Força Aérea e entrei no seminário para me tornar um padre católico. Deixei o sacerdócio depois de cinco anos, mas nunca deixei de ser um católico do Papa João XXIII, que, dada a inclinação reacionária dos papados posteriores, significaram longas décadas de exílio interno. Ultimamente, o fato de uma vez eu ter buscado transcendência na presença de um papa deixou de parecer algo ingenuo.

I – Surpresa

“Quem sou eu para julgar?” Com essas cinco palavras, ditas no fim de julho, em resposta a uma pergunta de um jornalista sobre o status dos padres gays na Igreja, o Papa Francisco deixou de lado o tom de desaprovação, a moralização explícita, típica de papas e bispos. Esse gesto de abertura, que surpreendeu o mundo católico, provaria não ser um evento isolado. Em uma série de entrevistas e discursos nos primeiros meses depois de sua eleição em março, o papa, unilateralmente, declarou uma espécie de trégua nas guerras culturais que têm dividido o Vaticano e boa parte do mundo.

Repetidamente, ele argumentou que o propósito da Igreja era mais o de proclamar o amor misericordioso de Deus por todas as pessoas do que condenar os pecadores que ficaram aquém das estruturas, especialmente aquelas que têm a ver com gênero e orientação sexual. Sua ruptura com seus antecessores imediatos – João Paulo II, que morreu em 2005, e Bento XVI, o teólogo alemão tradicionalista que renunciou ao papado em fevereiro – é menos ideológica e mais intuitiva, uma visão inclusiva da Igreja centrada em uma identificação com os pobres. A partir dessa visão, as inovações teológicas e organizacionais fluem. A passagem de governar por imperativos inegociáveis para a liderança através do convite e da acolhida é tão fundamental para o significado da fé quanto qualquer dogma.

Do 1,2 bilhão de católicos no mundo, cerca de 41% vivem na América Latina. O catolicismo tem diminuído na Europa e nos Estados Unidos, mas os bancos das igrejas de todo o mundo em desenvolvimento estão lotados. A eleição pelo Colégio dos Cardeais do primeiro papa latino-americano é um sinal demográfico crucial da Igreja. O lugar de origem de Francisco por si só faria dele uma figura histórica, mas as declarações que ele fez e o exemplo que ele tem dado, com gestos de humildade e compaixão, mostram um homem determinado a realinhar a grande instituição com a mensagem central de Jesus.

No mês passado, Francisco emitiu a primeira grande declaração de seu pontificado, uma "exortação apostólica", um documento longo dirigido aos católicos, que abrange uma série de questões. Intitulado "A Alegria do Evangelho" e refletindo o estilo de Francisco – não há o pontifício "nós" – a exortação é inexoravelmente positiva no tom. Francisco escreve: "Queremos inserir-nos a fundo na sociedade, partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações, colaboramos material e espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado com os outros".

Em uma entrevista com Antonio Spadaro, SJ, da revista jesuíta La Civiltà Cattolica, em agosto (mais tarde publicada em inglês na revista America), Francisco elaborou seu pensamento sobre os homossexuais. Bento XVI tinha defendido a "dignidade" de todos os povos, incluindo os homossexuais, mas chamando os atos homossexuais de "um mal moral intrínseco".

Dizendo que "a própria inclinação deve ser vista como uma desordem objetiva", ele barrou a entrada de homens gays nos seminários, mesmo que fossem celibatários, e denunciou a ideia do casamento gay. Francisco não alterou a impossibilidade do casamento gay na Igreja, mas seu tom é muito diferente. "Uma vez uma pessoa, de modo provocativo, perguntou-me se eu aprovava a homossexualidade", disse ele. "Eu, então, respondi-lhe com uma outra pergunta: 'Diga-me: Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova a sua existência com afeto ou a rejeita, condenando-a?' É necessário sempre considerar a pessoa". Ele continuou: "Não podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos".

João Paulo II e Bento XVI usaram a tradição católica como um baluarte contra a ameaça tripla do liberalismo, do relativismo e do secularismo. De fato, Bento XVI, o cardeal Joseph Ratzinger e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé de 1981 a 2005, foi o sentinela-chefe da ortodoxia da época. Mas Francisco vê a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. "Aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis", disse ele. "É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Deve-se curar as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas, curar as feridas...".

Francisco não hesitou em criticar a própria Igreja – incluindo o círculo clerical interno do qual ele agora depende. Antes de uma reunião de bispos recém-consagrados em setembro, ele denunciou a "psicologia de príncipes", e chamou a caminhada ambiciosa até a escada das nomeações episcopais de uma forma de "adultério espiritual". "O espírito do carreirismo", alertou, "é uma forma de câncer". Mas nem ele se eximiu das críticas. "Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros", escreveu ele em "A Alegria do Evangelho", "devo pensar também em uma conversão do papado".

Essa mudança de curso não era de se esperar do cardeal Jorge Mario Bergoglio. Ele é conhecido por ter sido o segundo mais votado depois de Ratzinger no conclave de 2005, mas não era visto como uma figura de inovação. Após a sua eleição para o papado, o jornal Times o descreveu como "uma escolha convencional, um conservador teológico de ascendência italiana que apoia vigorosamente as posições do Vaticano sobre o aborto, casamento gay, ordenação de mulheres e outras questões importantes". Como arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio criticou iniciativas do governo para legalizar o casamento gay e afrouxar as restrições sobre o aborto na Argentina, levando a presidente Cristina Fernández de Kirchner a acusá-lo de "má-fé ideológica".  Em 2010, quando Bergoglio denunciou a legislação do casamento homossexual como "uma manobra do diabo", Kirchner disse: "A posição de Bergoglio é medieval".

Recentemente, Francisco não soou nada medieval. Ele parecia reverter atitudes católicas há muito estabelecidas, se não doutrinas atuais, quando ele disse a Spadaro: "Eu tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de cada pessoa". Em uma homilia do início da manhã no hotel do Vaticano, onde vive, ele antecipou as objeções dos tradicionalistas, dizendo: "Não apenas os católicos. Todo o mundo! 'Padre, os ateus?' Até mesmo os ateus. Todo o mundo!". Para Francisco, a finalidade da Igreja não é trazer Deus para o mundo, mas simplesmente enfatizar a presença de Deus – que já está lá.

Francisco violou um conjunto de códigos do discurso ético e filosófico católico quando, em uma carta aberta para o proeminente jornalista e ateu italiano Eugenio Scalfari, em setembro, ele escreveu: "Eu não falaria, nem mesmo para quem crê, em verdade 'absoluta' (…). A verdade é uma relação! Tanto é verdade que cada um de nós a capta, a verdade, e a expressa a partir de si mesmo: da sua história e cultura, da situação em que vive". Quando Spadaro perguntou a Francisco sobre "as grandes mudanças na sociedade, assim como a forma como os seres humanos estão se interpretando", Francisco levantou-se para pegar o seu breviário bem manuseado. Ele leu os escritos de um santo do século V sobre as leis que regem o progresso: "Mesmo o dogma da religião cristã deve seguir estas leis de aperfeiçoamento. Progride, consolidando-se com os anos, desenvolvendo-se com o tempo, aprofundando-se com a idade". Então, Francisco comentou: "Assim, cresce-se na compreensão da verdade. (…) Existem normas e preceitos eclesiais secundários que em outros tempos eram eficazes, mas que agora perderam valor ou significado. Uma visão da doutrina da Igreja como um bloco monolítico a se defender sem matizes é errada".

A primeira pista da natureza do novo papa foi a escolha do seu nome – um eco enfático de São Francisco de Assis. O santo do século XIII está associado a três coisas: amor pela criação, como refletido na sua capacidade lendária de comungar com animais; compromisso com a paz, que se conhece pela solicitação de sua intervenção mediadora com os muçulmanos durante as Cruzadas; e cuidado dos pobres. (Depois da última rodada de votação para o papado, um cardeal brasileiro sussurrou para Bergoglio: "Não se esqueça dos pobres".)

Como papa, Francisco simplificou a parafernália renascentista do papado, abandonando capas de veludo aparadas com peles, optou por viver em um apartamento de dois quartos em vez do Palácio Apostólico, e substituiu o Mercedes papal por um Ford Focus. Ao invés dos tradicionais sapatos vermelhos, Francisco usa sapatos pretos comuns. Ele se recusou a pedir um novo conjunto de louça fina da Leone Limentani, a sofisticada empresa de porcelana romana que, desde 1870, tem fornecido para cada papa, de Pio IX a Bento XVI, os conjuntos de mesa com relevo nas bordas. Eu visitei a loja, onde um proprietário me disse com um encolher de ombros: "O Papa Francisco não ordenou um novo anel. Por que ele deveria pedir novos pratos?".

De qualquer forma, Francisco não criticou as escolhas dos outros prelados. "Ele faz alterações sem atacar as pessoas", disse-se uma autoridade jesuíta. Em sua entrevista à La Civiltà Cattolica, Francisco disse:  "As minhas escolhas, mesmo aquelas ligadas à vida cotidiana, como usar um automóvel modesto, estão ligadas a um discernimento espiritual que responde a uma exigência que nasce das coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos tempos".

Diz-se que São Francisco uma vez declarou: "Preguem o Evangelho e, se necessário, usem palavras". Algumas semanas depois da sua eleição, o novo papa foi até a prisão de Casal del Marmo, um centro de detenção juvenil na periferia de Roma. Na Quinta-Feira Santa, o lava-pés dos 12 apóstolos de Jesus é reencenado nas igrejas católicas de todo o mundo. Tipicamente, os papas realizam o rito na Basílica de São Pedro ou na magnífica Basílica de São João de Latrão, a cerca de quatro quilômetros do Vaticano. O papa geralmente se inclina para o gesto do lava-pés de 12 sacerdotes selecionados. Mas, em Casal del Marmo, Francisco ajoelhou-se no chão frio de pedra e colocou seu solidéu branco de lado. Ele lavou, secou e beijou os pés de 12 jovens presos, alguns deles com tatuagens. Dois eram muçulmanos. Mais incisivamente, em violação à tradição da Igreja, dois dos substitutos apostólicos eram mulheres. Quando um dos presos perguntou ao papa por que ele tinha ido até eles, disse: "As coisas do coração não têm explicação".

Em suas conversas com Spadaro, Francisco deixou clara a sua afinidade com João XXIII, o mais liberal dos papas modernos: "João XXIII colocou-se nesta posição de governo quando repetiu a máxima Omnia videre, multa dissimulare, pauca corrigere (ver tudo, não dar importância a muito, corrigir pouco), porque mesmo vendo omnia, a dimensão máxima, preferia agir sobre pauca, sobre uma dimensão mínima". Francisco continuou: "Muitos, por exemplo, pensam que as mudanças e as reformas podem acontecer em pouco tempo. Eu creio que será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. E este é o tempo do discernimento. E por vezes o discernimento, por seu lado, estimula a fazer depressa aquilo que inicialmente se pensava fazer depois".

Pouco antes de eu sair de Boston para Roma, vi Paul Farmer, o antropólogo de Harvard e médico que, por 25 anos, trabalhou com os pobres no Haiti, Peru e Ruanda. Criado como católico, Farmer inspirou-se no movimento político católico chamado teologia da libertação e recentemente publicou um livro com o seu fundador, Gustavo Gutiérrez. Eu perguntei a Farmer o que ele achou da manifestação do papa na prisão na Quinta-Feira Santa. Farmer deu de ombros e disse: "Se é só para mostrar, eu digo que continue se mostrando".

O Pe. Federico Lombardi, SJ foi nomeado diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé perto do início do pontificado de Bento XVI, por isso ele tem explicado as políticas do Vaticano há mais de sete anos. No início do seu pontificado, Bento XVI fez um discurso que insultava o Islã. Ele reinstalou o bispo negacionista Richard Williamson, trouxe de volta um ritual da Sexta-Feira Santa que inclui uma referência degradante aos judeus e publicou uma lista dos "mais graves crimes", que parecia igualar a ordenação de mulheres com o abuso sexual de crianças por padres. O Vaticano, por muitas vezes, teve que esclarecer as suas posições.

Conheci Lombardi em uma sala espartana de um grande edifício da era Mussolini, logo fora da Praça de São Pedro. Lombardi é um homem de 71 anos, olhos escuros, cabelos grisalhos, que o faz se assemelhar a um diretor de cinema italiano. Eu perguntei como a sua vida tinha sido desde que Bento XVI deixou o cargo. Lombardi abriu um sorriso largo. Então ele disse: "Nós experimentamos por anos e por uma boa razão, também, que a Igreja dizia: 'Não! Este não é o caminho certo! Isso é contra os mandamentos de Deus!' O aspecto negativo do anúncio (…) Em minha experiência pessoal, esse foi um dos problemas". O padre Lombardi e eu somos quase da mesma idade. Em sua sincera boa vontade e bondade, ele me surpreendeu como o padre que eu gostaria de ter me tornado. Ele disse: "As pessoas pensavam que eu sempre tinha uma mensagem negativa para elas. Estou muito feliz porque, com Francisco, a situação mudou". Ele riu. "Agora estou a serviço de uma mensagem (…) de amor e de misericórdia". Ele riu de novo.

Um membro da equipe de imprensa em Roma disse-me que, durante os anos de Bento XVI, o Pe. Lombardi, ao abordar os repórteres, era afetado por uma persistente tosse nervosa. Essa tosse não está mais em evidência.

II – Julgamento

Jorge Mario Bergoglio nasceu em Buenos Aires em 1936, o primeiro de cinco filhos. Seu pai, um imigrante do norte da Itália, era um contador. Na adolescência, Bergoglio frequentou uma escola profissional, foi treinado para ser um técnico de química e, finalmente, encontrou trabalho em um laboratório de Buenos Aires. "Eu tinha um chefe extraordinário lá", recordou mais tarde. "Esther Balestrino de Careaga, uma mulher paraguaia e simpatizante do comunismo". Ela tomou o jovem Jorge Bergoglio sob sua guarda, ajudando-o a entrar na idade adulta. "Eu devo muito a essa grande mulher". Ela ensinou-lhe a disciplina do trabalho, embora tenha sido inexoravelmente positiva. "Eu a amava muito".

Bergoglio saiu do laboratório e, aos 21 anos, começou a estudar para o sacerdócio. Ele se tornou um noviço jesuíta, embarcando no curso intelectualmente exigente de formação jesuíta que normalmente envolve uma dúzia ou mais de anos de estudo, ensino e disciplina espiritual.

O fundador dos jesuítas, Inácio de Loyola, tinha sido um soldado antes de sua conversão, e um espírito de rigidez militar, expressamente a serviço do papa, era tradicionalmente uma marca da ordem. Um homem que escolhia os jesuítas, em vez de outros modos de ser sacerdote, estava embarcando em um caminho mais difícil. Entre as influências de Bergoglio, estava o escrito argentino Jorge Luis Borges, um amigo a quem Bergoglio lembrou com alegria como "um agnóstico que dizia que rezava o Pai-Nosso todas as noites, porque tinha feito uma promessa à sua mãe".

Durante os anos 1960, Bergoglio estudou teologia católica, justamente enquanto o Concílio Vaticano II estava erigindo a vida da Igreja. Para o catolicismo, a Reforma, o Iluminismo, a Revolução Francesa e a chegada da democracia liberal, tudo isso tinha posto ameaças não resolvidas, mas o Vaticano II foi a grande virada em direção ao mundo moderno. Enquanto a Igreja, segundo a imagem de João XXIII, escancarava as suas janelas, o Evangelho era lido novamente como uma exigência de justiça e de paz. "Nessa época, que se orgulha de sua energia atômica", escreveu João em sua encíclica em 1963, Pacem in terris, "não é mais possível pensar que nesta nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir a violação da justiça". A teologia deixou a sala de aula, e o clero deixou a sacristia e foi para as ruas.

Em toda a América Latina, o Vaticano II provocou uma grave crise, já que uma hierarquia eclesiástica reacionária, alinhada com as oligarquias e ditadores, de repente se via desafiada por padres, freiras e "comunidades de base", que tinham o Concílio como um mandato para a mudança social. A Teologia da Libertação, desenvolvida por sacerdotes como Gutiérrez, do Peru, e Leonardo Boff, do Brasil, apontava Jesus Cristo como um crítico das estruturas sociais e econômicas injustas e articulava um mandato evangélico pela "opção preferencial pelos pobres".

Na Argentina, estava se formando uma guerra civil entre a esquerda e a direita, e os católicos encontravam-se em ambos os lados do conflito. Para os oligarcas e seus aliados na hierarquia, a crítica religiosa parecia muito política. Alguns esquerdistas católicos se juntaram aos revolucionários, embora a maioria abraçou a não violência. A paranoia antissoviética da época tornou fácil ver o movimento como mais influenciado por Karl Marx do que por Jesus Cristo. O arcebispo Hélder Câmara, do Brasil, famosamente captou a tensão ao dizer: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista".

Logo depois que Bergoglio se tornou, a pleno direito, um jesuíta – "professo" – em 1973, ele foi nomeado provincial superior da Argentina, o que significava que ele era responsável por supervisionar todas as escolas, paróquias e missões jesuítas. Aos 36 anos, ele era excepcionalmente jovem para tal posição. Ele atuou como provincial entre 1973 e 1979, um período que coincidiu com a chamada Guerra Suja, no qual a junta militar de extrema direita da Argentina matou muitos milhares de pessoas. Uma das pessoas que foram presas era a filha de sua mentora quando jovem, Esther de Careaga.

A história de Bergoglio e de Careaga é contada na biografia indispensável de Paul Vallely, Pope Francis: Untying the Knots [Papa Francisco: Desfazendo os nós], que foi publicada em agosto. A ex-chefe de Bergoglio tinha se tornado um membro ativo de um grupo de mães que defendem os desaparecidos. Quando sua filha foi libertada e fugiu da Argentina, Careaga recusou-se a abandonar o seu trabalho junto às vítimas da junta. Temendo ser presa, e sabendo que até mesmo os livros em sua casa poderiam incriminá-la, ela contatou seu velho amigo. Bergoglio foi para sua casa e tirou os livros, incluindo Das Kapital, que ele escondeu em uma biblioteca dos jesuítas. Trabalhando em uma igreja com outras mães de desaparecidos, Careaga foi sequestrada por um esquadrão da morte. Como muitos, ela foi jogada de um helicóptero no mar. Quando seu corpo apareceu na praia, Bergoglio a enterrou no jardim da igreja onde ela tinha sido pega.

Pela própria admissão de Bergoglio, ele não estava preparado para os desafios de exercer a autoridade em um contexto tão tumultuado. A Teologia da Libertação, com o seu questionamento da autoridade, era um desafio especial para a ordem jesuíta, que sempre se definiu em torno do voto de obediência. Como provincial, Bergoglio tentou frear os jesuítas que tinham abraçado uma profunda solidariedade com os pobres. Ele deu ordens a dois sacerdotes, padre Francisco Jalics e padre Orlando Yorio, para pararem de viver e de trabalhar nas favelas de Buenos Aires. (Bergoglio afirmou que as instruções tinham vindo de Roma.) Eles desobedeceram.

Quanto ao que se seguiu, os relatos diferem até hoje. Mas o desafio dos padres parece ter irritado Bergoglio, que recentemente criticou a si mesmo dizendo: "A minha maneira autoritária e rápida de tomar decisões levou-me a ter problemas graves e a ser acusado de ultraconservador".

O conflito de Bergoglio com os sacerdotes aumentou, aparentemente, a ponto de serem ameaçados de serem expulsos dos jesuítas, quer pelo próprio provincial, quer pelas autoridades de Roma. (Bergoglio, em uma entrevista de 2010, disse que os padres estavam se preparando para estabelecer uma nova ordem religiosa, efetivamente renunciando aos jesuítas.)

Em março de 1976, um golpe militar derrubou o governo da Argentina. A junta começou a alvejar ativistas de esquerda como Jalics e Yorio. Seus conflitos com o provincial dos jesuítas e seus status religiosos incertos podem ter feito parte do que provocou o movimento da junta contra eles. (Bergoglio disse ter lhes oferecido a oportunidade de virem morar na casa provincial da Companhia.) Em maio, Jalics e Yorio, junto com vários outros, foram presos pelos esquadrões da morte. Os sacerdotes pensaram que Bergoglio os havia traído; por sua conta, ele passou a trabalhar tentando garantir as suas libertações. "Na mesma noite em que eu fiquei sabendo que eles tinham sido sequestrados, eu pus a bola em jogo", disse ele.

As pessoas com quem Jalics e Yorio foram presos foram assassinadas, os dois padres foram brutalmente torturados e, finalmente, libertados em outubro. Pode ser que a intervenção de Bergoglio os tenha salvo, mas, nas palavras de um amigo, desde então ele "constantemente se recriminava por não ter feito o suficiente”.

Yorio morreu em 2000, cinco anos após a publicação de um livro no qual ele afirmou que Bergoglio havia informado os militares das atividades dos sacerdotes. Jalics ainda é jesuíta, vive na Alemanha. Após o conclave papal, ele negou que Bergoglio tivesse traído a ele e a Yorio, mas outros na Argentina não estão convencidos da inocência do papa.

Vallely conclui que ele "deveria ter visto o perigo em que estava colocando seus dois padres. Bergoglio comportou-se de forma imprudente e vem tentando expiar seu comportamento desde então". Adolfo Pérez Esquivel, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1980 por sua defesa dos direitos humanos na Argentina, disse logo após a eleição papal: "Havia bispos que eram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não era um deles", embora ele tenha acrescentado: "Eu acho que ele não teve a coragem de acompanhar a nossa luta pelos direitos humanos nos momentos mais difíceis".

Os anos da Guerra Suja formaram o terreno geral da impressionante autocrítica do papa: a sua experiência, disse-me um jesuíta, foi marcante. Depois de deixar o cargo de provincial, Bergoglio foi reitor de um seminário jesuíta durante algum tempo; em seguida, trabalhou em uma dissertação para uma licenciatura em teologia. Ele foi enviado para uma casa jesuíta de estudos em Córdoba, Argentina, como diretor espiritual, mas estes foram anos de deserto para ele. Ele disse a Spadaro que, em Córdoba, ele viveu "um momento de grande crise interior". Em uma entrevista anterior, ele tinha confidenciado: "Eu tive que aprender com meus erros ao longo do caminho, porque, para dizer a verdade, eu fiz centenas de erros. Erros e pecados". Ele disse a Spadaro sem rodeios: "Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não é um modo de dizer, um gênero literário".

Seja qual for o tratamento que Bergoglio tenha dado à teologia da libertação durante seu tempo como autoridade jesuíta, ele encarnou o seu espírito depois que foi nomeado bispo, em 1992. "Como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres", declarou ele em sua primeira semana como papa, uma atitude que o tem marcado desde o seu início como bispo de Buenos Aires. Ser escolhido para ser bispo era incomum para um jesuíta, já que a ordem desencoraja seus membros a exercerem cargos eclesiásticos e, ao longo dos séculos, tem se envolvido em disputas políticas que em geral mantiveram o influente grupo às margens do poder da Igreja. Reis e ao menos um papa buscaram periodicamente acabar com os jesuítas e, em alguns lugares, conseguiram.

Quando Bergoglio foi nomeado cardeal em 2001, sua simplicidade de estilo já o tinha distinguido de outros prelados. Ele preferiu um pequeno apartamento ao invés da residência palaciana e viajava de transporte público em vez de carro com motorista. Como arcebispo de Buenos Aires, ele incentivou seus melhores sacerdotes a viver em favelas, juntando-se a eles para a missa e muitas vezes andando pelas favelas.

Além de ser um crítico do governo em questões como o aborto e o casamento gay, ele também era afiado nas suas denúncias às políticas econômicas neoliberais que condenavam muitos a uma pobreza abjeta. Sua atenção aos pobres completou a transformação de décadas que finalmente chamou a atenção de seus companheiros cardeais para Jorge Mario Bergoglio.

Quando o conclave foi convocado, na sequência do surpreendente pedido de renúncia do Papa Bento XVI, observadores do Vaticano pensavam que sabiam o que esperar. Entre eles, João Paulo II e Bento XVI haviam designado cada membro votante do Colégio dos Cardeais. Há 200 cardeais, dos quais 117 tinham menos de 80 anos e, portanto, eram aptos a votar quando a eleição papal foi chamada. Não parecia haver nenhuma forma de que a barca de São Pedro pudesse mudar de rumo.

Mas isso assumindo-se que a grande nave não havia encalhado. A renúncia do Papa Bento XVI parecia, em muitos aspectos, ser um acerto de contas corajoso com as limitações pessoais e, para a Igreja, uma possível libertação. Mas sua saída rápida também foi um sinal claro da gravidade da crise da Igreja. Uma questão pesava sobre os prelados mais do que outras: eles eram amplamente considerados como homens que fracassaram em lidar abertamente com a crise dos abusos sexuais. O cardeal Keith O'Brien tinha acabado de ser forçado a renunciar como chefe da Igreja na Escócia após o surgimento de acusações de relações sexuais impróprias com jovens padres.

A partir de 2002, revelações de que o clero católico havia molestado jovens em uma escala horrível durante décadas se espalharam dos Estados Unidos à Europa, e países fortemente católicos como a Irlanda, Bélgica e Áustria ficaram particularmente abalados. Os muitos milhares de abusadores eram uma minoria de sacerdotes, mas quase todos os bispos que conheciam violações tentaram encobrir o escândalo, permitindo que muitos predadores continuassem os seus abusos. Desiludidos e zangados, os católicos deixaram a Igreja em massa. Nos Estados Unidos, 10% dos adultos são ex-católicos, um grupo que excede em muito qualquer outra denominação religiosa, exceto os católicos remanescentes.

Como cardeal, Ratzinger havia instruído bispos a repassar as acusações contra os padres ao Vaticano, confirmando o sigilo. Essa política, juntamente com a prática de longa data do Vaticano de desencorajar os bispos a denunciar às autoridades civis, fez o escândalo ficar pior. Finalmente, como papa, Bento XVI reconheceu o papel do Estado em processar crimes, impôs controles restritos sobre o processo da Igreja e repetidamente pediu desculpas às vítimas.

No entanto, tudo isso foi minado pela própria negação permanente do Vaticano, de João Paulo II em diante, do ofuscamento criminal dos bispos. O cardeal Bernard Law, de Boston, foi levado à desgraça em 2002, mas foi depois honrosamente abrigado na Basílica de Santa Maria Maior, uma das igrejas mais prestigiadas de Roma, onde permanece como arcipreste emérito. Em 2012, o bispo de Kansas City, Robert Finn, foi condenado pelo crime de não ter denunciado um padre abusador às autoridades civis. O padre continuou se aproveitando de crianças e, quando pego, foi condenado a 50 anos de prisão. Finn, o primeiro bispo dos EUA a ser indiciado, foi condenado a dois anos de liberdade condicional. Ele continua como bispo de Kansas City- St. Joseph atualmente.

A palavra "conclave" significa "com uma chave". Depois que o extra omnes – expressão latina que significa "todos para fora" – foi pronunciado, as grandes portas da Capela Sistina foram trancadas para estranhos, mas, antes disso, os cardeais foram confrontados com a sua própria situação. Como de costume, eles tinham eleito um de seus membros para oferecer uma meditação de abertura, o cardeal de 87 anos, Prospero Grech, um teólogo maltês que passou grande parte de sua carreira lecionando em Roma. Sem surpresa, o cardeal Grech começou seu breve discurso com uma referência a São Pedro, cujo sucessor estava prestes a ser escolhido. Mas, em vez do habitual Tu es Petrus – "Tu és Pedro!" –, triunfalismo com o qual Jesus comissionou o apóstolo, dando-lhe as chaves do reino, Grech invocou uma cena evangélica muito diferente, em que o Jesus ressuscitado desafia Pedro sobre as três vezes que ele o negara na noite de sua paixão. Pedro era como Judas.

Para cada uma das negações de Pedro, Jesus pergunta enfaticamente: "Pedro, tu me amas?". O abjeto Pedro responde: "Senhor, tu sabes tudo. Tu sabes que te amo". Ser capaz de responder a essa pergunta, disse Grech, é a única coisa importante para o homem a ser eleito papa. Grech não fez nenhuma referência à negação de Pedro, mas confrontou os cardeais com os parâmetros da crise que enfrentavam: o abuso sexual de crianças e a falta de transparência da Igreja. Ele se referiu a violações "até mesmo na casa papal", que incluem o Vatileaks, revelações do mordomo papal que levaram a descobertas de suposta chantagem homossexual e conversas sobre um prelado que havia feito denúncias e que estava sendo mandado para o exterior.

Nos últimos anos, um corista do Vaticano foi demitido por agir como um cafetão; contratos altamente inflacionados para manutenção de rotina dos edifícios do Vaticano foram rastreados até pagamentos e esquemas de corrupção; e o desligamento de todos os caixas eletrônicos do Vaticano pelo Banco da Itália por causa dos riscos de lavagem de dinheiro. Grech lembrou que os males da Igreja no passado tinham sido muito piores, mas, mesmo assim, disse, "a verdade falou a nós".

Era muito diferente do sermão proferido pelo cardeal Joseph Ratzinger na véspera do conclave anterior, em 2005, quando ele reuniu os cardeais para colocar a Igreja virtuosa contra a "ditadura do relativismo" do mundo. Esse sermão, encapsulando a visão de Ratzinger da superioridade moral da Igreja, foi amplamente percebido como o que selou a sua eleição. Agora, um cardeal estava falando de forma muito diferente. "É preciso humilhar-se diante de Deus e dos homens, e tentar erradicar o mal a todo o custo", disse Grech.

Eu me encontrei com Grech em um salão do mosteiro agostiniano de Santa Monica, adjacente às colunas de Bernini, na Praça de São Pedro, onde ele vive de tempos em  tempos desde 1946. Ele é um homem magro com um porte aristocrático. Quando eu comentei sobre o tom penitente que ele tinha colocado em sua meditação, ele disse: "Veja bem, essas coisas já tinham sido levantadas pelos próprios cardeais antes do conclave".

Quase no fim da sua meditação, Grech perguntou aos cardeais: "E vocês, por que vocês estão aqui?". Ele respondeu: "Em 1961, João XXIII (…) destacou a figura dominante de Cristo, o Juiz, no afresco de Michelangelo". O severo Juízo Final ocupa grande parte da parede atrás do altar-mor da Capela Sistina. A pintura é dos tempos mais maduros da vida de Michelangelo, feita quando as guerras selvagens da Reforma estavam começando. Sua escura visão está em contraste marcante com a sua Criação de Adão, pintada décadas antes: o afresco otimista do teto onde está o dedo estendido de Deus quase tocando Adão. As duas pinturas fazem uma declaração sobre a Igreja, que e, nas palavras de Martinho Lutero, simul iustus et peccator – tão pecadora quanto virtuosa. O Juízo Final mostra um Cristo austero, julgando os justos e os pecadores da mesma forma. Michelangelo coloca seu próprio rosto no corpo atrofiado e esfolado de um mártir. Grech disse aos cardeais: "Vocês se encontram, nesta mesma capela, sob a figura daquele Cristo, com sua mão levantada não para esmagar, mas para iluminar o seu voto".

III – Mudança

No fim de um dia em Roma, eu participei de um rito de oração vespertina na Caravita, uma pequena igreja barroca na Via del Collegio Romano, no centro da cidade. O nome da rua refere-se à primeira das muitas escolas jesuítas que agora cobrem o mundo, e os devotos reunidos incluíam professores jesuítas da Pontifícia Universidade Gregoriana, onde a elite teológica da Igreja é formada.

Eu puxei conversa com um jesuíta durante o happy hour depois do serviço e me assustei quando ele se apresentou como Norman Tanner. Ele era o editor de uma lendária tradução para o inglês dos documentos dos Concílios da Igreja, incluindo o Vaticano II.

No ano passado, em observância ao 50º aniversário do Concílio, uma nova edição da tradução foi publicada, com o título Vatican II: The Essential Texts [Vaticano II: Os textos essenciais]. Eu escrevi uma das duas apresentações para o volume. Eu nunca tinha me encontrado com o padre Tanner, professor de História da Igreja na Gregoriana. "Você é James Carroll?", disse. Então, ele sorriu: "Você ofereceu um bom equilíbrio".

A outra apresentação foi feita pelo Papa Bento XVI: o texto de um discurso sobre o Vaticano II que ele havia dado à Cúria Romana em 2005. Eu estava intimidado por ser equiparado com ele. Nossos textos acabaram exemplificando a tensão entre os dois pontos de vista católicos do Vaticano II. Em uma resenha do livro na revista católica britânica The Tablet, Hilmar Pabel escreveu que os ensaios "tornaram o livro uma curiosidade. Combinados, eles têm um efeito desconcertante". O Papa Bento XVI, escreveu Pabel, "distingue duas maneiras conflitantes de interpretar o Concílio: a 'hermenêutica da reforma', defendida pelo papa, e 'a hermenêutica da descontinuidade e da ruptura'. Ele pode considerar Carroll um adepto da última hermenêutica pela sua descrição do Concílio como uma 'revolução que vem de cima', cujas 'mudanças significativas devem ser reconhecidas como tal'".

Francisco se descreve como um fiel "filho da Igreja" e tem um histórico como um conservador doutrinário. Muitos observadores insistem que em uma Igreja entendida como semper idem – sempre a mesma – o máximo que até mesmo uma figura aparentemente inovadora como Francisco pode realizar são ajustes "pastorais" na disciplina ou na prática: uma facilitação misericordiosa das regras sem revogá-las. Mesmo se quisesse, o Papa Francisco não poderia alterar as crenças básicas da Igreja.

Mas, na verdade, a Igreja tem feito profundas mudanças doutrinárias desde que se há memória. Em 1964, o Concílio repudiou uma longa tradição milenar de que "não há salvação fora da Igreja". Essa formulação remonta pelo menos ao Concílio de Latrão IV, em 1215, e foi reiterada pelos concílios e papas ao longo da minha juventude. O Vaticano II revogou a doutrina, afirmando o primado da consciência, um ensinamento que Francisco reiterou, aplicando-o também aos ateus.

Ainda mais importante é a rejeição por parte do Concílio da calúnia que chama os judeus de “assassinos de Cristo”, que tem suas raízes nos Evangelhos. O Concílio também afirmou que a aliança que Deus fez com Israel é total e permanente, uma reversão da teologia da "substituição" que tinha definido a autocompreensão católica da época dos Padres da Igreja. Francisco afirmou a ruptura que separa atitudes atuais da tradição, quando disse: "Mesmo com todas as provações terríveis desses últimos séculos, os judeus preservaram a sua fé em Deus. E por isso, nós, a Igreja e toda a família humana, nunca poderemos ser suficientemente gratos a eles". A preservação da fé judaica, é claro, presumia uma rejeição judaica contínua das alegações feitas por Cristo. Ou seja, por aquilo que os judeus foram condenados pelos séculos afora eles devem ser agradecidos hoje. Nenhuma das possíveis mudanças doutrinárias que a Igreja contemporânea enfrenta compara-se com a profundidade dessa revisão.

O cardeal Timothy Dolan, de Nova York, é um daqueles típicos conservadores que insistem que o "estilo" sem precedentes de Francisco não altera em nada a "substância", uma posição que Dolan reiterou no início deste mês. "Um papa, por sua natureza, não pode fazer mudanças doutrinais", disse Dolan no programa Meet the Press, da NBC. "Ele pode fazer uma série de mudanças na forma, no estilo, na maneira pela qual ela é apresentada".

Levei a questão até Antonio Spadaro, editor da revista La Civiltà Cattolica. Sua entrevista com o Papa Francisco, afinal, tinha provocado muito esse tipo de discussão. Spadaro, que tem 47 anos, está ficando careca e é cheio de energia, e trabalha em um escritório moderno em uma villa não muito longe das escadarias da Praça da Espanha. O dia em que eu o entrevistei foi o 25º aniversário da sua admissão aos jesuítas, e eu senti a boa vontade amável que o tinha feito ganhar a confiança do novo papa. "O papa é um vulcão!", disse ele, sorrindo.

Quando perguntei a Spadaro sobre o debate "estilo versus substância", ele bateu com o punho em um livro sobre uma mesa ao lado de sua escrivaninha. "Estilo não é apenas a capa do livro", declarou ele. "É o livro em si!". E continuou: "O estilo é a mensagem. A substância é o Evangelho. Isso é o Evangelho".

Outro jesuíta, padre Joseph Daoust, alta autoridade na sede da ordem em Roma, me disse: "A nossa forma de praticar a nossa fé afeta a forma como nós cremos. O jeito que cremos afeta a forma como nós praticamos. Há um movimento para frente e para trás, e tem sido assim ao longo de toda a história. Eu não quero dizer que o seu estilo não vai levar a lugar algum doutrinalmente. Eu acho que vai. (…) Essa tem sido a história normal da Igreja".

Antes de deixar o escritório de Spadaro, olhei novamente para o livro sobre a mesa: era Bruce, uma biografia de Bruce Springsteen. O livro ao lado dele – a amplitude do interesse de um jesuíta! – era Ratzinger: Opera Omnia.

IV – Justiça

Em julho passado, o Papa Francico fez a sua primeira viagem oficial fora de Roma, para celebrar uma missa em Lampedusa, uma ilha remota no Mediterrâneo entre a Sicília e a Tunísia. Ele usou o fundo de um barco de pesca naufragado como altar.

A cerca de 70 milhas da costa da Tunísia, Lampedusa abrange cerca de oito quilômetros quadrados. Tem sido a terra firme para milhares de migrantes africanos desesperados que procuram uma vida melhor na Europa. Antes da missa, o Papa Francisco falou em um espaçoso campo de esportes para uma multidão de imigrantes africanos, em sua maioria muçulmanos. Vivendo em acampamentos miseráveis, eles são os sortudos: milhares de outras pessoas morreram no mar. Nos primeiros meses do novo pontificado, a cada poucas semanas, uma tragédia de afogamentos de migrantes se repetia. Poucos na Europa pareciam notar. "O que dói mais", disse a prefeita de Lampedusa em uma carta aberta, "é que a Europa é uma espectadora".

Em sua homilia, Francisco falou de "migrantes mortos no mar; barcos que em vez de ser uma rota de esperança, foram uma rota de morte".  Duas semanas antes de eu chegar em Roma, outro barco tinha afundado perto de Lampedusa. Cerca de 360 pessoas se afogaram. Uma semana depois, outro barco afundou, com 200 pessoas a bordo.

"Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença", disse Francisco. "Nós nos acostumamos com o sofrimento do outro". Durante a visita de Francisco, um arcebispo distribuiu cartões telefônicos para os sobreviventes. O papa transformou Lampedusa em um problema. Em outubro, um comissário da União Europeia apelou para "uma grande operação de salvamento e resgate no Mediterrâneo".

Se, como papa, Francisco tem temperado suas opiniões sobre questões de moral sexual, sua defesa dos pobres tornou-se ainda mais aguda. Na exortação do mês passado, Francisco expandiu sua crítica da economia mundial: "Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta".

Esse problema é fundamental para todos os problemas: "A desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais". Os críticos conservadores fracassaram na análise de Francisco. Rush Limbaugh a chamou de "puro marxismo". Samuel Gregg, autor de Tea Party Catholic, em artigo no National Review, foi mais respeitoso, mas mesmo assim rejeitou os "argumentos falaciosos sobre a economia" do papa.

Daoust observou que, para Francisco, "a linha de fundo é o que está acontecendo com os pobres". Economista formado, Daoust disse que o Papa Francisco não estava propondo uma estrutura alternativa de troca global. Ao contrário, ele estava apresentando uma simples questão sobre certo e errado. "Ignorar os refugiados em Lampedusa é simplesmente intolerável", disse Daoust. O presidente Barack Obama, juntando-se ao protesto do papa contra a desigualdade, saudou Francisco por ser "extraordinariamente atencioso e um mensageiro com alma de paz e justiça".

Francisco é o primeiro papa jesuíta da história, e a sua feroz convicção tem o sotaque particular de uma ordem religiosa que se redefiniu desde o Concílio Vaticano II em torno da "fé que promove a justiça", como afirmam os jesuítas agora. Se Jorge Mario Bergoglio teve um momento de conversão, disse-me Daoust, foi provavelmente durante a Congregação dos Jesuítas de 1974-1975, o encontro mundial em Roma das lideranças da Companhia, que foi convocado pelo superior geral Pedro Arrupe, da Espanha, uma figura controversa e liberalizante.

O sacerdócio de Arrupe foi definido pela experiência de estar em Hiroshima quando a bomba atômica caiu, e, como superior, ele estabeleceu um novo curso. Dado o que Bergoglio estava enfrentando em Buenos Aires, a reunião deve ter sido tumultuada para ele: suas próprias posições estavam sendo desafiadas. A ordem abraçou uma compreensão sem precedentes de si própria. "Não podemos mais fingir que as desigualdades e injustiças do nosso mundo devem ser parte da ordem inevitável das coisas", declarou a Congregação. Ser um jesuíta hoje "é se envolver, sob o estandarte da Cruz, na luta crucial do nosso tempo: a luta pela fé e a luta pela justiça que esta inclui". Os jesuítas afirmaram a "crença em um Deus que é justiça porque é amor".

Os críticos consideraram a mudança como uma traição aos valores transcendentes em favor de uma ênfase exagerada sobre o mundo secular. A suspeita do Vaticano quanto à teologia da libertação estava estendida agora aos jesuítas, e logo jesuítas estavam morrendo na luta pela justiça, especialmente na América Latina. "Se você matar um de nós", disse-me Daoust, lembrando o espírito do tempo, quando seis jesuítas foram assassinados em El Salvador, "vamos enviar três".

Quando Arrupe ficou incapacitado por um acidente vascular cerebral, em 1981, o Papa João Paulo II rejeitou o homem que Arrupe tinha escolhido para supervisionar a escolha de seu sucessor e nomeou seu próprio delegado, o que foi tomado como um insulto a Arrupe e uma repreensão à ordem. Philip Pullella, o correspondente do Vaticano de longa data para a Reuters, disse-me que alguns chamaram a intervenção de João Paulo II de um ato de lei marcial papal.

Em setembro, o Papa Francisco se reuniu com várias centenas de outros jesuítas na Igreja do Gesù, no centro de Roma, onde Santo Inácio está enterrado. Arrupe, que morreu em 1991, também está enterrado lá. Depois da missa, Francisco ficou em silêncio diante do túmulo de Arrupe. Mais de um jesuíta disse-me que esse simples ato foi profundamente comovente.

Uma vez que uma ordem religiosa coloca a justiça mundial no centro de sua identidade, a preocupação ética deve aplicar-se no seio da Igreja também. E as mulheres? Uma subsequente Congregação Geral dos Jesuítas, em 1995, abordou "o tratamento injusto e a exploração de mulheres", denunciando a "feminização da pobreza" e um distintivo "rosto feminino da opressão". Os jesuítas também denunciaram "a alienação das mulheres que não se sentem mais em casa na Igreja".

Com Francisco, o Vaticano manteve a investigação punitiva de Bento XVI às freiras americanas, cujo fiel compromisso com o Vaticano II havia se tornado uma boa alternativa em uma Igreja retraída. Por exemplo, o apoio público de alguns grupos de irmãs católicas à reforma de Obama aos planos de saúde, a qual os bispos se opuseram principalmente, ofereceu uma cobertura decisiva para os legisladores católicos em votar "sim". O Nuns on the Bus, um grupo de pressão pela justiça social, foi acusado de se importar muito pouco com o aborto. O Vaticano se mexeu para aumentar a supervisão de um grupo que representa muitas irmãs, o que provocou uma reação. "As pessoas não sabem o quanto as mulheres estão feridas e desiludidas”, disse a Ir. Mary C. Boys, teóloga proeminente e pró-reitoria de Assuntos Acadêmicos do Union Theological Seminary, em Nova York. "Seria possível alcançar muito mais com o nosso envolvimento em uma conversa genuína".

V – Sua Eminência Cardinalessa

Em novembro, o Irish Times citou relatos de que Mary McAleese, a ex-presidente da Irlanda, estava sendo considerada pelo Papa Francisco para a nomeação ao Colégio Cardinalício. Era uma ideia surpreendente, mas, ao contrário do sacerdócio, cujo caráter exclusivamente masculino foi definido, afirma-se, por escolha de 12 homens como apóstolos de Jesus, nenhum obstáculo teológico impede uma mulher de receber o barrete vermelho. A escolha é somente do papa. No ano passado, o cardeal Dolan disse ter ouvido falar que o Papa João Paulo II considerou nomear Madre Teresa como cardinalessa; mesmo assim, Lombardi, o porta-voz papal, rejeitou a noção da nomeação da ex-presidente da Irlanda e a chamou de infundada.

Católica nascida em Belfast, McAleese foi a primeira pessoa da Irlanda do Norte a ser presidente da República da Irlanda no sul – um símbolo poderoso da construção de pontes que lhe proporcionou dois mandatos como presidente. Em 1998, ela ajudou a solidificar o Acordo da Sexta-Feira Santa, que deu início à era de paz da Irlanda. No fim do seu segundo mandato, em 2011, ela se mudou para Roma para estudar direito canônico na Universidade Gregoriana. Ela agora está trabalhando em seu doutorado e será uma das poucas mulheres a ter o grau eclesiástico.

Ao falar sobre a ordenação de mulheres, Francisco citou a "formulação definitiva" de João Paulo II, concordando: "Essa porta está fechada". Ele reiterou a exclusão no mês passado. Perguntei a McAleese o que ela acha das perspectivas para as mulheres no âmbito do novo papa. Estávamos sentados em um café no Boston College, onde ela foi passar o segundo semestre como professora visitante. Ela mexeu o chocolate quente. "Isso está ligado com outra questão, que é a colegialidade, que ele abriu", disse ela.

Uma mulher loura de 62 anos, McAleese tem um sorriso vitorioso, mas sua voz firme transmite o hábito da autoridade. "As mulheres no sacerdócio, as mulheres no diaconato são questões importantes, mas esses não são os únicos problemas". McAleese toma como certo que as mulheres devem ser ordenadas, mas ela também vê as restrições dentro das quais o papa deve agir. Pelo fato de os seus antecessores terem "chegado muito perto" de amarrar a proibição à infalibilidade, "ele tem que agir com algum grau de nuance política".

Desde o Vaticano II, a palavra "colegialidade" tornou-se um eufemismo para o desmantelamento da estrutura de poder de cima para baixo da Igreja. O Concílio procurou, sem sucesso, achatar a pirâmide que tem o papa sobre o pináculo, bispos e sacerdotes colocados nos escalões superiores, e os leigos, bem..., estes estão esmagados na parte inferior. Mas Francisco está mudando isso, movendo-se da vertical para a horizontal. Na exortação do mês passado, ele disse: "Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja".

No início de seu pontificado, o papa estabeleceu um conselho de oito cardeais, representando seis continentes, com a tarefa de trazer a experiência das Igrejas locais para ajudar na tomada de decisões em Roma. Eles se encontraram com o papa em outubro, e novamente este mês, começando a reforma da Cúria disfuncional. Concluindo a reunião de outubro, o Papa Francisco enfatizou – e elevou em importância – um próximo sínodo, ou órgão representativo dos bispos, previsto para se reunir em 2014. O Sínodo vai tratar da questão dos "desafios pastorais para a família no contexto da evangelização".

Sob a orientação de Francisco, uma diretriz posterior pediu que as dioceses distribuíssem aos paroquianos um questionário do Vaticano que pergunta sobre divórcio, controle de natalidade, pessoas solteiras que moram juntas e casamento gay. Essa panóplia de questões relacionadas ao sexo que dividiu a Igreja e dizimou sua autoridade deve ser agora considerada. Há não muito tempo, Roma estava insistindo que a mudança em qualquer uma dessas questões estava fora de questão. Mas por que pedir informações se nenhuma mudança é possível?

Quando o arcebispo Lorenzo Baldisseri, secretário-geral do Sínodo, foi recentemente perguntado se os divorciados em segunda união poderiam ser admitidos aos sacramentos, ele respondeu: "O fato de que isso tenha sido incluído no questionário significa que isso vai ser analisado, e a intenção é discutir o assunto sem tabus, caso contrário não teria sido mencionado. Isso parece óbvio para mim".

"Essa é uma grande oportunidade para Francisco", disse McAleese sobre o Sínodo. "Por favor, que não tenhamos um monte de homens que optaram deliberadamente por não ter famílias nos dizendo, como membros de famílias, como devemos viver a nossa vida familiar. Por favor, que tenhamos uma discussão abrangente em que as pessoas que têm a experiência real da família conduzam a reflexão". O Sínodo será um teste do papado de Francisco. "Se houver apenas bispos falando no Sínodo da forma como eles falaram no passado, eles não precisam nem se incomodar em ir para Roma", disse McAleese.

É claro que o Papa Francisco não é um liberal. Mas se ele iniciar uma verdadeira mudança na maneira como o poder é exercido na Igreja, ele pode vir a ser um radical. “Ele pode fazer isso?", perguntou McAleese. Em seguida, ela respondeu: "Ele é o papa!".

Mas, em todo esse progresso antecipado, a crise dos abusos sexuais da Igreja ainda perdura. Anne Barrett Doyle, codiretora do BishopAccountability.org, um arquivo abrangente da crise dos abusos, apontou-me que o questionário do Vaticano não contém perguntas sobre o que a exploração de crianças por padres fez para as famílias católicas. O que dizer da confiança quebrada? Quando é que os pais vão retomar novamente a confiança em párocos que, uma vez, já foi um marco definidor da vida católica? E como os bispos vão retomar o seu papel de pastores confiáveis?

No início deste mês, Francisco se reuniu em Roma com os bispos da Holanda. Em 2011, uma comissão oficial holandesa concluiu que as autoridades da Igreja não tinham "tomado medidas adequadas" em relação ao abuso de dezenas de milhares de crianças em instituições católicas desde 1945. A Igreja holandesa, humilhada e penitente, estava consternada. Mais vítimas vieram à tona.

Em comentários preparados, Francisco teria dito aos bispos: "Eu gostaria de expressar minha compaixão e assegurar minha proximidade na oração a todas as vítimas de abuso sexual e às suas famílias. Peço-lhes para continuar apoiando-as ao longo do caminho doloroso de cura que elas realizam com coragem". O texto foi entregue aos bispos, mas, em vez de falar, Francisco se encontrou com os bispos informalmente, e a expressão preparada de compaixão, embora divulgada pela assessoria de imprensa do Vaticano, não foi entregue como está escrita.

Desde que se tornou papa, Francisco quase não mencionou a crise dos abusos. Ele não se encontrou com as vítimas e, apesar de continuar a "tolerância zero" do próprio abuso sexual adotada por Bento XVI, ele ainda tem que ajustar as políticas do Vaticano que regem as responsabilidades dos bispos.

Dois dias depois da reunião de Francisco com os bispos holandeses, o Vaticano se recusou a fornecer ao Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU, os registros de suas investigações sobre o abuso sexual. Crítico feroz dos padres que servem a si mesmos e autointitulados, Francisco ainda tem que enfrentar a forma pela qual a própria cultura clerical forneceu a cobertura – e a licença – tanto aos abusos quanto à negação e à deflexão com a qual os bispos responderam a ela.

Para Doyle e outros críticos, o fracasso começa com o papel de Bergoglio na Argentina, um país onde o abuso sexual de crianças por padres permanece em grande parte como uma história não contada. "O papa deve começar pelo seu próprio histórico na Argentina", disse Doyle em um comunicado. "Nós pedimos a ele para liberar uma lista completa de todos os clérigos crivelmente acusados com os quais ele tratava. (…) Ele deve, então, obrigar todos os bispos e superiores religiosos do mundo a publicarem uma lista similar, como 26 bispos e superiores religiosos norte-americanos fizeram".

Miriam Lewin é uma proeminente jornalista argentina cujas investigações sobre os abusos de crianças por padres acontecidos há mais de uma dúzia de anos ajudou a trazer o escândalo à tona em Buenos Aires. Eu perguntei a ela o que ela achou da expressão recente do papa sobre a compaixão para com as vítimas. "Apenas palavras", disse ela. "Ele deveria se encontrar pessoalmente com as vítimas. Ele deve apoiar a justiça civil contra os padres e mandar os pedófilos para a cadeia. Depois disso, suas palavras vão significar alguma coisa". Quando eu perguntei o que ela achava de Bergoglio, ela respondeu que ele tem um "tipo de responsabilidade diferente agora". Ela acrescentou: "Bergoglio é uma coisa. Francisco é outra".

No dia seguinte ao que eu falei com Lewin, o Vaticano anunciou que o Papa Francisco ordenou a criação de uma comissão sobre os abusos sexuais, formada por padres, freiras e leigos especialistas, para salvaguardar as crianças e responder às vítimas. Em um comunicado, Doyle disse que o BishopAccountability.org "acolhe cautelosamente" a comissão pendente. "Não há nenhuma indicação de que a comissão vai estudar a culpabilidade do Vaticano ou a necessidade crucial de disciplinar os bispos, superiores religiosos e outros supervisores da Igreja que permitem estupro e o abuso sexual de crianças".

VI – Pai Pródigo

No mês passado, em sua exortação, Francisco disse: a Igreja tem que ser "como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade". Na parábola de Jesus, relatada no Evangelho de Lucas, o irmão mais novo desperdiçou o seu legado, mas depois se arrependeu, voltou para casa e foi festejado pelo pai em deleite. O irmão mais velho, que ficou perto e cuidava do domicílio, ficou ressentido. Quando foi que um novilho cevado tinha sido morto por ele? Francisco não mencionou o irmão.

No entanto, como John L. Allen Jr. escreveu no National Catholic Reporter, alguns conservadores católicos, tendo seguido fielmente a linha de disciplina da Igreja, responderam à inclusão de braços abertos de Francisco identificando-se com aquele irmão infeliz. O colunista do Times, Ross Douthat, que oferece "louvores à retórica e às ênfases do Papa Francisco", preocupa-se que "o que estamos vendo é apenas o pêndulo de volta para o estilo progressivo na teologia católica, de maneira que a Igreja pode ganhar uma onda temporária de boa publicidade, mas, em última análise, apenas promete sustentar a longa guerra civil pós-Vaticano II".

Douthat, que tem 34 anos, está especialmente impaciente com os católicos da minha geração, por forçar, segundo ele, a escolha entre o "amor de Deus e a justiça de Deus, entre o imanente e o transcendente, entre a solidariedade com os marginalizados e a fidelidade doutrinal".

A ambivalência dos conservadores católicos foi perfeitamente capturada por Stephen Colbert em outubro, no jantar Al Smith, no Waldorf-Astoria. Autodescrito como "o mais famoso católico dos EUA", disse Colbert, "eu acredito que o papa é infalível. Mas ele também está errado sobre um monte de coisas". Colbert acrescentou que, se Francisco estivesse no jantar, "não saberíamos, porque Sua Humildade estaria lavando os pés do cara da recepção".

O arcebispo Charles Chaput, da Filadélfia, uma figura conservadora de referência da Igreja Católica norte-americana, ficou famoso durante a campanha presidencial de 2004 por levantar a questão se John Kerry, um católico pro-choice, deveria ter permissão para receber a Comunhão. Chaput foi amplamente citado no ano passado por ter dito que os conservadores católicos "em geral não ficaram muito contentes" com Francisco.

No mês passado, em uma reunião de bispos dos EUA em Baltimore, ele esclareceu seus comentários. "Eu não estava criticando o Santo Padre", disse Chaput. "O que eu manifestei foi que eu saiba que há pessoas que são críticas ao Santo Padre". (O próprio Francisco disse a Spadaro que ele tinha sido "repreendido" pela crítica.) Como se estivesse falando aos descontentes irmãos mais velhos, Chaput acrescentou: "E é importante que ele fale com eles, também". Chaput incentivou os conservadores que desaprovam Francisco a suspender o julgamento. "Devemos analisá-lo depois de um ano, ao invés de tentar medi-lo a cada discurso".

Eu fui ver David Carrasco, historiador das religiões de Harvard. Seu escritório de teto alto no Arquivo Mesoamericano, no Museu Peabody, é dominado por uma imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. Ele é um latino de grande estatura, barbudo e careca de meia-idade, e usa o cabelo quase até os ombros. Sem qualquer sugestão, ele falou sobre o papado de Francisco: "O que me veio foi a história do filho pródigo, só que aqui é o pai pródigo! Não é o filho pródigo que foi embora e está voltando. É o pai pródigo, o pai da Igreja, que parecia ter ido embora". Carrasco acrescentou: "Para longe de grande parte do que João XXIII quis dizer". E continuou: "É como se houvesse um retorno desse pai que supostamente nos protege, nos guia e nos ama". Um retorno para longe do abuso, do autoritarismo, da misoginia – todas as formas, para além da Igreja, pelas quais os pais desta época nos decepcionaram.

É por isso que a resposta ao Papa Francisco foi tão descomunal? O entusiasmo católico é compreensível, mas e o do mundo? Mary McAleese me disse que mesmo os anticatólicos da Ordem de Orange na Irlanda do Norte amam o Papa Francisco. A imprensa está obcecada por ele. A revista Time nomeou-o recentemente como a “Pessoa do Ano”. O Huffington Post informou a especulação de que Francisco, vestido como um humilde padre, foge do Vaticano durante a noite para cuidar de sem-teto de Roma.

Lendas como essa sugerem uma nova disposição para olhar para o que um papa pode ser. Francisco é claramente uma figura mundial, mas uma figura de quê? "Eu gostaria que nós fizéssemos barulho", disse ele a uma multidão de jovens no Brasil em julho. "Eu quero que nos defendamos de tudo o que é mundanismo, imobilismo, nos defendamos do que é comodidade, do que é clericalismo, de tudo aquilo que é viver fechados em nós mesmos. As paróquias, as escolas, as instituições são feitas para sair; se não o fizerem, tornam-se uma ONG e a Igreja não pode ser uma ONG".

Mas, é claro, a Igreja é uma ONG – a maior do mundo. O catolicismo romano é a única instituição mundial que atravessa fronteiras de Norte e Sul, de Leste e Oeste, extrema riqueza e pobreza abjeta. Dado esse alcance, como pode a família humana prosperar sem uma Igreja Católica reformada, com espírito crítico, eticamente responsável? A mensagem explicitamente cristã de Francisco de um Deus misericordioso e amoroso irá sobreviver, mesmo na era secular, como um símbolo rudimentar do desejo humano de transcendência?

Observando o casal que se apresentou ao papa na Praça de São Pedro, eu percebi, enquanto o papa impunha as mãos sobre a cabeça curvada do homem ferido, que tratar e curar não são a mesma coisa. Tratar é remover a doença. Curar é fazer por inteiro, e a inteireza pode pertencer tanto ao doente quanto ao saudável. "A primeira reforma", disse o Papa Francisco, "deve ser a da atitude".

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

''Quem sou eu para julgar?'' O primeiro ano de um papa radical - Instituto Humanitas Unisinos - IHU