“A carta da Doutrina da Fé fará bem para a democracia dos EUA.” Entrevista com Stefano Ceccanti

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17 Mai 2021

 

A carta do cardeal Luis Ladaria, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ao presidente dos bispos estadunidenses, José Gomez, ultraconservador, está provocando discussões na opinião pública católica estadunidense e europeia.

A carta interrompe radicalmente a surpreendente iniciativa da ala conservadora de negar a Comunhão ao presidente Biden (por ser favorável à legislação pró-aborto). Nesta entrevista com o constitucionalista e deputado Stefano Ceccanti, do Partido Democrático italiano - PD -, procuramos aprofundar o conteúdo dessa carta.

A reportagem é de Pierluigi Mele, publicada em Confini, 13-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Professor Ceccanti, os termos da carta não são nada ternos em relação aos conservadores: nas entrelinhas, denuncia-se o comportamento instrumental da iniciativa de Gomez. É isso?

Eu partiria de um pouco mais longe, do aniversário que se celebra nesta sexta-feira. No dia 14 de maio de 1971, há 50 anos, Paulo VI escreveu ao cardeal Roy a carta Octogesima adveniens, pelos 80 anos da Rerum novarum. O parâmetro para as nossas questões é esse, porque ela representa o ponto de chegada da reflexão conciliar sobre o tema das relações entre a Igreja e a política. De fato, apesar de a Gaudium et spes, a constituição conciliar, ter expressado algumas escolhas significativas, incluindo o reconhecimento da opção preferencial pela democracia (n. 31), o capítulo quatro, especificamente, teve um tratamento totalmente insuficiente, porque ele coincidiu com o dia do retorno de Paulo VI da ONU, 5 de outubro de 1965, e os trabalhos da assembleia se concentraram no seu discurso. Foi essa a razão pela qual Paulo VI refez o ponto com a Octogesima adveniens e, em particular, nos pontos 4 e 50.

O ponto 4 faz duas afirmações muito importantes que desideologizam o ensino social: a primeira é que “diante de situações tão diferentes, é difícil para nós pronunciar uma palavra única e propor uma solução de valor universal”, e a segunda é que as comunidades cristãs obtêm disso “princípios de reflexão, critérios de julgamento e diretrizes de ação” que permitem chegar a conclusões concretas. O elemento comum de princípios, critérios e diretrizes é o fato de que eles têm margens de elasticidade em relação às soluções concretas. Margens que evidentemente não são infinitas – para além de um certo limite, o elástico se rompe –, mas mesmo assim elas existem, as soluções concretas não coincidem com elas. É por isso que, como esclarece o número 50, “nas situações concretas e levando em conta solidariedades vividas por cada um, é preciso reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis” com “um esforço de recíproca compreensão das posições e das motivações do outro”.

Por trás dessas afirmações, capta-se toda a sutileza de um papa que, por história familiar, conhecia a concretude da vida político-parlamentar que é feita não de referendos sobre princípios, mas de contínuas mediações entre vários princípios que entram em jogo na mesma decisão, entre princípios e realidade social concreta, e entre diferentes visões que são representadas em uma sociedade aberta. Só assim evitam-se abordagens instrumentais.

Portanto, você encontra essa abordagem que vem de longe na carta do prefeito, ou seja, especificamente no ponto em que se afirma que nem o tema do aborto nem o da eutanásia podem ser usados como a “única matéria em que se requer o pleno nível de responsabilidade por parte dos católicos”. Um grande golpe no “partido dos valores inegociáveis”? Mas isso não vinha desde o pontificado de João Paulo II e a nota doutrinal de 2002 da mesma Congregação, que, no entanto, Ladaria cita como fundamento da sua crítica?

Na encíclica Evangelium vitae, de João Paulo II, de 1995 (que havia confirmado a opção preferencial pelas democracias liberais na Centesimus annus de 1991), também se encontram pelo menos duas passagens importantes na mesma direção da Octogesima adveniens. A primeira (n.71) lembra, com base no ensinamento de Tomás (sobre o qual Jacques Maritain havia refletido por muito tempo), que a defesa e o desenvolvimento de alguns princípios e valores não coincidem com a máxima extensão possível do direito penal para punir comportamentos que os neguem: “A autoridade pública pode, às vezes, renunciar a reprimir algo que, se proibido, provocaria um dano maior”. Se um princípio ou um valor são concretamente desenvolvidos em um ordenamento, isso depende de uma série de incentivos, de um conjunto de políticas públicas: pode ser que um direito penal menos extenso, acompanhado de políticas sociais positivas mais consistentes, tenha, em um determinado contexto histórico, efeitos bem mais positivos. O segundo (n. 73) tende a valorizar comportamentos político-parlamentares voltados à redução do dano.

Por outro lado, esse senso da complexidade não parece ser inteiramente reproduzido na nota doutrinal da Congregação para a Doutrina da Fé de 2002, porque ela parece pressupor que existem âmbitos em que “a ação política se confronta com princípios morais que não admitem abdicações, exceções ou compromissos de qualquer espécie” (n. 4), isto é, em que o esquema é preto e branco, tudo ou nada, verdade ou erro. Aqui está o problema teórico, que também é um sério problema prático: de fato, a nota ainda hoje está totalmente desaplicada, e não por vontade dos indivíduos, mas porque nesses termos ela é substancialmente inaplicável. Ora, alguns bispos estadunidenses, os primeiros que concretamente querem fazer isso, mesmo que chegando a conclusões sobre a Comunhão não diretamente previstas no texto, acreditam que estão interpretando a nota corretamente, considerando que esse raciocínio diz respeito a um determinado âmbito material, em particular os temas do aborto e da eutanásia, porque seriam os primeiros citados no texto. O cardeal Ladaria, em nome da Congregação, reage sinalizando que escolher um âmbito material específico acabaria por selecionar arbitrariamente algumas matérias em detrimento de outras: “Seria enganoso dar a impressão de que o aborto e a eutanásia sozinhos constituem os únicos temas graves do ensino moral e social católico, que requerem o mais alto nível de responsabilização por parte dos católicos”.

Ao fazer isso, o cardeal Ladaria evita oportunamente um padrão duplo entre matérias diferentes, mas logicamente os resultados possíveis são dois e opostos. Ou se confirma que é possível teorizar que, com respeito a todos os princípios e valores que se queira defender e desenvolver, é preciso refutar os compromissos, mas então se torna substancialmente impossível fazer política, especialmente nas sedes parlamentares, chegando-se a um non expedit generalizado; ou, vice-versa, admite-se que sempre existem margens de elasticidade. Obviamente, todas as instâncias sociais, inclusive as eclesiais, têm o direito de considerar que, nos casos concretos, a elasticidade é usada para além dos limites razoáveis e podem muito bem contestar os compromissos concretos alcançados, mas não podem desconhecer a priori a sua existência. Esse nó não pode ser contornado. É a nota de 2002 como tal que não funciona nesse aspecto, ao contrário da abordagem da Octogesima adveniens, que a torna inaplicável e que, quando se tenta aplicá-la, cria conflitos insolúveis.

Você acha que essa intervenção tranquilizará o episcopado estadunidense ou, ao invés disso, alimentará conflitos, fomentados pelos vários Bannons e Viganòs?

Como tentei explicar antes, por extenso, esclarecendo o parâmetro (a Octogesima adveniens) e aquilo que é problemático (a nota de 2002), a linha do episcopado estadunidense é insustentável. Além disso, neste momento e há muitos anos, trata-se do único episcopado que está tentando uma aplicação intransigente dessa nota. Seria bom refletir sobre o seu isolamento não só em relação ao papa, mas também da Igreja universal.

O que essa intervenção pode significar para a política estadunidense?

Enquanto a intervenção da Conferência Episcopal se inseria naquela lógica de over partisanship, de excesso de partidarismo, que marca esse país há vários anos e que tanto prejudica a democracia estadunidense, a intervenção do cardeal Ladaria se presta a uma relação mais positiva com a política. Não está em questão o direito de expressar posições críticas em público de acordo com as regras do direito à liberdade religiosa em uma sociedade aberta, mas a Igreja Católica deve decidir se, em uma situação já marcada por muitas polarizações, ela quer ser vista como parte do problema ou parte da solução. Um certo intransigentismo acaba não contribuindo com a vida política, mas apenas exasperando as diferenças políticas dentro da Igreja.

Não se pode deixar de ver também uma repercussão para a Itália, a pátria do “ruinismo” [em referência ao cardeal Camillo Ruini]... Você vê isso também?

Na Itália, esse período entrou em declínio irreversivelmente há muito tempo, primeiro no plano político e depois no eclesial. Portanto, eu deixaria de lado as polêmicas sobre o passado e me concentraria na busca de uma linha que recolha positivamente o impulso inovador do pontificado. Uma linha que deve ser sabiamente construída.

 

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