“Fratelli Tutti é a afirmação do amor fraterno em sua dimensão universal”. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo

Para o economista, não existe fraternidade se esse sentimento e sua prática estiverem confinados às fronteiras nacionais, às discriminações de religião raça, gênero e classe social

Foto: Mauro Pantoja

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado | 08 Outubro 2020

Francisco, o papa, parafraseia Francisco, o de Assis, no título de sua mais recente encíclica, Fratelli Tutti, em que recupera a fraternidade como valor central das relações não somente entre os humanos, mas entre os humanos, todas as demais espécies e o planeta. Nesse sentido o documento é, ao mesmo tempo, o testemunho de um mundo ferido e uma lúcida proposição de caminhos para enfrentarmos os dilemas contemporâneos a partir de uma visão que tem o amor e o cuidado aos mais vulneráveis como pano de fundo. 

 

Na entrevista concedida por e-mail, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo destaca que "a questão central da Fratelli Tutti é a afirmação do amor fraterno em sua dimensão universal. Não há fraternidade se esse sentimento e sua prática estiverem confinados às fronteiras nacionais, às discriminações de religião raça, gênero e classe social".

  

Belluzzo em conferência no IHU (Foto: Ricardo Machado)

Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social - Ilpes/Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas - Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores da Faculdades de Campinas - Facamp, onde é professor. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp-Editora Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009), Temporalidade da Riqueza - Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outras obras.

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Para discutir o novo documento papal, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove a palestra virtual Encíclica Fratelli Tutti: uma leitura francisclariana, com Prof. Dr. Ildo Perondi - PUCPR e Prof. Dr. Luiz Carlos Susin - PUCRS, na quinta-feira, 08-10-2020.

Na sexta-feira, 09-10-2020, o cardeal português José Tolentino de Mendonça ministrará a conferência virtual Pandemia, um evento global. Repensar o futuro da casa comum a partir da Encíclica Fratelli Tutti

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual é a mensagem central da Encíclica Fratelli Tutti e que reflexões ela propõe para cristãos e não cristãos? Quais são os três pontos que destacaria do texto?

Luiz Gonzaga Belluzzo - Vou iniciar a resposta com uma citação do item 6 inscrito no preâmbulo da Encíclica Fratelli Tutti: “As páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas detêm-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos. Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras. Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade.”

A questão central da Fratelli Tutti é a afirmação do amor fraterno em sua dimensão universal. Não há fraternidade se esse sentimento e sua prática estiverem confinados às fronteiras nacionais, às discriminações de religião raça, gênero e classe social. Francisco afirma: “Não é o falso universalismo daqueles que precisam viajar constantemente porque não podem e não amam seu próprio povo. Aqueles que olham para seu povo com desprezo estabelecem em sua própria sociedade categorias de primeira ou segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade e direitos. Desta forma, nega que haja espaço para todos.

Francisco faz uma crítica do cosmopolitismo dos ricos e poderosos, o falso universalismo ancorado no individualismo radical que se espraia nas sociedades competitivas. Aqui se desenrola um paradoxo da vida contemporânea: O cosmopolitismo individualista está conjugado ao nacionalismo agressivo e retrógrado, matriz da rejeição dos imigrantes e dos diferentes. Assim como os ricos viajantes rejeitam seu povo, os ficantes empobrecidos renegam os que chegam à sua terra: “A mera soma de interesses individuais não é capaz gerar um mundo melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas, o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum.” 

O terceiro ponto é a compreensão do mercado como um instrumento do progresso e da criatividade coletiva e individual, desde que organizado em torno dos valores da igualdade e da fraternidade: “O mercado sozinho não resolve tudo, mesmo que novamente eles queiram que acreditemos nesse dogma da fé neoliberal. É um pensamento pobre e repetitivo que sempre propõe as mesmas receitas diante de qualquer desafio que venha à tona. O neoliberalismo se reproduz sem mais, voltando-se para o mágico "derramamento" ou "gotejamento" — sem nomeá-lo — como a única maneira de resolver problemas sociais. Não se nota que o suposto derramamento não resolve a desigualdade, que é a fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social. 

Por um lado, uma política econômica ativa destinada a "promover uma economia que promova a diversidade produtiva e a criatividade empresarial”, é imprescindível para que seja possível aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, "sem formas internas de solidariedade e confiança mútua, o mercado não pode cumprir plenamente sua própria função econômica. Hoje, precisamente essa confiança falhou." O fim da história não foi tal, e as receitas dogmáticas da teoria econômica predominante mostraram que elas não eram infalíveis. A fragilidade dos sistemas globais frente às pandemias mostrou que nem tudo é resolvido pela liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política sólida que não está sujeita ao ditame das finanças, "devemos trazer a dignidade humana de volta ao centro e que nesse pilar as estruturas sociais alternativas de que precisamos sejam construídas." 

 

  

IHU On-Line – Que relações o senhor percebe entre a Encíclica Fratelli Tutti, a Laudato Si', o recente discurso do Papa Francisco na ONU e seus pronunciamentos acerca da economia e da justiça social? Nesse sentido, como esta encíclica se insere no pontificado de Francisco? 

Luiz Gonzaga Belluzzo - É importante ressaltar a continuidade e a abrangência dos ensinamentos da Igreja. Essa continuidade e abrangência deve ser buscada na sequência de Encíclicas, desde Leão XIII até Francisco. 

Já escrevi que em 2013, o Papa Francisco ofereceu aos cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco abordava as vicissitudes e esperanças da vida cristã no mundo contemporâneo.

Também em 2013, Francisco lamentou o Espírito desse mundo que reduz o Homem “a uma única das suas necessidades: o consumo e, pior ainda, o ser humano é considerado também um bem de consumo que pode ser utilizado e jogado fora". Inversamente, “a solidariedade, o tesouro do pobre, é considerada contra produtiva, contrária à racionalidade financeira e econômica”. Isto deve-se “a ideologias promotoras da autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, que negam o direito de controle dos Estados”.

A sabedoria camponesa de João XXIII espraiou seus ensinamentos no Concílio Vaticano II, ao assinar as encíclicas Mater et Magistra Pacem in Terris.

Na abertura da primeira podia-se ler: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas. Interessante esse “dentro do condicionalismo das várias épocas”.

Na Pacem in Terris, Roncalli escreveu: O progresso da ciência e as invenções da técnica evidenciam que reina uma ordem maravilhosa nos seres vivos e nas forças da natureza. Testemunham, outrossim, a dignidade do homem capaz de desvendar essa ordem e de produzir os meios adequados para dominar essas forças, canalizando-as em seu proveito.

E, ao nos dispormos a tratar dos direitos do homem, advertimos, de início, que o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida: tais são especialmente o alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os serviços sociais indispensáveis. Segue-se daí que a pessoa tem também o direito de ser amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de desemprego forçado, e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade.

Na encíclica Fratelli Tutti, assim também no discurso das Nações Unidas, Francisco cuidou da defesa do meio ambiente, do ecúmeno, como uma ação coletiva essencial que não se restringe à defesa das condições materiais de vida, mas, sim, enquanto promoção de uma relação amistosa, comunitária e carinhosa entre as criaturas do Senhor o homem e a natureza. 

No evento Economia de Francisco, o Papa lembrou que na  Laudato Si'  havia enfatizado que “hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente conectado e a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e da solução dos problemas estruturais da economia mundial. É necessário, portanto, corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações.”

 

IHU On-Line – Que saídas a Encíclica Fratelli Tutti aponta para este momento de mudança epocal que vivemos? 

Luiz Gonzaga Belluzzo - Se não estou enganado, já disse aqui em outra ocasião que os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do papa e incrustada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz, com razão, que no cristianismo primitivo e no judaísmo, a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.

Depois da encarnação, o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela Ressurreição.  Já disse Francisco na Evangelii Gaudium: “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços.”

Pois, a parábola do Bom Samaritano ocupa uma posição central na Encíclica Fratelli Tutti. Central por sua simplicidade em invocar um episódio da vida concreta e não recorrer a “ideais abstratos” ou “funcionalidades moralistas”.

Conta Jesus que havia um homem ferido, estendido por terra no caminho, que fora assaltado. Passaram vários ao seu lado, mas… foram-se, não pararam. Eram pessoas com funções importantes na sociedade, que não tinham no coração o amor pelo bem comum. Não foram capazes de perder uns minutos para cuidar do ferido ou, pelo menos, procurar ajuda. Um parou, ofereceu-lhe proximidade, curou-o com as próprias mãos, pôs também dinheiro do seu bolso e ocupou-se dele. Sobretudo deu-lhe algo que, neste mundo apressado, regateamos tanto: deu-lhe o seu tempo. Tinha certamente os seus planos para aproveitar aquele dia a bem das suas necessidades, compromissos ou desejos. Mas conseguiu deixar tudo de lado à vista do ferido e, sem o conhecer, considerou-o digno de lhe dedicar o seu tempo. 

 

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