Direito à vida e responsabilidade dos Estados no contexto da pandemia de COVID-19. Artigo de Fernanda Frizzo Bragato

Foto: Mário Oliveira/Prefeitura de Manaus

28 Abril 2020

"Os Estados e seus mandatários poderão ser responsabilizados se, conhecendo o perigo concreto e tendo a possibilidade objetiva de evitar mortes, omitiram-se em tomar uma medida sensata e apropriada que, segundo as autoridades sanitárias, é o isolamento social ou se apressaram em relaxá-lo quando não havia condições para tanto", escreve Fernanda Frizzo Bragato, pesquisadora Produtividade em Pesquisa CNPq, possui graduação em Direito – UFRGS, mestrado e doutorado em Direito – UNISINOS (com período Sanduíche no Birkbeck College da Universidade de Londres), pós-doutorado no Birkbeck College da Universidade de Londres e é professora e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS.

 

Eis o artigo.

 

O mundo foi surpreendido no início de 2020 pela COVID-19, doença provocada por um novo coronavírus (Sars-Cov-2) que, após registrar os primeiros casos na cidade de Wuhan, China, em dezembro de 2019[3], disseminou-se rapidamente ao redor do mundo. Em 11/03/2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS), declarou a COVID-19 como pandemia.[4] De acordo com a OMS, até 21 de abril, haviam sido reportados à organização 2.402.250 casos de COVID-19 confirmados, incluindo 163.097 mortes.[5] No início de março de 2020, a Itália foi surpreendida por uma incidência drástica e abrupta da doença, o que determinou o completo isolamento social em determinadas regiões daquele país[6]. Em seguida, outros países, como Espanha, França, Alemanha e Reino Unido sofreram experiências semelhantes, seguidos pelos Estados Unidos, país que registra atualmente o maior número de casos e de mortes no mundo.[7]

 

A taxa de mortalidade da doença – ainda não definitivamente determinada - é mais alta entre idosos e pessoas com comorbidades, mas ela atinge também pessoas mais jovens.[8] Não existe, ainda, nem remédio eficaz para tratamento desta doença, nem vacina para sua prevenção.[9] A OMS estima que cerca de 40% dos casos apresentarão doença leve, 40% sofrerão doença moderada, incluindo pneumonia, 15% dos casos sofrerão doença grave e 5% dos casos serão críticos.[10] Os cientistas ainda não conhecem as razões pelas quais o vírus apresenta esse comportamento: ausência de sintomas em algumas pessoas e quadros graves e mortalidade em outros.[11]

 

A rápida disseminação da doença acabou colapsando os sistemas de saúde de alguns dos países atingidos que, em casos como o italiano, perderam a capacidade de atendimento dos pacientes antes de completar um mês desde o primeiro registro de contágio da doença (21/02), levando à morte, por falta de suporte médico, milhares de pessoas.[12] Por isso, a OMS afirma que a COVID-19 “ameaça a vida humana, os meios de subsistência e o modo de vida de todos os indivíduos em todas as sociedades”.[13]

 

Colapso no sistemas de saúde de Manaus provoca enterros em valas coletivas. (Foto: Amazônia Real/Divulgação)

 

No Brasil, o Ministério da Saúde (MS) declarou, em 03/02/2020, “Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV)”[14] e, em 20/03/2020, “estado de transmissão comunitária do coronavírus em todo território nacional”.[15] A Lei nº 13.979 foi promulgada em 06/02/2020, para dispor sobre as “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.”[16]

 

Em 06/04/2020, o MS emitiu recomendações aos Estados para adoção de medidas de isolamento social, que podem variar de acordo com os diferentes cenários de circulação do vírus. Segundo o MS, “os municípios e estados do país que não tiveram ultrapassado o percentual de 50% de ocupação dos serviços de saúde, após a pandemia de coronavírus, podem iniciar uma transição para um formato onde apenas alguns grupos ficam em isolamento.”[17] Vários Estados da Federação já haviam posto em prática tais medidas de isolamento[18] que, apesar da orientação do MS, viram-se ameaçadas pela atuação do Presidente da República, Jair Bolsonaro.

 

Embora ele não expresse em atos normativos oficiais, manifesta-se publicamente, em diferentes eventos, contrário às medidas de isolamento social e descumpre medidas de etiqueta social e de distanciamento das demais pessoas.[19] As atitudes e falas do Presidente incompatíveis com as orientações do seu MS, da OMS e das autoridades científicas foram reconhecidas em duas ações judiciais no Supremo Tribunal Federal. Em decisões cautelares, o Presidente foi impedido de afastar as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais sobre isolamento social, assim como a União de promover campanhas publicitárias que incentivem a população a retomar plenamente as atividades econômicas.[20] [21] As profundas divergências com seu Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fez com que o Presidente Jair Bolsonaro o demitisse em 16/04/2020.[22]

 

Pronunciamento de Jair Bolsonaro contra as medidas de isolamento social, dia 24/03. (Foto: TV BrasilGov/Youtube/Reprodução)

 

A OMS preconiza uma série de medidas de controle e contenção da pandemia, que dependem do contexto de cada país e que envolvem a atuação de indivíduos, comunidade, Estados (governos) e empresas privadas. Em relação aos Estados, a OMS diz que “a resposta global mais importante ao COVID-19 até o momento talvez tenha sido diagnosticar com precisão, isolar e cuidar com eficácia de todos os casos da doença, incluindo os leves ou moderados, com o objetivo de reduzir a velocidade da transmissão e proteger os sistemas de saúde com sucesso.”[23] Ou seja, o objetivo principal é “que todos os países controlem a pandemia, retardando a transmissão e reduzindo a mortalidade associada ao COVID-19.”[24]

 

Como fazer isso é algo que depende da estrutura e dos recursos de cada Estado. O ideal, segundo a OMS, é que os “Estados sejam capazes de testar, diagnosticar, isolar, rastrear contatos e colocá-los em quarentena, além de envolver toda a comunidade na resposta à COVID-19”. Ao mesmo tempo, “os governos devem dar ao sistema de saúde o apoio necessário para tratar efetivamente os pacientes com COVID-19 e manter outros serviços sociais e de saúde essenciais para todos”. E se precisarem de mais tempo para implementar estas medidas, “os governos podem ter que implementar medidas gerais de distanciamento físico e restrições de movimento proporcionais aos riscos à saúde enfrentados pela comunidade”.[25]

 

Quando essa capacidade não existe, a OMS reconhece que “medidas de distanciamento físico e restrições de movimento, geralmente chamadas de “shut downs” e “lock downs”, podem retardar a transmissão do COVID-19, limitando o contato entre as pessoas”. [26] No entanto, a OMS adverte que “essas medidas podem ter um impacto negativo profundo”, e que “afetam desproporcionalmente grupos desfavorecidos, incluindo pessoas em situação de pobreza, migrantes, deslocados internos e refugiados, que costumam viver em locais superlotados e com poucos recursos, e dependem do trabalho diário para subsistência.” Mesmo assim, “o levantamento prematuro das medidas de distanciamento físico provavelmente levará a um ressurgimento descontrolado da transmissão do COVID-19 e a uma segunda onda ampliada de casos”, caso os Estados não adotem “um planejamento cuidadoso e na ausência de capacidades ampliadas de saúde pública e de atendimento clínico”. A OMS não tem certeza sobre quanto tempo as medidas de distanciamento e de restrição de movimentos devem durar, mas sugerem aos Estados que planejam-se para períodos de dois a três meses.[27]

 

Parmet e Sinha[28] defendem que, nos Estados Unidos, proibições de viagem e quarentenas obrigatórias não conterão, sozinhas, o surto e que outras medidas precisam ser adotadas. Dentre essas medidas, sugerem que é necessário “achatar a curva”, retardando a propagação da COVID-19 já que o sistema de saúde não pode sustentar um influxo maciço de casos infecciosos. Outra medida é reduzir os obstáculos aos testes e aos cuidados. Além disso, os não-cidadãos devem ser protegidos das consequências adversas da imigração quando procuram exames ou cuidados ou para cumprir o rastreamento de contatos e, finalmente, deve-se limitar o impacto financeiro de “contas surpresa” vindas dos planos de saúde durante a pandemia.

 

Estudo publicado pelo Imperial College of London, em 26/03/2020, traçou diferentes cenários de evolução da doença em diversos países, considerando a adoção de diferentes tipos de isolamento social e também de nenhum. Como conclusão geral, o estudo estimou que “na ausência de intervenções, o COVID-19 resultaria em 7 bilhões de infecções e 40 milhões de mortes este ano”. Todavia, “a adoção de estratégias de mitigação focadas em proteger os idosos (redução de 60% nos contatos sociais) e desacelerar, mas não interromper a transmissão (redução de 40% nos contatos sociais para uma população mais ampla) pode reduzir esse ônus pela metade, salvando 20 milhões de vidas, mas prevemos que mesmo nesse cenário, os sistemas de saúde em todos os países serão rapidamente sobrecarregados”.[29] Para o Brasil, com população de 212.559.409 pessoas, o cenário traçado foi o seguinte:

 

Cenário 1- Sem medidas de mitigação:

População infectada: 187.799.806
Mortes: 1.152.283
Indivíduos necessitando hospitalização: 6.206.514
Indivíduos necessitando UTI: 1.527.536

 

Cenário 2 – Com distanciamento social de toda a população:

População infectada: 122.025.818
Mortes: 627.047
Indivíduos necessitando hospitalização: 3.496.359
Indivíduos necessitando UTI: 831.381

 

Cenário 3 – Com distanciamento social E REFORÇO do distanciamento dos idosos:

População infectada: 120.836.850
Mortes: 529.779
Indivíduos necessitando hospitalização: 3.222.096
Indivíduos necessitando UTI: 702.497

 

Cenário 4 – Com supressão tardia

População infectada: 49.599.016
Mortes: 206.087
Indivíduos necessitando hospitalização: 1.182.457
Indivíduos necessitando UTI: 460.361
Demanda por hospitalização no pico da pandemia: 460.361
Demanda por leitos de UTI no pico da pandemia: 97.044

 

Cenário 5 – Com supressão precoce

População infectada: 11.457.197
Mortes: 44.212
Indivíduos necessitando hospitalização: 250.182
Indivíduos necessitando UTI: 57.423
Demanda por hospitalização no pico da pandemia: 72.398
Demanda por leitos de UTI no pico da pandemia: 15.432 [30]

 

Outro estudo realizado em Harvard University mostra, ainda, que para evitar que a capacidade de cuidados intensivos seja excedida, um distanciamento social prolongado ou intermitente pode ser necessário até 2022.[31]

 

A OMS vem auxiliando os Estados ao redor do mundo a endereçar soluções à crise de emergência sanitária instalada pelo novo coronavírus e a preservar o maior número possível de vidas humanas, mas suas normas não são de observância obrigatória pelos Estados.[32] Porém, se algum Estado-membro da ONU não as segue, assume o risco de, com isso, descumprir normas internacionais de observância obrigatória, como é o caso daquelas previstas nos tratados multilaterais de direitos humanos.[33] Isso porque a pandemia do COVID-19 coloca em risco e/ou afeta os direitos mais essenciais dos seres humanos que estão protegidos nesses tratados e impõem obrigações aos Estados de respeitá-los, protegê-los e garanti-los. Estes direitos são, principalmente, a vida, integridade pessoal, liberdade pessoal e saúde.

 

Pelo menos do ponto de vista legal, há uma razão para isso: os Estados, particularmente os que ratificam tratados internacionais de direitos humanos, como é o caso do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU (PIDCP) [34] e o Pacto de São José da Costa Rica (CADH), [35] têm a obrigação inderrogável de proteger e garantir aquele que é o direito humano supremo, sem o qual nenhum outro pode ser exercido: a vida. Como observa o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas em sua Observação Geral no 36, a respeito do significado do artigo 6o do PIDCP, ter direito à vida significa que ninguém pode ser objeto de ações ou omissões que causem ou possam causar uma morte não natural ou prematura e o direito a desfrutar de uma vida digna. Por inderrogável, entende-se o direito que não pode ser suspenso de forma alguma, nem sequer em situações de conflito armado ou outras situações de emergência pública que ameacem a vida da Nação, tal como é previsto no art. 4, 2 do PIDCP.[36]

 

No item 7 da referida Observação 36, o Comitê esclarece que os Estados-partes do PIDCP têm diferentes deveres[37] em relação ao direito à vida. Primeiro, tem o dever de respeitar, o que implica abster-se de se envolver em condutas que resultem na privação arbitrária da vida. Segundo, tem o dever de garantir o direito à vida e exercer a devida diligência para proteger a vida das pessoas contra privações causadas por pessoas ou entidades cuja conduta não é atribuível ao Estado. Aqui importa ressaltar, de acordo com o Comitê, que esses deveres estendem-se “às suposições razoavelmente previsíveis de ameaças e situações de perigo à vida que podem causar mortes” e que “os Estados partes podem ter cometido uma violação do artigo 6, mesmo que essas ameaças e situações não levem à perda de vidas.”[38]

 

Como ensina Peterke, as obrigações dos Estados em relação a direitos humanos podem ser negativas (“dever de respeitar”) e positivas (“dever de proteger” e “dever de garantir”). O dever de respeitar “significa que o Estado é obrigado a respeitar a esfera legalmente protegida por um direito humano; ele tem de se abster de ingerências ilegais nela.[39] Esse dever é também chamado “negativo” ou de “não fazer”, porque exige do Estado passividade, no sentido de não tomar medidas (legislativas, administrativas etc.) incompatíveis com os direitos humanos – daí se tratar de uma obrigação com eficácia imediata.”[40]

 

Porém, também decorrem dos direitos humanos “obrigações que exigem do Estado uma postura “ativa”, isto é, a tomada de certas medidas proativas.”[41] O dever de proteger decorre do fato de que “os direitos humanos não são apenas ameaçados e violados pelos Estados, mas também por agentes não governamentais, sendo que os Estados são, a princípio, obrigados a proteger os indivíduos sob sua jurisdição contra tais perigos.” Os pressupostos gerais de violação do dever de proteger direitos humanos são: “a) a ciência, por parte do Estado, de um perigo concreto ou a obrigação de conhecê-lo; b) possibilidade objetiva de evitar a violação de direito; c) Omissão em tomar uma medida sensata e apropriada.”[42]

 

O dever de garantir se subdivide no dever de facilitar (duty/obligation to facilitate) e no dever de prestar (duty/obligation to provide). Ao dever de facilitar corresponde a “criação dos pressupostos legais, institucionais e processuais necessários para possibilitar aos titulares a efetiva realização dos seus direitos humanos.” Peterke refere que esse dever pode ser cumprido por meio “políticas ou plano de ações, a criação e melhoramento de certas instituições, bem como a elaboração e promulgação de determinadas leis” [43]. A Corte Interamericana de Direitos Humanos esclarece que o dever de garantir inclui a devida diligência para prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção e procurar, ademais, a restituição do direito e a reparação dos danos.[44] Já o dever de prestar está intimamente relacionado aos direitos econômicos, sociais e culturais. O surgimento desse dever nasce, por exemplo, segundo o autor, em casos de “catástrofe natural ou outro desastre que ameaça a vida das vítimas, que passam fome e não têm acesso à água potável”, o que pode justificar a busca de ajuda internacional quando o Estado não dispõe de recursos financeiros suficientes.” [45]

 

Para cumprir a obrigação de respeitar e garantir vidas, a OMS recomenda[46] aos Estados testagem em massa e sistemas de saúde preparados para receber casos da COVID-19.[47] Todavia, a COVID-19 é uma doença pandêmica, ainda sem tratamento e sem vacina, altamente contagiosa e que, em 20% dos casos,[48] evolui para quadros graves que necessitam suporte hospitalar, sem os quais as chances de morrer são praticamente certas. Ou seja, a vida de todos os seres humanos está em perigo. Embora se saiba que, por mais bem aparelhado que seja um sistema de saúde, muitas vidas estão sendo e ainda serão perdidas, também é verdade que muitas serão salvas se os pacientes graves tiverem acesso a suporte hospitalar. Porém, considerando-se que o número de pessoas infectadas é muito grande e tende a crescer, é praticamente impossível assegurar acesso a leitos hospitalares a todos os doentes quando o número de casos cresce abruptamente, em um mesmo país ou região, ao mesmo tempo. Milão, Nova Iorque, Guayaquil e Manaus são exemplos disso.

 

Por essa razão, a OMS e os mais importantes estudos científicos preconizam as medidas de distanciamento social como as mais eficazes, no momento, para assegurar acesso ao sistema de saúde a alto número de doentes, já que ela “achata a curva” da contaminação, diminuindo o seu ritmo e permitindo aos sistemas de saúde absorverem a demanda e evitarem mortes.[49]

 

Entretanto, todas as autoridades mundiais reconhecem que as medidas de distanciamento social que envolvem quarentena e fechamento de estabelecimentos comerciais, industriais, escolares e outros causam prejuízos imensos à economia dos países[50] e à subsistência das pessoas. Em recente comunicado de imprensa da OMS, o seu Diretor disse:

 

Como você sobrevive a um lock down quando depende de seu trabalho diário para comer? As notícias de todo o mundo descrevem quantas pessoas correm o risco de ficar sem acesso a alimentos. Enquanto isso, as escolas fecharam para cerca de 1,4 bilhão de crianças. Isso interrompeu sua educação, deixou alguns sob risco aumentado de abuso e privou muitas crianças de sua principal fonte de alimento. Como já disse muitas vezes, as restrições físicas ao distanciamento são apenas parte da equação e existem muitas outras medidas básicas de saúde pública que precisam ser implementadas. Também pedimos a todos os países que garantam que, onde as medidas de permanência em casa sejam usadas, elas não sejam às custas dos direitos humanos. Cada governo deve avaliar sua situação enquanto protege todos os seus cidadãos e, especialmente, os mais vulneráveis.[51]

 

Isso coloca um dilema para os governos. Na medida em que promovem medidas de isolamento social, obrigam número considerável de pessoas à quarentena e as impedem de buscar seu próprio sustento, por meio do trabalho, o que afeta particularmente os mais vulnerabilizados. Não somente sua liberdade pessoal (incluída a liberdade de ir e vir e as liberdades econômicas) fica limitada, como o próprio direito à vida pode ser violado por meio de uma quarentena.

 

Três questões se colocam aqui:

1) é legal e legítimo cercear a liberdade de ir e vir e as liberdades econômicas nesse contexto de pandemia?;

2) se a resposta à questão for positiva, que obrigações os Estados assumem para que o direito à vida das pessoas, impedidas de prover seu próprio sustento, seja garantida?

3) nos casos em que não há capacidade de testagem em massa nem sistemas de saúde preparados para altíssima demanda de leitos, os Estados têm outra escolha se não adotar algum tipo de medida de isolamento social?

 

Em relação à primeira pergunta. Do ponto de vista legal, os Estados podem suspender temporariamente o direito às liberdades pessoais, dentre as quais a de ir e vir e a liberdade de exercer atividade econômica.[52] No Direito Internacional dos Direitos Humanos, os Estados podem suspender direitos em casos de emergência e, dentre as exceções à suspensão se encontra o direito à vida, mas não o direito à liberdade pessoal.[53] Os Estados devem observar alguns requisitos para proceder a essa suspensão.[54] COVID-19 é uma emergência sanitária que coloca sob risco a vida das pessoas e, como tal, foi declarada pelo Ministério da Saúde no Brasil,[55] após a OMS tê-la declarado uma pandemia.

 

Vista a questão da legalidade, examinemos a questão da legitimidade. Na perspectiva liberal clássica, as restrições à liberdade por parte do Estado são, a priori, inadmissíveis e só podem ocorrer sob estritas condições. O liberalismo é a teoria política da limitação do poder do Estado,[56] mas jamais poderia negar a esse Estado, por exemplo, a prerrogativa de prender pessoas que cometam crimes (a prisão é a mais clássica privação ao direito de liberdade pessoal). A questão das emergências públicas, que demandam respostas coordenadas, acabam transferindo aos Estados poderes sobre a vida privada e a liberdade das pessoas muito maiores do que, em caso de normalidade, eles teriam,[57] mas que se justifica, teoricamente, na preservação dos direitos das pessoas ou do coletivo ameaçados nestas emergências.[58] As emergências instituem os chamados estados de exceção,[59] os mesmos que caracterizam os regimes autoritários e, por isso, requerem extrema vigilância por parte da sociedade civil e das instituições democráticas. A questão é que a resposta à COVID-19 envolve, em muitos casos, a impossibilidade de trabalhar. O direito de trabalhar, na perspectiva liberal, é uma das diversas manifestações do direito de liberdade,[60] diferentemente de muitas outras correntes ético-políticas, que veem o trabalho como um meio para prover sustento, mas não necessariamente uma liberdade.

 

De qualquer forma, mesmo que o livre exercício da atividade econômica esteja abrangido pelos direitos gerais de liberdade, ele pode ser limitado em casos de emergência, já que nenhuma liberdade se justifica se seu exercício pode colocar em risco a vida de milhares de pessoas. O objetivo de salvar o maior número possível de vidas justifica, assim, a privação das liberdades por meio das medidas, como as previstas no art. 3o. da Lei 13.979/20 (isolamento, quarentena, determinação de realização compulsória de exames médicos, entre outros).

 

Porém, medidas de isolamento social prolongadas podem levar a novas ameaças ao direito à vida das pessoas, exigindo outras respostas dos Estados, que se tornam responsáveis pelo ônus do sustento e subsistência daqueles que, no isolamento social, ficam impedidos de provê-los. Trata-se claramente do dever de garantir, na sua dimensão de prestar, estabelecido àqueles Estados que se submetem ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e, mais especialmente, àqueles estados cujas Constituições prevejam obrigações de alcançar direitos sociais aos necessitados.[61] As pessoas em situação de vulnerabilidade podem ser ajudadas pela família, pelos amigos, pela comunidade, mas a responsabilidade legal é do Estado. Nesse sentido, o Congresso Nacional Brasileiro aprovou o pagamento de auxílio de R$ 600,00 para diversas categorias de trabalhadores,[62] mas muitos outros brasileiros em condições de vulnerabilidade não foram alcançados por essa medida, o que importa em forte desincentivo para que se mantenham em casa, aumentando o risco para si mesmos e para toda sociedade. Medidas de auxílio financeiro estão, assim, sendo implementadas em diversos países para que as pessoas mais vulnerabilizadas possam cumprir as ordens ou recomendações de ficar em casa.[63]

 

Aplicativo do auxílio emergencial da Caixa. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

 

No Brasil, passado, em média, um mês de restrições, cresce a resistência por parte de setores da sociedade às medidas de isolamento social, seja porque querem ou porque precisam trabalhar,[64] assim como por parte do Presidente da República, que nunca as defendeu.[65] Em análise do programa de governo das eleições de 2018 de Jair Bolsonaro, Lemos o caracteriza como um programa liberal-conservador, centrado no problema da segurança patrimonial e do mínimo intervencionismo do Estado na esfera econômica. Neste programa, pressupõe-se que “as economias de mercado são historicamente o maior instrumento de geração de renda, emprego, prosperidade e inclusão social.” Lemos aponta que o fundamento dos pensamentos de Von Mises e Hayek, em sua luta contra o socialismo e contra qualquer forma de coletivismo econômico, serve de base teórica para o liberal-conservadorismo brasileiro, que tem na agenda das ‘Reformas do Estado’ (trabalhista, previdenciária, fiscal e tributária) o seu ponto de convergência no Brasil.[66]

 

No atual governo, dividido em diferente núcleos, às vezes contraditórios entre si, a política econômica, a cargo do Ministro Paulo Guedes, situa-se no núcleo neoliberal.[67] O modelo neoliberal ou monetarista, no qual se inspira o governo de Jair Bolsonaro, não trata apenas de rechaçar os modelos comunistas ou socialistas, mas também o Estado-providência de inspiração keynesiana do pós-guerra, e que a partir dos anos [70], começou a suplantar em muitos lugares do mundo.[68]

 

Como explica Avelãs Nunes, os neoliberais, que regressam às teorias pré-keynesianas, defendem que “as economias capitalistas tendem espontaneamente para o equilíbrio de pleno emprego em todos os mercados, pelo que não precisam ser equilibradas, sendo desnecessárias as políticas anticíclicas e inconsequentes as políticas de combate ao desemprego, que não conseguem eliminá-lo e geram inflação.”[69] Um dos pontos fundamentais do neoliberalismo, aponta o autor, é a ideia de que “o mercado é o único mecanismo racional de afectação de recursos escassos a usos alternativos. O ideário liberal rejeita o objetivo de redução das desigualdades, em nome da promoção da equidade e da justiça, porque políticas com esse objetivo são sempre encaradas como um atentado à liberdade individual.”[70] E, portanto, as soluções passam por “privatização do sector empresarial do Estado e dos serviços públicos, pela separação da esfera política (que competiria ao Estado), da esfera econômica (do foro exclusivo dos particulares), e pela libertação da sociedade civil”.[71]

 

Onde uma ampliação da esfera de responsabilidade do Estado e um alargamento do seu campo de intervenção impõem-se como inexoráveis, como é o caso da pandemia da COVID-19 que impede os mercados de funcionarem simplesmente porque os trabalhadores devem ficar em casa, instaura-se, naturalmente um pânico em governos neoliberais ou liberais-conservadores. Nesse contexto, não se estranham posturas de negacionismo das dimensões trágicas da pandemia, a fim de justificar a volta imediata das atividades econômicas, apesar de todas as consequências que isso possa acarretar.

 

Inobstante a orientação neoliberal e eventuais promessas de campanha de governos a ela alinhados, do ponto de vista legal, a resposta à terceira questão não pode ser outra que não a de que, nesta pandemia, os Estados sem capacidade de testagem em massa nem sistemas de saúde preparados para altíssima demanda de leitos, têm que adotar medida de isolamento social compatível com a sua necessidade e, ao fazê-lo, assumir a subsistência de quem não pode provê-la. Segundo a OMS e os principais estudos internacionais, a adoção de isolamento social em contextos de falta de infraestrutura suficiente é a única medida para salvar o maior número possível de vidas, obrigação a que todos os Estados estão submetidos, mesmo os de orientação neoliberal. Isso não significa negar que tais medidas causam, de fato, dano imensurável às economias, como demonstram as previsões dos organismos financeiros internacionais,[72] além de problemas psicológicos, mas, na falta de alternativa, torna-se um mal inevitável e, a essa altura, incontornável, quando o objetivo deve ser o de salvar o maior número possível de vidas.

 

Nenhum Estado pode ser responsabilizado legalmente porque, ao determinar isolamento social, não preservou empregos ou porque cerceou as liberdades econômicas de seus cidadãos durante a crise sanitária. Eles estão perfeitamente respaldados para fazer isso, desde que, aos que necessitam para a própria subsistência, ofereçam auxílios financeiros. Além disso, boas administrações serão capazes de adotar medidas além dessa, a fim de prevenir danos maiores à economia de seus países, mesmo que adotem medidas de isolamento social. Porém, os Estados e seus mandatários poderão ser responsabilizados se, conhecendo o perigo concreto e tendo a possibilidade objetiva de evitar mortes, omitiram-se em tomar uma medida sensata e apropriada que, segundo as autoridades sanitárias, é o isolamento social ou se apressaram em relaxá-lo quando não havia condições para tanto.

 

Clique aqui para ler a versão em inglês do artigo.

 

Notas:

[1] Agradeço aos Prof. Dr. Alfredo Culleton e Vicente de Paulo Barretto e ao orientando de mestrado, Alex Sandro da Silveira Filho, pela a revisão, comentários e auxílios para a elaboração deste texto.

[2] Pesquisadora Produtividade em Pesquisa CNPq. Graduação em Direito – UFRGS; Mestrado e Doutorado em Direito – UNISINOS (com período Sanduíche no Birkbeck College da Universidade de Londres); Pós-doutorado no Birkbeck College da Universidade de Londres. Professora e Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS.

[3] WHO. Novel Coronavirus (2019-nCoV). SITUATION REPORT - 1 21 JANUARY 2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[4] WHO. WHO Director-General's opening remarks at the media briefing on COVID-19 - 11 March 2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[5] WHO. Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020.

[6] Em 21/02, foi registrado o primeiro caso no país; em 01/03 havia 1.686 casos. Disponível aqui. Acesso em 17Abr2020.

[7] Quase 752 mil casos e 35 mil mortes em 21/04/2020, segundo WHO. Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020.

[8] Ver: Wayne C. Koff, Ph.D., and Michelle A. Williams, Sc.D. Covid-19 and Immunity in Aging Populations — A New Research Agenda. The New England Journal of Medicine. DOI: 10.1056/NEJMp2006761. Disponível aqui. Acesso em 17Abr2020. Ver também: WHO. 14 April 2020 COVID-19 STRATEGY UPDATE. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[9] The world is now facing a pandemic of SARS-CoV-2 (severe acute respiratory syndrome coronavirus 2, the cause of COVID-19), for which no proven specific thera- pies are available, other than supportive care. Ver: Andre C. Kalil. Treating COVID-19—Off-Label Drug Use, Compassionate Use, and Randomized Clinical Trials During Pandemics. JAMA Published online March 24, 2020. Downloaded From by a Western University User on 03/26/2020.

[10] WHO. 14 April 2020 COVID-19 STRATEGY UPDATE. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[11] The New York Times. Why Epidemiologists Still Don’t Know the Death Rate for Covid-19. April 17, 2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[12] BBC Brasil. 'Em colapso': a dramática situação dos hospitais da Itália na crise do coronavírus. 19mar2020. Disponível aqui. Ver também outros links: aqui Aqui. Todos com acesso em 18Abr2020.

[13] WHO. 14 April 2020 COVID-19 STRATEGY UPDATE. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[14] BRASIL. PORTARIA No 188, de 03/02/2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[15] BRASIL. PORTARIA N. 454, de 20/03/ 2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[16] Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[17] BRASIL. Boletim Epidemiológico 7 – COE Coronavírus – 06 de abril de 2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[18] Alguns exemplos: No Rio Grande do Sul, Decreto n. 55.128, de 19/03/2020 (Declara estado de calamidade pública em todo o território do Estado do Rio Grande do Sul para fins de prevenção e de enfrentamento à epidemia causada pelo COVID-19 (novo Coronavírus). Disponível aqui. Em São Paulo, Decreto n. 64.879, de 20/03/2020 (Reconhece o estado de calamidade pública, decor- rente da pandemia do COVID-19, que atinge o Estado de São Paulo, e dá providências correlatas). Disponível aqui. No Ceará, Decreto de N° 33.510, de 16/03/ 2020, que prevê uma série de medidas preventivas que devem ser aplicadas no sentido de conter a proliferação do novo coronavírus. Disponível aqui. Em Goiás, Decreto nº 9.633, de 13/03/ 2020. Disponível aqui. No Amazonas, Decreto nº 42.061, de 16 de março de 2020, que "DISPÕE sobre a decretação de situação de emergência na saúde pública do Estado do Amazonas, em razão da disseminação do novo coronavírus (2019-nCoV), e INSTITUI o Comitê Intersetorial de Enfrentamento e Combate ao COVID-19. Disponível aqui. Todos com acesso em 18Abr2020.

[19] A mídia brasileira e estrangeira reporta em abundância a posição contrária do Presidente Brasileiro às medidas de distanciamento social, assim como o seu descumprimento das regras de etiqueta social. Ver, por ex: G1. Bolsonaro volta a ignorar orientações de distanciamento social em cerimônia no Planalto. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[20] Em decisão cautelar proferida em 31/03/2020, o Ministro Luis Roberto Barroso, na ADPF 669, vedou à União Federal “a produção e circulação, por qualquer meio, de qualquer campanha que pregue que “O Brasil Não Pode Parar” ou que sugira que a população deve retornar às suas atividades plenas, ou, ainda, que expresse que a pandemia constitui evento de diminuta gravidade para a saúde e a vida da população.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 669/DF. Requerente: Rede Sustentabilidade. Relator: Min. Roberto Barroso, 31 de março de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 18 abr. 2020.

[21] Em outra decisão cautelar de 08/04/2020, proferida na ADPF 672, o Ministro Alexandre de Moraes decidiu cautelarmente que “não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde)”. Na mesma decisão, o Ministro reconhece e lamenta que “na condução dessa crise sem precedentes recentes no Brasil e no Mundo, mesmo em assuntos técnicos essenciais e de tratamento uniforme em âmbito internacional, é fato notório a grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos e, inclusive, entre autoridades federais componentes do mesmo nível de Governo, acarretando insegurança, intranquilidade e justificado receio em toda a sociedade.”BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 672/DF. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Min. Alexandre de Moraes, 08 de abril de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 18 abr. 2020.

[22] BRASIL, Decreto de 16 de abril de 2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[23] WHO. 14 April 2020 COVID-19 STRATEGY UPDATE. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[24] Id.

[25] Id.

[26] Therefore, as we have always said, lock-downs in their own right are not a solution but those population-wide physical distancing measures have proved quite effective in countries where there's been a rapid escalation of cases, sometimes as a result of not being successful in containing the disease in the first place. Those measures have served to suppress some of the transmission. Disponível aqui.

[27] Id.

[28] Wendy E. Parmet, J.D., and Michael S. Sinha, M.D., J.D., M.P.H. Covid-19 — The Law and Limits of Quarantine. April 9, 2020. N Engl J Med 2020; 382:e28 DOI: 10.1056/NEJMp2004211. Disponível aqui. Acesso em 17Abr2020.

[29] Patrick GT Walker, Charles Whittaker, Oliver Watson et al. The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression. Imperial College London (2020), DOI: https://doi.org/10.25561/77735. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[30] Compilação dos dados do estudo feita pela Associação Brasileira de Enfermagem. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[31] Kissler, Stephen M. et al. Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the postpandemic period. Science 10.1126/science.abb5793 (2020). Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020.

[32] “As únicas decisões realmente mandatórias, além das decisões do Conselho de Segurança sob o artigo 25 da Carta da ONU, a que já nos referimos, são as resoluções relativas à estrutura interna do organismo internacional. Há, na ONU, questões internas sobre as quais se tomam decisões mandatórias pela ação conjunta da Assembleia Geral com recomendação prévia positiva do Conselho de Segurança, a saber: admissão, suspensão e expulsão de membros da ONU, e nomeação do Secretário-Geral.” Cançado Trindade, Antônio Augusto. Princípios do direito internacional contemporâneo / Antônio Augusto Cançado Trindade. 2. ed. rev. atual. – Brasília: FUNAG, 2017. P. 111.

[33] Convenções ou tratados internacionais são fontes de direito internacional, conforme art. 38, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Todavia, como observa Cançado Trindade, “A formação e evolução do direito internacional contemporâneo vão bem além da consideração das “fontes” formais do direito internacional, enumeradas no artigo 38 do Estatuto da CIJ (cf. supra). Tais “fontes” formais nunca pretenderam (e nem poderiam) ser exaustivas, e o recurso às mesmas tem sido, ao longo dos anos, nada mais do que um exercício de um positivismo analítico superado, que nunca encontrou nem forneceu uma explicação convincente da validade das normas legais internacionais. Tais “fontes” formais vieram a se a gurar como os meios pelos quais o direito internacional tem se formado”. P. 118.

[34] Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, ratificado pelo Brasil e internalizado pelo Decreto nº 592/1992. Disponível aqui. Acesso em 19Abr2020.

[35] Convenção Americana de Direitos Humanos da OEA, ratificada pelo Brasil e internalizada pelo Decreto 678/92. Disponível aqui. Acesso em 19Abr2020.

[36] NACIONES UNIDAS. Comité de los Derechos Humanos. Pacto Internacional de Derechos Civiles y Politicos. Observación General num. 36. Articulo 6: derecho a la vida. 3 de setembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em 19Abr2020.

[37] A CADH estipula no seu art. 1° (1) que “Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos humanos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício [...]”. De forma semelhante, o art. 2° (1) do PIDCP prevê que “Os Estados-Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar e garantir [...] os direitos reconhecidos [nele]”.

[38] NACIONES UNIDAS. Comité de los Derechos Humanos. Pacto Internacional de Derechos Civiles y Politicos. Observación General num. 36. Articulo 6: derecho a la vida. 3 de setembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em 19Abr2020.

[39] “Es un principio de derecho internacional que el Estado responde por los actos de sus agentes realizados al amparo de su carácter oficial y por las omisiones de los mismos aun si actúan fuera de los límites de su competencia o en violación del derecho interno.” Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Fondo. Sentencia de 29 de julio de 1988. Serie C No. 4. párr. 170.

[40] PETERKE, Sven (coord.). Manual prático de direitos humanos internacionais / Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2009. P. 155.

[41] Id. P. 157.

[42] Id. P. 158.

[43] Id. P. 161.

[44] Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Fondo. Sentencia de 29 de julio de 1988. Serie C No. 4. Párr. 166.

[45] PETERKE, Sven (coord.). Manual prático de direitos humanos internacionais / Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2009. P. 161.

[46] WHO. 14 April 2020 COVID-19 STRATEGY UPDATE. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[47] No caso de países como o Brasil, que não apenas reconhecem o direito universal à saúde em sua Constituição (art. 6o.), mas ratificaram o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo de San Salvador que preveem a saúde como um direito humano, existe a responsabilidade de respeitar e garantir o direito à saúde, por si mesmo, e não como uma decorrência do direito à vida.

[48] WHO. 14 April 2020 COVID-19 STRATEGY UPDATE. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[49] Sabemos que em alguns países os casos dobram a cada três a quatro dias. No entanto, enquanto o COVID-19 acelera muito rápido, desacelera muito mais lentamente. Em outras palavras, a descida é muito mais lenta que a subida. Isso significa que as medidas de controle devem ser levantadas lentamente e com controle. Não pode acontecer de uma só vez. As medidas de controle só podem ser levantadas se as medidas corretas de saúde pública estiverem em vigor, incluindo capacidade significativa de rastreamento de contatos. (Tradução nossa) In: WHO. COVID-19 virtual press conference - 13 April, 2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[50] FMI estima que, como resultado da pandemia, a economia global deverá contrair-se acentuadamente em -3% em 2020, muito pior do que durante a crise financeira de 2008-09. Disponível aqui. Sobre a situacao da economia brasileira, o Fundo estimou uma redução de 5,3% no produto interno bruto (PIB) brasileiro este ano. Disponível aqui.

[51] WHO. COVID-19 virtual press conference - 13 April, 2020. (Tradução nossa) Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[52] PIDCP: ARTIGO 4. 1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente, os Estados Partes do presente Pacto podem adotar, na estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. 2. A disposição precedente não autoriza qualquer suspensão dos artigos 6, 7, 8 (parágrafos 1 e 2) 11, 15, 16, e 18. 3. Os Estados Partes do presente Pacto que fizerem uso do direito de suspensão devem comunicar imediatamente aos outros Estados Partes do presente Pacto, por intermédio do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, as disposições que tenham suspendido, bem como os motivos de tal suspensão. Os Estados partes deverão fazer uma nova comunicação, igualmente por intermédio do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, na data em que terminar tal suspensão. CADH. Artigo 27. Suspensão de garantias 1.Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado Parte, este poderá adotar disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social. 2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados seguintes artigos: 3 (Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica); 4 (Direito à vida); 5 (Direito à integridade pessoal); 6 (Proibição da escravidão e servidão); 9 (Princípio da legalidade e da retroatividade); 12 (Liberdade de consciência e de religião); 17 (Proteção da família); 18 (Direito ao nome); 19 (Direitos da criança); 20 (Direito à nacionalidade) e 23 (Direitos políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos. 3. Todo Estado Parte que fizer uso do direito de suspensão deverá informar imediatamente os outros Estados Partes na presente Convenção, por intermédio do Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, das disposições cuja aplicação haja suspendido, dos motivos determinantes da suspensão e da data em que haja dado por terminada tal suspensão.

[53] NACIONES UNIDAS. Comité de los Derechos Humanos. Pacto Internacional de Derechos Civiles y Politicos. Observación General num. 29. Suspensión de obligaciones durante un estado de excepción (artículo 4). 24 de julio de 2001. Disponível aqui. Acesso em 19Abr2020.

[54] “As medidas que suspendem a aplicação de qualquer disposição do Pacto devem ser excepcionais e temporárias. Antes de um Estado adotar a decisão de invocar o artigo 4, duas condições fundamentais devem ser atendidas: que a situação seja de natureza excepcional que ponha em perigo a vida da nação e que o Estado Parte tenha proclamado oficialmente o estado de exceção.” (Tradução nossa) In: Id.

[55] BRASIL. PORTARIA No 188, de 03/02/ 2020. Disponível aqui. Acesso em 18Abr2020.

[56] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.

[57] Ver art. 3o. da Lei LEI Nº 13.979/20.

[58] Carvalho propõe o enquadramento da pandemia de COVID-19 como desastre físico, de caráter biológico, cuja hiperprodução de atos normativos e conflitos judiciais nas mais diversas áreas do Direito, deve ter como consequência um tratamento integrado por uma racionalidade comum, que deve observar dois parâmetros. De um lado, a função jurídica deve assimilar a anormalidade e encaminhar as rotinas jurídicas e a própria Sociedade na direção de uma nova normalidade, operacionalmente estável. De outro, cada ramo do Direito deve assimilar e produzir suas próprias reações específicas, de modo a colaborar na mitigação dos impactos, fornecer estabilidade a situações caóticas, dar absoluta prioridade para redução das vulnerabilidades sociais, físicas ou tecnológicas, orientar suas decisões a partir de informações cientificas dotadas de credibilidade, dentre outras. In: CARVALHO, Délton Winter de. A natureza jurídica da Pandemia Covid-19 como um desastre biológico: um ponto de partida necessário para o Direito. 2020. No prelo.

[59] Preocupado com a emergência dos estados de exceção, sobre cujas características e consequências Giorgio Agamben tem diversas obras, o autor chegou a publicar um artigo crítico, em 26 de fevereiro de 2020, na Itália, questionando o início das medidas de restrição que viriam a ser impostas em seguida: “Parece quase que, esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia possa oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de todo limite”. Disponível em aqui. 2020. Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020. Ver também a excelente análise da Morais e Wermuth em: WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; MORAIS, José Luis Bolzan De. DA EXCEÇÃO AGAMBENIANA À CONSTITUIÇÃO PLANETÁRIA DE FERRAJOLI: DESAFIOS IMPOSTOS PELA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS ÀS CATEGORIAS JURÍDICO-POLÍTICAS TRADICIONAIS. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM v. 15, n. 1 / 2020 e43057. Disponível aqui. Acesso em 28Abr2020.

[60] CHAMPEIL-DESPLATS, Véronique. Libertés économiques, droits de l'homme et droits fondamentaux. In: RUIZ, Castor M. M. Bartolomé (coord.). Direito à justiça, memória e reparaçao: a condiçao humana nos estados de exceção. São Leopoldo: Casa Leiria, 2010.

[61] No caso brasileiro, o dever de assistência social é previsto no art. 203, da Constituição da República de 1988.

[62] BRASIL, LEI Nº 13.982, DE 02/04/2020. Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020. Art. 2º Durante o período de 3 (três) meses, a contar da publicação desta Lei, será concedido auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais ao trabalhador que cumpra cumulativamente os seguintes requisitos: I - seja maior de 18 (dezoito) anos de idade; II - não tenha emprego formal ativo; III - não seja titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado, nos termos dos §§ 1º e 2º, o Bolsa Família; IV - cuja renda familiar mensal per capita seja de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três) salários mínimos; V - que, no ano de 2018, não tenha recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos); e VI - que exerça atividade na condição de: a) microempreendedor individual (MEI); b) contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social que contribua na forma do caput ou do inciso I do § 2º do art. 21 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991; ou c) trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, ou que, nos termos de autodeclaração, cumpra o requisito do inciso IV.

[63] ESTADÃO. Ao menos 45 países já adotaram medidas para conter impactos da covid-19 em emprego e renda. 23/03/2020. Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020.

[64] Após quase um mês de isolamento horizontal, pesquisa Datafolha realizada com brasileiros adultos que possuem celulares mostra que sete em cada dez (68%) avaliam que no momento é mais importante manter as pessoas em casa a fim de evitar a propagação do coronavírus, mesmo que isso prejudique a economia e cause desemprego. Em contrapartida, 22% avaliam que acabar com o isolamento é o mais importante a fim de estimular a economia e impedir o desemprego, mesmo que isso contribua para a disseminação do coronavírus. Uma parcela de 10% não opinou. In: DATAFOLHA. Apoio ao isolamento recua de 76% para 68%. 20/04/2020. Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020.

[65] G1. Bolsonaro defende fim de medidas de isolamento nesta semana. 20/04/2020. Disponível aqui. EXAME. Um dia após protesto, Bolsonaro critica isolamento e defende democracia. 20/04/2020. Disponível aqui. VALOR INVESTE. Bolsonaro defende fim de isolamento social já nesta semana. Disponível aqui. Todos com acesso em 21Abr2020.

[66] LEMOS, Amarildo Mendes. Menos Marx, mais Mises: o pensamento liberal- conservador no brasil do século XXI. Revista Ágora - Vitória - n. 29 - 2019 - p. 123-143 - ISSN: 1980-0096.

[67] PINTO, Eduardo Costa. Bolsonaro e os Quartéis: a loucura com método. Texto para Discussão 006 | 2019. Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020.

[68] NUNES, António José Avelãs. Neoliberalismo e direitos humanos. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 98, 423-462. 2003. P. 424-427. Disponível aqui. Acesso em 21Abr2020.

[69] Id., p. 439.

[70] Id. p. 440.

[71] Id., p. 450.

[72] Ver acima previsão do FMI.

 

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