Programa Um Milhão de Cisternas tirou a lata d’água da cabeça das mulheres. Hoje, está paralisado. Entrevista especial com Marcos Jacinto de Sousa

Programa que leva tecnologia social ao semiárido está com investimentos suspensos no governo Bolsonaro, diz coordenador executivo do Instituto Elo Amigo e representante da Coordenação Executiva da Articulação Semiárido Brasileiro - ASA pelo estado do Ceará

Foto: Bruno Spada | ASA

Por: Patricia Fachin | 17 Dezembro 2021

 

O Programa Um Milhão de Cisternas, criado em 2003 para garantir o estoque de água da chuva a partir do uso de cisternas construídas com placas de cimento ao lado de cada casa, "mudou a realidade do semiárido brasileiro e contribuiu de forma significativa para a melhoria da qualidade de vida das famílias", disse Marcos Jacinto de Sousa ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp. Depois de ter garantido o acesso à água a mais de cinco milhões de pessoas, o programa enfrenta a maior redução no orçamento federal desde que foi criado.



Segundo Sousa, na gestão Bolsonaro, o programa está paralisado. "Em 2003, período em que o programa estava em reestruturação, foram instaladas 6.600 tecnologias. De 2004 a 2017, a média de implementação foi de 64.200 tecnologias anuais, com variações. Em 2017, por exemplo, foram instaladas 42.300 tecnologias e, em 2013, 111.540 tecnologias. Em 2020, foram instaladas 7.188. Então, de todos os anos anteriores, esse foi o pior. Em 2021, o resultado vai ser pior ainda: não chegaremos à construção de duas mil tecnologias no semiárido brasileiro", afirma.

 

O atual cenário de falta de investimento de recursos federais, explica, está associado a duas questões: "à negação de um programa tão elementar para o semiárido brasileiro, juntamente com a negação de outras políticas sociais e estratégicas que podem melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro" e "à falta de vontade política de continuar com o programa, de fazer com que o acesso à água chegue às demais famílias do semiárido, de incluí-las no orçamento público federal, de entender que elas também precisam de apoio e que esse programa estratégico, como tem se mostrado, pode, sim, mudar a realidade e gerar qualidade de vida para as famílias".

 

Além de aprimorar o Programa Um Milhão de Cisternas, a fim de levar água a aproximada 350 mil famílias que ainda não têm acesso a esse bem público, Sousa reitera a necessidade de "dar continuar ao debate sobre o acesso à terra, tendo em vista que um percentual muito significativo de famílias que vive no semiárido ainda não tem acesso à terra para garantir a moradia nem para conseguir trabalhar".

 


Marcos Jacinto de Sousa (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Marcos Jacinto de Sousa é graduado em Processos Gerenciais e pós-graduado em Gestão de Recursos Humanos e Marketing e Docência do Ensino Superior. É coordenador executivo do Instituto Elo Amigo e representante da Coordenação Executiva da Articulação Semiárido Brasileiro - ASA pelo estado do Ceará. A ASA é a maior rede de organizações sociais do Semiárido.

 

Confira a entrevista. 

 

IHU - Segundo a Articulação no Semiárido Brasileiro - ASA, o Programa Um Milhão de Cisternas sofre a maior redução de sua história. Pode nos informar qual é a situação do Programa hoje?

 

Marcos Jacinto de Sousa – O Programa Um Milhão de Cisternas vem sofrendo redução no orçamento público federal desde 2016. No entanto, nós estamos diante da pior série histórica em relação aos investimentos públicos de recursos federais. Chegamos ao ponto de, em 2020, termos apenas 7.188 tecnologias sociais entregues às famílias rurais do semiárido, correspondentes a contratos fechados em anos anteriores. Em 2021 não houve recurso no orçamento público federal empenhado para o Programa, exatamente em um período em que as famílias rurais do semiárido passam pela dificuldade da seca em várias regiões e também por um processo de pandemia muito forte, em que o acesso à água se torna cada vez mais necessário.

Esta é a realidade do Programa Um Milhão de Cisternas: um programa que vem sofrendo redução no orçamento desde 2016 e que hoje encontra-se, do ponto de vista do orçamento federal, paralisado. Há algumas ações pontuais sendo desenvolvidas, mas com a participação de outros parceiros. No caso do estado do Ceará, por exemplo, algumas organizações estão atuando no Programa, mas com financiamento a partir do governo do estado. Vivemos uma realidade de paralisação de investimentos em um momento tão difícil como o que estamos enfrentando.

 

 

IHU - Quantas cisternas costumavam ser construídas e quantas foram construídas neste ano?

 

Marcos Jacinto de Sousa – Em 2003, período em que o programa estava em reestruturação, foram instaladas 6.600 tecnologias. De 2004 a 2017, a média de implementação foi de 64.200 tecnologias anuais, com variações. Em 2017, por exemplo, foram instaladas 42.300 tecnologias e, em 2013, 111.540 tecnologias. Em 2020, foram instaladas 7.188. Então, de todos os anos anteriores, esse foi o pior. Em 2021, o resultado vai ser pior ainda: não chegaremos à construção de duas mil tecnologias no semiárido brasileiro.

É um cenário muito difícil e desafiador para as famílias que vivem no semiárido. Considerando a média histórica e levando em conta que ainda existem 350 mil famílias no semiárido sem acesso à água potável, seria necessário trabalhar na perspectiva de construir pelo menos 70 mil tecnologias anuais. Nessa média, levaríamos aproximadamente seis anos para atender a todas as famílias que ainda demandam água potável.

Esses números mostram o tamanho do desafio que temos para chegar a todas as famílias, principalmente em um período como esse, em que temos os piores resultados desde quando programa foi constituído, em 2003.

 

 

 

IHU - A que atribui esse quadro de falta de investimento no Programa Um Milhão de Cisternas?

 

Marcos Jacinto de Sousa – A nossa narrativa tem sido construída em cima de duas questões principais sobre qual é a razão da falta de investimento federal. Uma delas é a negação do programa e da sua importância estratégica para a vida de milhares de famílias que vivem no semiárido brasileiro. Comprovadamente, o Programa Um Milhão de Cisternas é eficaz, tem reconhecimento internacional de organismos da Organização das Nações Unidas - ONU e é difundido e ampliado em outros países que têm regiões semiáridas similares às do Brasil. Então, o primeiro elemento é a negação de um programa tão elementar para o semiárido brasileiro, juntamente com a negação de outras políticas sociais e estratégicas que podem melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro.

A segunda questão é a falta de vontade política de continuar com o programa, de fazer com que o acesso à água chegue às demais famílias do semiárido, de incluí-las no orçamento público federal, de entender que elas também precisam de apoio e que esse programa estratégico, como tem se mostrado, pode, sim, mudar a realidade e gerar qualidade de vida para as famílias. Esses dois elementos estão na pauta do governo e é por isso que não há, de fato, a continuidade do investimento público federal para a execução do Programa.

 

 

IHU - Quais foram as principais mudanças ocorridas no Programa Um Milhão de Cisternas no governo Bolsonaro?

 

Marcos Jacinto de Sousa – As principais mudanças que ocorreram no Programa Um Milhão de Cisternas no governo Bolsonaro foram duas, as quais acabam inviabilizando a execução do programa. A primeira foi a tentativa recorrente do governo de escanteamento e exclusão das organizações sociais, principalmente daquelas ligadas à ASA, da execução do programa. A segunda mudança é no sentido de esvaziar o programa a partir da não disponibilização de recursos federais para a sua execução. Essas duas medidas aconteceram, e acontecem no governo Bolsonaro. Em 2017, o Ministério da Cidadania lançou um edital com recursos do Fundo de Defesa de Direitos Difusos e a Associação Programa Um Milhão de Cisternas - AP1MC foi impedida de participar. Nós recorremos e garantimos na Justiça o direito de participação no edital. Mesmo participando e ganhando um dos lotes, até hoje não tivemos condição de dialogar com o governo no sentido de obter as condições necessárias para a execução do programa. Isso reflete esse cenário de tentativa de exclusão das organizações sociais e de não disponibilização de orçamento federal para a execução do programa.



IHU - Quantas famílias aguardam a construção de cisternas em suas residências?

 

Marcos Jacinto de Sousa – A ASA estima que ainda existam 350 mil famílias que não têm acesso à água potável. Então, a primeira demanda é a aquisição de tecnologias que garantam o acesso à água para consumo humano. Se considerarmos a necessidade de tecnologias para produção de alimentos, esse número vai chegar a 797.519 mil tecnologias que precisariam ser construídas no semiárido para que as famílias tenham condição de ter água para a produção de alimentos. Essa é uma ação significativa à medida que gera renda, segurança alimentar e nutricional para as famílias do semiárido.

 

 

IHU - Como a pandemia afetou as famílias que vivem no semiárido e enfrentam a seca?

 

Marcos Jacinto de Sousa – A pandemia veio como mais um grande desafio para as famílias do semiárido, especialmente porque elas já passam por dificuldades nos períodos de seca e das secas recorrentes que afetam tanto a qualidade de vida delas quanto as condições de acesso à água e outros bens necessários para a sobrevivência delas. O desafio foi maior principalmente para aquelas que vivem no meio rural, porque historicamente são famílias que têm muita dificuldade de acesso a políticas públicas e aos bens naturais que deveriam estar disponíveis a todos. Além dessas dificuldades, elas enfrentam dificuldades de acesso à terra, de comercialização da sua produção, de acesso a crédito, que é importante para conseguirem produzir e vender seus produtos e garantir uma condição de vida digna no semiárido.

A pandemia impôs novos desafios porque trouxe, além de todas as suas mazelas, a necessidade maior de as famílias terem acesso à água e à saúde. Quando temos um período de não investimento em um programa tão importante como é o Programa Cisterna - e outros programas sociais do governo federal -, isso acaba trazendo prejuízos e dificuldades para que as famílias possam continuar resistindo e construindo seu caminho de sustentabilidade no semiárido brasileiro.

 

 

 

IHU - A fome e a insegurança alimentar são problemas que se agravaram no país nos últimos dois anos. Como está a situação das famílias que vivem no semiárido em relação a esses problemas?

 

Marcos Jacinto de Sousa – O quadro de aumento da fome e da insegurança alimentar preocupa muito as organizações da ASA e as instituições que atuam no semiárido porque é lá que está a maior quantidade de famílias que vive na miséria e a maior quantidade de famílias que não tem segurança alimentar e nutricional garantida, nem acesso a políticas públicas que possam melhorar a sua qualidade de vida.

Quando vivemos um período como esse, em que a fome e a miséria aumentam e os investimentos públicos são reduzidos, isso preocupa cada vez mais. Então, é por isso que as organizações da ASA têm dialogado no sentido de que é preciso ter um olhar diferente para as famílias que vivem no semiárido. É preciso ter investimento público e políticas públicas que possam garantir o acesso delas. Este não é o momento de diminuir o investimento público. Pelo contrário, é o momento de reunir a sociedade, de mobilizar, de entender que é necessário que as políticas públicas precisam ser ampliadas e possam, de fato, garantir acesso à água, ao trabalho, à alimentação digna, para que as pessoas possam construir uma vida digna no semiárido.

 

 

IHU - Que balanço faz do Programa Um Milhão de Cisternas? Em que pontos ele poderia ser aperfeiçoado?

 

Marcos Jacinto de Sousa – O balanço que se faz do Programa Um Milhão de Cisternas é muito positivo porque ele mudou a realidade do semiárido brasileiro e contribuiu de forma significativa para a melhoria da qualidade de vida das famílias. É o programa que tirou a lata d’água da cabeça das mulheres, principalmente daquelas que precisavam andar quilômetros e quilômetros por dia para conseguir buscar água para que sua família tivesse para beber e preparar os alimentos, carregando latas na cabeça ou no lombo do animal.

É um programa que trouxe uma tecnologia social que, junto com as famílias, construiu a possibilidade de cidadania. É um programa que tem garantido às famílias do semiárido maior segurança alimentar e nutricional a partir da produção dos alimentos na própria comunidade e nas propriedades das famílias, onde elas, de forma autônoma, produzem seus alimentos. Isso também gera renda porque as famílias comercializam o excedente em feiras comunitárias, municipais, em programas como o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, e nos mais diversos espaços de comercialização que as famílias têm construído. O programa também levou água de qualidade para a maioria das escolas a partir das cisternas escolares, onde as crianças e os jovens têm acesso à água e à alimentação de qualidade.

 

 

Além disso, o programa permite um diálogo muito forte sobre a educação contextualizada, a educação que olha para o semiárido, para as suas potencialidades e dialoga com o mundo. O programa trouxe um debate sobre o resgate e a valorização das sementes crioulas, nativas e históricas da região semiárida como patrimônio genético das famílias agricultoras e dos povos que aqui vivem. Ao longo de quase 20 anos de execução, ele tem de fato garantido acesso à água e garantido, às comunidades rurais e famílias, o diálogo sobre os seus direitos, sobre aquilo que é essencial para construir um semiárido mais sustentável e melhor para todos.

A nossa avaliação é que o programa precisa ser aperfeiçoado no sentido de chegar a todas as famílias que ainda não têm acesso à água potável a fim de garantir que elas possam ter acesso também a outros programas e políticas que são fundamentais para o semiárido brasileiro.

 

 

IHU - Que tipo de políticas complementares são fundamentais hoje para enfrentar os problemas do semiárido?

 

Marcos Jacinto de Sousa – Além do acesso à água de qualidade para consumo humano e produção de alimentos e demais atividades que são necessárias na vida das famílias do semiárido, defendemos que as famílias tenham acesso a outras políticas que são fundamentais para que tenhamos um semiárido mais povoado, com vida e desenvolvimento.

Nesse sentido, é fundamental dar continuidade ao debate sobre o acesso à terra, tendo em vista que um percentual muito significativo de famílias que vive no semiárido ainda não tem acesso à terra para garantir a moradia nem para conseguir trabalhar. Também achamos fundamental aperfeiçoar e garantir o acesso das famílias a um programa de acesso a crédito, para que elas possam ter condições de comprar equipamentos necessários e investir no custeio e em insumos para produzir os alimentos. É fundamental uma política de assessoria técnica qualificada, que dialogue com a realidade do semiárido para que as famílias também tenham suporte para qualificar a sua produção e trabalho no meio rural. Também é necessário ampliar as políticas de comercialização dos produtos da agricultura familiar. Tivemos um período muito significativo com investimentos públicos no PAA e no PNAE e hoje vemos esses dois programas praticamente paralisados. Eles são estratégicos para a agricultura familiar porque, por um lado, compram a produção e, de outro, distribuem os alimentos para as populações vulneráveis.

A ASA acredita que o semiárido é um espaço vivo, forte, no qual as pessoas têm conhecimento, resistem e é possível e necessário pensar em um semiárido melhor para todos. Para isso, é fundamental ter investimento público, colocar as populações do semiárido no orçamento e ter políticas públicas que dialoguem com a realidade e possam contribuir com a melhoria de vida do nosso povo.



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