03 Janeiro 2024
"Salvaremos a democracia matando-a", sentencia Massimo Cacciari, filósofo italiano, em artigo publicado por La Stampa, 02-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Muito dificilmente a navegação pelo novo ano nos permitirá alcançar algum porto onde ao menos consertar os nossos navios. Nenhuma das tempestades atravessadas parece perto de terminar. Ou, melhor dizendo, o mundo histórico praticamente sempre esteve no meio de tempestades, são os timoneiros que conseguem dar conta do desafio, fato que há algumas décadas desapareceu dos nossos horizontes. Quem contém, quem refreia os “apetites naturais” das grandes potências econômico-financeiras?
O assalto à Mãe Terra, aviltada como mero depósito de matérias-primas? As vontades hegemônicas de antigos e novos espaços imperiais? Só vale uma fé, ou melhor, uma superstição: que a interdependência econômica e a rede de interesses que ela determina sejam tais a impedir motu próprio cada catástrofe global, e que a Tecnologia seja capaz de resolver tecnicamente os problemas que o seu próprio desenvolvimento produz. É ilusão que a Economia e a Tecnologia tenham dentro de si, por graça divina, servomecanismos e automatismos tais a permitir a regulação da vida política. Isso nunca é verdade, muito menos num mundo em que, para citar Lord Keynes, as finanças assumem o domínio, e o desenvolvimento de um país ameaça transformar-se no subproduto das atividades de um cassino.
Temo que em 2024 se imporá em termos ainda mais dramáticos o problema sobre o qual pelo menos desde o início do novo milênio deveríamos orientar a nossa inteligência e a nossa vontade. As democracias ocidentais saberão enfrentam os efeitos da nova "grande transformação", que é ainda mais cultural-antropológico do que técnico-científica? Que forma de democracia saberá fazer isso? As respostas tentadas oscilam entre tomadas de decisão improvisadas, que se limitam a fortalecimentos de fachada do poder dos executivos e, do lado oposto, brados contra a voracidade dos Estados, apelos ao “Estado mínimo”.
Comicamente, às vezes os dois opostos se integram e então nascem híbridos caseiros. O que é certo é que uma democracia eficaz hoje só pode ser concebida em termos supranacionais, como uma grande federação ou confederação, fundada no princípio da subsidiariedade. Se continuarmos a perseguir modelos centralistas, essencialmente herdeiros das estatolatrias do Moderno, arruinaremos também aquele pouco ou muito de integração entre os estados europeus que se realizou até agora. Acreditamos que o vício congênito das nossas democracias seja aquele de reduzir o poder soberano ao mínimo possível sem chegar ao ponto de destruí-lo? E então, acreditando curá-lo, multiplicaremos aparatos, controles, burocracias, normas até determinar um perpétuo estado de exceção; o poder pertencerá ao seu sistema e demos se tornará sinônimos de multidão disforme de consumidores obedientes, perdendo totalmente o significado ativo, jurídico e político que o termo tinha. Salvaremos a democracia matando-a.
Em relação a duas questões primordiais veremos que caminho tomarão as nossas democracias. A primeira diz respeito ao seu papel na revolução das relações sociais de produção que já está produzindo "a inteligência artificial". A discussão na arena política concentra-se agora quase exclusivamente sobre as possibilidades de regulação ex ante ou em torno dos limites da sua aplicação. É uma visão minimal, essencialmente conservadora. A grande pergunta é de natureza completamente diferente: acreditamos ou não, que essa revolução possa levar à inversão do destino que marcou a nossa história, o destino do trabalho como pena, como esforço, como dura necessidade? E então o crescimento extraordinário de produtividade e riqueza que a nova tecnologia permite deve valer como bem comum, permitir a cada um ser ativo de acordo com seus desejos e as suas capacidades, e não de acordo com as regras de um mercado, que esta mesma tecnologia torna obsoleto. Esse é pensamento estratégico, e não vaga utopia. Essa é estratégia política capaz de libertar também a criatividade da pesquisa científica de seu ser meramente assumida e empregada pelas “leis” do mercado e do lucro. Esperemos que o novo ano traga uma nova compreensão do problema. E esperemos que se perceba a ligação entre ele e os conflitos e as tragédias geopolíticas que não conseguimos interromper.
Não haverá paz, em nenhum sentido do termo, enquanto prevalecer a lógica da imposição, até que, dentro de qualquer sistema de relações, for a vontade de poder e de hegemonia a ditar as regras. Quer se trate da imposição pela qual o trabalho continua a ser comandado e dependente, ou daquelas "leis econômicas" segundo as quais se multiplicam as desigualdades, ou por fim da tendência "natural" dos impérios para um governo monárquico desta Terra, que está se tornando cada vez mais estreita. Não haverá paz enquanto as contradições e diferenças entre nós, os conflitos e a competição que são fatores essenciais da própria vida, forem entendidos e praticado no sentido da aviltação, da submissão, se não mesmo da aniquilação do outro. O conflito deve coexistir com a escuta das razões uns dos outros e o reconhecimento mútuo. Não porque somos “bons”; aqui ninguém é "bom". Mas porque somos animais dotados de alguma razão, e sabemos, ou deveríamos saber por experiências dolorosas, a que levam as guerras planetárias pela hegemonia e, como sempre, no final, mas por meio de que tragédias, os súditos do passado derrubam aquele que pretendia ser o indiscutível senhor. A história conhece grandes ciclos.
O Ocidente e as suas democracias só podem durar no novo se mostrarem ao mundo que são o espaço para o livre atuar de cada um e onde a própria felicidade do indivíduo está inextricavelmente ligada à busca do bem-estar universal.
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Só uma visão supranacional pode salvar as democracias. Artigo de Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU