07 Junho 2021
"Dentro da OMC, a Europa apoia a necessidade de cautela porque o processo de fabricação das vacinas é mais complexo do que o de medicamentos, exceto depois impedir o acesso ao conhecimento necessário por parte das empresas, existentes em várias partes do mundo, para que possam iniciar a produção das vacinas", escreve Nicoletta Dentico, jornalista e analista sênior de políticas em saúde global e desenvolvimento, que atualmente lidera o programa de saúde global da Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), em artigo publicado por Il Manifesto, 06-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Tendo em vista a reunião de 8 e 9 de junho na Organização Mundial do Comércio (OMC): "A very shameful proposal", uma proposta verdadeiramente vergonhosa. Não fica atrás a Brook Baker, do Public Citizen, que definiu o documento europeu como "a corpse", um cadáver. Em primeiro lugar, surge a questão de saber se os redatores do documento alguma vez leram o texto do Acordo TRIPS sobre a Propriedade Intelectual. Ao que parece, não. Bruxelas introduz, como novas propostas, cláusulas já incluídas no tratado TRIPS há 25 anos. Como alternativa à suspensão de alguns artigos do TRIPS sugeridos pela Índia e África do Sul, a proposta europeia se delonga sobre as licenças compulsórias, mas ignora que os governos já podem autodeterminar as circunstâncias em que derrogar as patentes, e que as negociações com as empresas são não necessárias para o uso governamental de um produto farmacêutico se houver um emprego público e não comercial voltado para a solução de problemas de saúde (Art. 31 e 31bis).
O mesmo ocorre quando um governo intervém para deter um abuso de posição dominante - o que a Itália fez duas vezes em 2005, com licenças compulsórias contra a Glaxo e a Merck para alguns princípios ativos, e depois contra a Merck para o antibiótico Imipenem Cilastatina. Em suma, a descoberta da água quente. No entanto, as licenças obrigatórias aplicam-se apenas às patentes e constituem uma fórmula completamente insuficiente, dado que, para produzir vacinas, é necessário derrogar a outros direitos de propriedade intelectual: know-how, segredos industriais, processos, dados clínicos.
Dentro da OMC, a Europa apoia a necessidade de cautela porque o processo de fabricação das vacinas é mais complexo do que o de medicamentos, exceto depois impedir o acesso ao conhecimento necessário por parte das empresas, existentes em várias partes do mundo, para que possam iniciar a produção das vacinas. Em um relatório recente realizado com o Imperial College London, o Public Citizen projeta a possibilidade de desenvolver centros regionais para a produção de 8 bilhões de vacinas baseadas em tecnologia mRNA em menos de um ano. Isso permitiria superar a economia da escassez dominante no cenário atual, tão benéfica à hegemonia e aos cofres da Big Pharma. A proposta de Bruxelas é cadavérica porque, com uma perigosa coação à repetição, prolonga a política patológica da subserviência à indústria com a qual a UE negociou contratos com as empresas farmacêuticas em 2020. Muito se tem escrito sobre as externalidades negativas que a incompetência dos governos europeus gerou naquela delicada fase de gestão da pandemia.
A própria presidente da Comissão Europeia reconheceu erros de abordagem e omissões. Mas agora voltamos novamente ao tema, e em escala global. A UE convida a comunidade internacional a proporcionar novos incentivos e financiamento às empresas, em nome de uma “forte resposta comercial multilateral” à pandemia, com acrobacias de facilitações comerciais para que a indústria aumentar a produção de vacinas contra COVID-19. Desde que os monopólios de propriedade intelectual não sejam tocados. A proposta da UE dá corpo às posições impostas na cúpula sobre a saúde global do G20 pelos dribles entre Ursula Von der Leyen e Angela Merkel, e à Declaração de Roma com a qual o G20 pretende coordenar a resposta à pandemia por meio de investimentos maciços para induzir as indústrias a fazer o que se recusaram a fazer até agora: as licenças voluntárias.
Assim se configura o grande império da “terceira via”, que agrada à diretora da OMC. A pedra angular da negociação é a manutenção do monopólio da propriedade intelectual. Ironicamente, o número de países dispostos a negociar o texto revisado pela Índia e pela África do Sul está crescendo, como foi visto no encontro informal do Conselho dos TRIPs em 31 de maio com os EUA, Japão, Nova Zelândia e Grã-Bretanha. A Europa permanece entrincheirada em um doente colonialismo sanitário. Sua proposta é uma jogada habilidosa para atrasar qualquer disposição diplomática e confundir todos - parlamentares, imprensa e opinião pública - sobre o que fazer.
Na próxima semana, o Parlamento Europeu terá de votar a proposta de isenção da Índia e da África do Sul. Existe um sério risco de que o truque narrativo da proposta funcione com muitos eurodeputados, enquanto o poder de fogo da indústria farmacêutica sobre a UE tem campo livre - 290 lobistas e 36 milhões de euros por ano, adverte o Corporate Europe Observatory. No mais, as decisões do Conselho Europeu e da Comissão não levaram até agora em consideração as iniciativas e as decisões parlamentares. A Itália não é exceção. Nem o governo Conte, nem o governo Draghi se preocuparam em cumprir as obrigações de duas resoluções parlamentares (em dezembro de 2020 e março de 2021) que obrigam o país a promover a proposta da Índia e da África do Sul em nível europeu. Nada aconteceu. Uma violação democrática que corta a respiração.
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A UE confirma os monopólios sobre as vacinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU