04 Março 2019
O padre jesuíta John O’Malley apresentou uma história muito necessária e muito informativa em seu livro “Vatican I: The Council and the Making of the Ultramontane Church” [Vaticano I: O Concílio e a construção de uma Igreja ultramontana, em tradução livre] (Harvard University Press)
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 01-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando lemos a palavra “pós-conciliar”, assumimos que o escritor se refere a depois do Vaticano II, mas o livro de O’Malley mostra as muitas maneiras pelas quais a Igreja que conhecemos ainda é muito moldada pelo Concílio Vaticano I, não apenas pelo Concílio Vaticano II. Em outras palavras, a Igreja moderna ainda é, de certa forma, uma obra dos reacionários.
Reprodução da capa do livro de O'Malley
Reagindo a quê? O’Malley começa com um longo olhar para o século XVIII e a primeira metade do século XIX, e para a série de eventos e movimentos que “desafiaram os próprios fundamentos sobre os quais a Igreja e a sociedade repousavam desde tempos imemoriais”. Esses eventos e movimentos serviram de prelúdio ao ultramontanismo.
O primeiro e mais duradouro desses desafios foi o Iluminismo, em que “a modernidade não era simplesmente uma designação do atual estado das coisas, mas sim uma ideologia”. Voltaire não apenas instou seus contemporâneos a serem contemporâneos. Seu grito de batalha era “Ecrasons l’infâme” – esmaguemos a infame, a Igreja. Nem todos os pensadores do Iluminismo eram tão extremos, mas o compromisso com um entendimento muito restrito do racionalismo, inflado pelo orgulho da realização científica, tendia – e ainda tende – a expulsar e a desvalorizar um modo menos materialista e mais espiritual de entender o enigma humano, um modo católico de entendimento.
O segundo desafio foi mais antigo e diferente. O galicanismo, no qual as autoridades eclesiásticas locais exerciam o controle definitivo sobre a Igreja, como uma ideologia específica, foi uma sobra do século XVII, mas também foi, em certo sentido, um fenômeno para toda a Igreja durante a maior parte da sua história. Apelar a Roma levava muito tempo, e muitas, até mesmo a maioria, eram tomadas localmente. Roma funcionava como uma última corte de apelações, mas os papas naqueles anos não publicavam encíclicas regularmente que tomavam uma iniciativa no ensino da Igreja como começaram a fazer no século XIX.
Os teólogos procuraram entender os arranjos, e a observação de Jacques-Bénigne Bossuet no século XVII – “É, portanto, a autoridade plena e suprema e universal da Igreja Católica que supre o que falta até mesmo na Igreja Romana” – se tornaria um grito de batalha no século XVIII e além.
O febronianismo era o galicanismo na Alemanha, depois que um bispo local publicou um livro sob um pseudônimo que discordava da “interferência injustificada nos assuntos da Igreja local” por parte do núncio papal. E, na Áustria, o fenômeno assumiu o nome do imperador que exigia reformas da Igreja Católica no seu reino. “Muitas das reformas de José eram muito necessárias, embora nem sempre no escopo empregado pelo imperador”, escreve O’Malley sobre o josefismo. “A Igreja era rica e desfrutava de privilégios que, às vezes, faziam mais mal do que bem. Ela se deparava com muitos procedimentos antiquados e com instituições que perdiam vitalidade e contato com uma cultura em rápida evolução.”
O’Malley não cita o famoso e degradante veredito de Frederico, o Grande, sobre o emaranhamento do imperador nas reformas eclesiais, mas eu vou citá-lo: ele chamou o imperador austríaco de “meu irmão sacristão”.
Esses impulsos nacionalistas também visavam os jesuítas, defensores da autoridade romana. Os jesuítas foram expulsos de todos os reinos dos Bourbon, e, no fim, a ordem foi suprimida pelo Papa Clemente XIV em 1773. Uma das aquisições da minha biblioteca é uma pequena e muito lisonjeira biografia de Clemente XIV em francês, publicada em 1775 “avec approbation du Roi” (com a aprovação do rei).
O irmão de José, Leopoldo, tinha instintos semelhantes e patrocinou o infame Sínodo de Pistoia, em 1786. O sínodo adotou reformas radicais que eram terrivelmente impopulares com o povo, bem como com o papa. Uma mobilização se formou para proteger algumas das relíquias que os reformadores queriam expulsar. E o Papa Pio VI condenou o sínodo em sua bula Auctorem Fidei, de 1794.
Como observa O’Malley, um sinal de como o papado estava fraco nesse ponto é que a bula papal foi recusada na Áustria, Toscana, Nápoles, Turim, Veneza, Milão, Espanha, Portugal e na Igreja Constitucional da França.
Outra fonte de fervor antipapal veio dos jansenistas, que também tinham uma longa contenda com os jesuítas. Aqui, O’Malley comete um dos únicos erros que encontrei no livro, e “erro” pode até ser uma palavra muito forte. Digamos que é uma simplificação enganosa. Ele escreve: “As condenações tanto da Igreja quanto do Estado ajudaram a transformar os jansenistas em defensores da liberdade de consciência, pois eles reagiam contra líderes que consideravam tirânicos e sem princípios”.
Houve um famoso e controverso “Caso de Consciência” em 1701, na qual os jansenistas defenderam a consciência, mas essa foi a exceção que provou a regra. E, nesse caso, eles estavam errados, e até o cardeal Louis-Antoine de Noailles, que tinha fortes tendências jansenistas, tomou partido contra eles nesse famoso caso.
Não sou especialista na história do jansenismo, mas lembro que foram os jesuítas que defenderam a liberdade humana e os direitos da consciência diante dos ataques jansenistas. Dois livros estão ausentes da bibliografia de O’Malley que eu acho esclarecedores sobre esses assuntos, "Church, Society and Religious Change in France, 1580-1730" [Igreja, sociedade e mudança religiosa na França, 1580-1730], de Joseph Bergin, e "Saint Cicero and the Jesuits: The Influence of the Liberal Arts on the Adoption of Moral Probabilism" [São Cícero e os jesuítas: a influência das artes liberais na adoção do probabilismo moral], de Robert Aleksander Maryks.
Eu não culpo O’Malley por não ter perseguido a questão da consciência nesse momento da sua narrativa. Isso teria implicado uma distração divergente. Mas o leitor não deve pensar que um incidente em 1701 dá aos jansenistas uma reivindicação legítima de se passarem por defensores da consciência.
O’Malley é o tipo de historiador que não só pode discernir a visão ampla nos detalhes, como também evita algo que ele acha que é feito com demasiada frequência: a análise anacrônica (eu também acho). Este parágrafo deve ser copiado e distribuído em todos os departamentos de história de todas as universidades do país:
“Os historiadores se esqueceram por muito tempo de que os valores e as perspectivas que associamos ao Iluminismo se desenvolveram na França, na Itália, na Áustria e em países semelhantes dentro de ambientes fundamentalmente católicos, simplesmente como parte do ar cultural que as pessoas respiravam. Os valores e as perspectivas, que nem sempre eram coerentes entre si, não eram a abstração que chamamos de Iluminismo, mas sim questões e assuntos discutidos e debatidos nos círculos de elite à medida que se tornavam proeminentes. Eles se desenvolveram, além disso, em um ritmo gradual e de modo paulatino ao longo de décadas e foram gradual e paulatinamente apropriados ou não pelos fiéis, que ainda eram a grande maioria naqueles países. Em parte por essa razão, a incompatibilidade do catolicismo com pelo menos alguns aspectos do Iluminismo só se tornou uma questão aguda depois de meados do século XVIII.”
Isso é simplesmente esplêndido. Mais importante, é profundamente verdade.
“O galicanismo (e suas contrapartes), o jansenismo, um nacionalismo nascente e o Iluminismo” foram os quatro “movimentos distintos [que] estavam muito em voga” às vésperas da Revolução Francesa. A década de 1790 testemunhou os horrores dessa revolução e terminou com o papa morrendo em custódia a caminho de Paris. O conclave para eleger seu sucessor teve que ser realizado em Veneza, sob a proteção do Sacro Imperador Romano. O novo papa, Barnabo Chiaramonti, tomou o nome de Pio VII e seria um dos grandes papas de todos os tempos, buscando uma reaproximação com Napoleão, mas, quando suas reivindicações sobre a Igreja se tornaram muito grandes, Pio resistiu e fez mais do que ninguém no continente. Ele emergiu do conflito napoleônico amplamente respeitado, e, lamentavelmente, esse respeito, combinado com as necessidades políticas das grandes potências, resultou no retorno dos Estados Pontifícios, um fato que só iria prejudicar o papado.
Mas Pio e seus contemporâneos não conseguiam ver isso. Para os papas do século XIX, sua independência política era vista como garantia de sua liberdade espiritual. Essa é uma das grandes ironias da história da Igreja, que somente com a perda dos Estados Pontifícios o papado pôde controlar efetivamente a Igreja universal de um modo inimaginável até então.
Além disso, as forças de reação – e os anos de conflito sangrento deram uma ampla garantia para reagir – não apenas repudiaram o bonapartismo ou a Revolução. Esses quatro movimentos distintos que desafiaram o papado antes da Revolução também eram vistos como inimigos da ordem social e da verdade religiosa. Enquanto a Europa se aquietava superficialmente após o Congresso de Viena, esses movimentos continuavam a se agitar, mas, nos círculos da Igreja, surgiu uma resposta singular a todos eles: o ultramontanismo. E, em Joseph de Maistre, esse contramovimento reacionário logo encontrou seu defensor e provocador.
Concluirei esta minha resenha na segunda-feira, 4 de março.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Vaticano I e os movimentos pré-conciliares que ameaçavam a Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU