25 Abril 2018
Conhecido por sua atuação pela garantia dos direitos constitucionais de indígenas e quilombolas na Amazônia, Felício Pontes diz que poder Judiciário, embora ainda em transição, é a principal barreira contra retrocesso ruralista.
A reportagem é de Marina Amaral, publicada por Agência Pública, 24-04-2018.
O procurador Felício Pontes recebeu a Pública em março passado para conversar sobre a questão indígena e a Justiça. Leia abaixo os principais trechos dessa conversa.
Em um governo onde os ruralistas dão as cartas na política indigenista, com retrocessos a olhos vistos, a Justiça é a última esperança dos povos indígenas?
Aqueles que são contra o avanço socioambiental que o Brasil teve, sobretudo nos últimos 20 anos, hoje estão no poder, tanto no Executivo como no Legislativo. Então, dentro do sistema de estado de direito que o Brasil está constituído, a única forma de se evitar o retrocesso é o Judiciário. E, de uma certa forma, a gente pode dizer que ele está exercendo bem esse papel. E eu dou dois exemplos que poderiam ser desastrosos do ponto de vista dos direitos constitucionais. Primeiro, em relação à causa indígena. O estado do Mato Grosso ajuizou uma ação dizendo que o Parque Indígena do Xingu, hoje TI do Xingu, foi usurpado do patrimônio do Estado, então o Estado queria essa área de volta ou indenização. E, no ano passado, o Supremo disse que, o que vem primeiro, o direito originário, é dos índios. Antes da formação do Estado brasileiro, do estado do Mato Grosso, as terras eram indígenas, e esse direito originário deve prevalecer; quando o Estado se intitulou dono e vendeu essas terras aos produtores de soja, o erro foi do Estado, que deveria ter visto antes que as terras eram indígenas. Com isso se freou uma iniciativa que estava vindo muito forte, e capitaneada pelo governo federal, no sentido de fazer redução de terras indígenas ou até de extinção de algumas delas. E essa decisão do Supremo sinaliza que esses retrocessos não virão tão fácil. O outro exemplo é em relação aos quilombolas. Havia uma ADI proposta pelo PFL, hoje Democratas, questionando a constitucionalidade do decreto que estabelece as regras para o processo de demarcação e titulação das terras quilombolas. E, em fevereiro deste ano, o Supremo, por 10 votos a 1, declarou a constitucionalidade do decreto. Há vários outros exemplos, mas esses são paradigmáticos para nós, mostrando que todo esse movimento no Executivo e no Legislativo, contra os direitos das comunidades tradicionais, contra a agenda ambiental, acaba tendo uma reação do Judiciário, que é de evitar o retrocesso. Portanto, ao menos nesse cenário, o Judiciário é, sim, a esperança.
Por outro lado, os movimentos sociais se queixam de que quando há conflitos com fazendeiros, invasões de terra, os processos demoram muito, às vezes nem sequer os crimes são investigados com imparcialidade.
Um problema geral é na apuração desses crimes. A polícia que normalmente investiga esses crimes é a polícia do Estado, e essa polícia é subserviente ao governador. Então se temos, e temos, na maioria dos estados, governos contrários a reivindicações de quilombolas, indígenas, trabalhadores rurais, normalmente a polícia também vai fazer o mesmo papel. Basta você não promover uma polícia adequada e estimulada a combater esses crimes que eles não vão ser combatidos. Então a grande maioria desses processos chega ao Judiciário sem possibilidade de se fazer um julgamento justo, de saber quem são os verdadeiros autores desses crimes. E aí também se esbarra em um segundo problema, que também é um problema nacional, que é a morosidade da Justiça. O processo judicial brasileiro precisa de uma reforma total, ele é muito burocrático, muito lento, permite muitos incidentes que fazem com que não se chegue a um resultado final num curto espaço de tempo. A conjugação desses dois fatores, um mais político e outro jurídico, faz com que se tenha essa impunidade sobretudo em relação a índios, quilombolas, trabalhadores rurais.
Os índios denunciaram na ONU o racismo do Congresso brasileiro. Eles disseram que, além da cobiça pelas terras indígenas, há um preconceito dos parlamentares brasileiros contra os indígenas que contribui para a pauta do retrocesso. O senhor acha que tem esse componente racista também no Judiciário?
Os juízes também estão sujeitos a mesma doutrinação, às informações que formam as pessoas no Brasil. E nós vivemos durante quase todo o século passado sob a égide da doutrina do integracionismo ou do assimilacionismo. Essa doutrina dizia que o indígena deveria ser paulatinamente integrado à comunhão nacional, à sociedade dominante. Esse era o artigo primeiro do Estatuto do Índio, que até hoje está em vigor – não esse artigo, mas o estatuto está em vigor –, e é interessante perceber que no final do dispositivo o legislador dizia assim: “Para que pudesse ser preservada a cultura”. Como você vai integrar preservando a cultura? Uma coisa se choca com a outra.
Integrar significa tirar de uma cultura e colocar na cultura dominante daquele país. E, quando se faz isso, há impacto sobre religião, cultura, relações familiares – por exemplo, algumas etnias são poligâmicas e isso não é aceito na sociedade dominante –, enfim você tem uma série de atos culturais que são aniquilados na hora que você integra os indígenas à sociedade dominante. Essa doutrina estava nos livros que todos nós estudamos. Então nós temos muitas gerações, tanto nas escolas básicas como nas faculdades de direito, ouvindo que o índio não presta, que a cultura do índio não tem valor. Isso só vai ser quebrado juridicamente com a Constituição de 88, que reconhece aos índios sua cultura, suas tradições, as terras têm que ser demarcadas. O artigo 231 é uma declaração de direitos dos povos indígenas. Essa nova doutrina que chega em 1988, que eu chamo de doutrina da autodeterminação ou do pluralismo, vai dizer exatamente o contrário: o Brasil é um país pluriétnico, e multicultural, é isso que faz a beleza da gente ser o que é. É isso está na lei. Para que seja incorporado pela sociedade brasileira, você precisa de tempo também. Porque é uma mudança de pensamento, uma ruptura total com o que vinha antes. E eu vejo muito claramente que o país está em um momento de transição: essa doutrina nova ainda não foi incorporada e a velha não saiu totalmente. Isso se reflete por completo na sociedade brasileira. Então nós vamos ter pessoas no Estado brasileiro que, na sua atuação, já se deram conta de que há uma nova doutrina e já se colocaram a serviço dessa nova doutrina, e temos outros que ainda resistem. Essa nova doutrina diz que as minorias brasileiras são donas do seu próprio nariz, e o direito à consulta prévia, é fruto dessa nova doutrina. Indígenas e quilombolas têm que ser consultados toda vez que um empreendimento, ou uma legislação, os afetar diretamente. E saber exatamente as consequências que pode acarretar.
E essa consulta prévia, como diz o nome, tem que ser feita antes do EIA, antes de qualquer tipo de licença…
Exatamente. Nós temos duas legislações que mostram bem a aplicação dessa nova doutrina. O artigo 215 da Constituição e a Convenção 169 da OIT. Esta é taxativa: ela diz que, antes dos primeiros atos, de pensar no empreendimento, a ideia tem que ser levada para consulta prévia dos povos atingidos. E aí não só os povos indígenas – a convenção fala povos indígenas e tribais, ou seja, povos e comunidades tradicionais, como quilombolas e todos aqueles que têm um modo de vida diferenciado em relação à sociedade dominante.
Com tudo isso, a gente teve Belo Monte, Teles Pires, Santo Antônio e Jirau…
Exatamente, por isso que eu acho que a gente está em um momento de transição. Em Belo Monte, na maioria das ações que nós propusemos, nós ganhamos no mérito. Já na segunda ação, exatamente sobre a consulta prévia, ganhamos porque disseram: “Os índios tinham que ser consultados aqui”. Mas ao mesmo tempo utiliza-se um instituto jurídico do tempo da ditadura militar – a chamada suspensão de segurança – que suspende essa decisão até o trânsito em julgado, ou seja, até o final do processo, quando chegar no Supremo.
Então, a consulta prévia acaba sendo pós, quando já se fez o empreendimento.
Isso mesmo. Veja como revela bem esse momento de transição. A corte, por um lado, diz que é essa doutrina nova que está em vigor e o presidente do tribunal vai dizer que não, que é preciso de energia para desenvolver o Brasil. Essa contradição acontece dentro da mesma corte, do mesmo tribunal. Enquanto essa nova doutrina não é completamente incorporada, tem esse vaivém. Por exemplo, perdemos em Belo Monte; mas ganhamos no mérito e perdemos em suspensão de segurança, nos casos de Teles Pires e São Manoel, são duas hidrelétricas na divisa do Pará com Mato Grosso. Logo em seguida, o governo tenta a usina de São Luiz de Tapajós, nós ganhamos. Mudou alguma coisa no argumento que nós utilizamos? Não. O Judiciário foi incorporando a nova doutrina.
Mas isso traz insegurança, não é? Ainda há receio de que o governo consiga a aprovação de São Luiz no Judiciário, ou de Belo Sun, a extração de ouro que seria realizada também ali no Xingu. Quanto tempo vamos esperar para que essa legislação se consolide na prática do Judiciário?
Ela vai se consolidando a cada nova decisão. Da usina de São Luiz de Tapajós para cá, ainda não teve retrocesso. E neste momento político, que se está vivendo uma reação tão forte do Congresso e do Executivo, o Judiciário se mostra mais receptivo à voz dos indígenas, dos quilombolas e das comunidades tradicionais.. Por isso, eu digo que o Judiciário é a nossa tábua de salvação para que o retrocesso não se estabeleça.
Você falou sobre os problemas de investigação de crimes pelas justiças estaduais. Mas invasão de terra indígena, que encontramos em diversas de nossas apurações em campo, não é um crime federal?
Sim, sim. Mas a maioria das invasões em terras indígenas está judicializada. Normalmente tem algum título, ainda que seja grilado, que é apresentado.
Mas e quando quem invade é o crime organizado? Madeireiros, garimpeiros associados ao poder local, como acontece, por exemplo, nas terras Munduruku e Ka’apor.
Aí a gente esbarra em um problema que tem acontecido mais forte nos últimos tempos, que é o desmanche do Estado – o Estado não está presente para garantir a segurança nesses lugares. Então, quando você tem uma ausência do Estado e um conflito entre fazendeiros e madeireiros de um lado e indígenas ou quilombolas do outro, vigora a lei do mais forte. E o mais forte nesse caso não é indígena nem quilombola. Nós temos sentido muito uma diminuição da presença do Ibama, do Incra e da Polícia Federal nesses conflitos. Há cinco anos a presença era muito maior. Esse é um problema gravíssimo, de desmanche do Estado, que ele acaba deixando a população indígena, ou de reservas extrativistas, por exemplo, muito mais vulneráveis. Tem componentes da crise econômica, claro, mas não foi só isso. Se tivesse vontade política do governo, nós não teríamos esse índice de violência. Se houvesse vontade política, mesmo com o orçamento reduzido se poderia redirecionar alguns serviços dentro da Funai e manter pelo menos os postos de vigilância nos lugares mais críticos. A Funai deixou terras completamente desprotegidas, e algumas delas, o que é mais grave ainda, são áreas de índios isolados, onde qualquer coisinha pode descambar para um genocídio.
Ou seja, é proposital.
Se você leva em conta o discurso da bancada ruralista no Congresso, que é a grande força de sustentação política do governo, vê que faz sentido o desmanche da Funai. Esses parlamentares deixam claro que eles não querem mais terra indígena demarcada. O parecer número 001 da AGU, que para mim é completamente inconstitucional, transforma em norma jurídica aquela voz dos ruralistas no Congresso e paralisa a Funai.
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Judiciário é tábua de salvação de direitos indígenas, diz procurador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU