17 Agosto 2017
Sete horas. Um cais. Agora as coisas e o céu assumem alguma cor, não esplendor. Na extremidade da grande curva de terras amarelas, palmeiras esbeltas, que durante todo o dia pareciam se dissecar, lentamente voltam à vida. Dois barcos pesqueiros cruzam vagarosamente na nossa frente. Alguns navios grandes, imóveis, parecem encastoados na dura superfície da baía. O mar parece uma lagoa tão densa que apenas balouça. A Migração, no final, é história de mar. Nessas praias é preciso chegar; eles para partir, e nós para entender. Uma ideia vaga surge em minha mente: este verão da Líbia é um verão ruim, um verão que vai mal. Ninguém confessa a si mesmo que a guerra contra os migrantes não se assemelha a nada, que nada faz sentido, que não se encaixa em nenhum esquema, que temos a ilusão de puxar solenemente cordéis que já não estão ligados a marionete alguma.
A reportagem é de Domenico Quirico, publicada por La Stampa, 15-08-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por exemplo, sabemos que as regras da "viagem" no Mediterrâneo mudaram? E que isso foi impostos por eles, os migrantes? Eles já não procuram mais o contrabandista diretamente, pagam e partem, confiando sua sorte a Deus. Não confiam mais: mortos demais, naufrágios demais, enganos demais. Agora eles têm um mediador, também líbio, que reúne os grupos, marroquinos, senegaleses, eritreus, recolhe o dinheiro e o mantém em custódia. Paga o contrabandista apenas quando um telefonema do migrante confirma sua chegada à Itália ou que está em segurança em um navio de resgate. Seguro de viagem.
Para os contrabandistas é indispensável que os migrantes cheguem, e logo: é a única forma de receber o dinheiro. E isso talvez explique muitos mistérios: a procura pelos navios de organizações não-governamentais e outros.
Mahmud é o velho chefe dos pescadores. "A que hora sairão hoje à noite? A água está calma, entrarão rápido mar adentro". “Este mar parado não é nada bom, é um mar de migrantes não de pescadores – fala com irritação, como se fosse algo impróprio - é lua cheia, sob a superfície calma a corrente é forte, então não há peixes. Os botes, estes sim, sairão hoje à noite para ir rumo a terras italianas".
Mahmud conhece mil histórias. "Eu tive um barco com um líbio e três egípcios, procuravam peixe-espada, era preciso ficar no mar pelo menos por dois a três dias. Encontram um barco de migrantes em dificuldades que pedia por socorro. Eles pararam, lançaram o pedido de socorro, e aí chegou um de seus navios, armado, grande e gritaram em árabe "Fiquem parados ou vamos atirar em vocês". Prenderam todos, os meus pescadores, o barco e os migrantes, e os rebocaram para Lampedusa: "Vocês são contrabandistas – falaram ao meu pessoal - desta vez vocês vão pagar". Para conseguir trazê-los de volta, eles e o barco, demorou semanas de apelos e negociações, mas o peixe se foi, estava todo perdido. As nossas, agora, são águas de ninguém, tunisianos e italianos vêm pescar ilegalmente, escondendo-se atrás de seus navios, migrantes".
O que é verdadeiro e o que é falso, aqui na Líbia? As nossas soluções boas para todo mundo me parecem como aquelas ferramentas esquisitas que são ao mesmo tempo alicate, martelo e chave de fenda. Eu esperava em Trípoli barulho e indignação pela presença dos navios italianos e a volta do "colonialismo". Ninguém fala disso, a não ser em discursos politiqueiros. Na manifestação contra a Itália havia 40 pessoas, juntadas de última hora pela Irmandade Muçulmana. Trípoli tem 3 milhões de habitantes. Os líbios, no máximo, preocupam-se com a falta de eletricidade que dura seis, dez horas por dia, e com o seu dinheiro que fica guardado nos bancos. No mercado de ourives misturam-se sombras e maravilhas. Tenho um vislumbre de enfeites que parecem ter saído dos tesouros de Mecenas, tão vistosos que parecem falsos. Mas nenhum comprador. Os mercadores ficam sentados em seus bancos olhando para a rua. Assim que me enxergam, voltam seus olhos sobre os objetos nas prateleiras, sobre eles caem densos raios de sol, sutis, cheios de poeira dourada. Se, após ter passado por eles, eu olho para trás, vejo seu olhar me seguindo, pesado, ansioso: "Se vocês viessem aqui com um navio que distribuísse energia elétrica iriam se tornar os senhores da Líbia, esqueçam os navios de guerra".
As notícias que tomamos como verdadeiras assemelham-se a mitos que se propagam, de origem incerta? Al Sarraj é o nosso homem, a carta sobre a qual concentramos nossas apostas. Pois bem, em Trípoli só se ouve falar do "Velho": nos cafés, não ousam dizer o seu nome, não é prudente. Essas pessoas viveram 40 anos sob o governo de Gaddafi.
O Velho é o general Haftar, o homem de Tobruk, esperam que chegue logo, porque estão cansados das milícias e do primeiro-ministro com suas estratégias tortuosas: "É preciso um homem forte que ponha fim ao caos".
As palavras não correspondem à situação que estou vendo. "A estabilização da Líbia, graças a nós, melhora" anunciamos. Mas aqui, ao contrário, há uma guerra que não leva a lugar nenhum, é preciso começar desde início, toda vez. O perigo não reside em algum ponto específico, não tem forma, peso, nem cor. Está ali, neste país enorme, desproporcional, desajeitado por ser tão grande, neste país pior que desabitado, pouco e mal povoado. É um perigo disseminado, difuso, flutuante que escapa à percepção e, de repente, explode um algum ponto, fulminante.
Por exemplo, vou para Zawia e Sabratha, a apenas uma hora de viagem, onde estão as praias de embarque dos migrantes. Só é possível viajar durante o dia, à noite a estrada pertence aos bandidos, ou aos jihadistas, quem sabe. Há muitos postos de bloqueio, de dia, homens armados, em uniformes camuflados. Nossa definição é imediata: exército, polícia, segurança. Pensamos em oficiais, cadeias de comando, disciplina. Mas eles são milícias, homens armados de diferentes grupos, contratados pelo governo, mas que não respondem a ninguém. Superamos o primeiro posto de bloqueio sem sermos parados: a milícia está toda ocupada em cobrar algum pedágio de um caminhão. O segundo é em Zanzur, o vigésimo sétimo quilômetro, como se fala por aqui. Antigamente era um oásis com palmeiras densas como uma floresta de pinheiros e poços de onde a água era puxada por uma vaca ou um burro com os odres, um método mais antigo que Noé. Hoje, o oásis é apenas pó e casas dilapidadas, mais cinza do que verde.
Dois homens me pedem para descer do carro quando percebem que não sou líbio.
Seguram em suas mãos meu passaporte e a permissão que me foi dada pelos escritórios de Trípoli, virando-os e revirando-os: são analfabetos, para eles são pedaços de papel incompreensíveis. Um deles está claramente sob efeito de drogas, as palavras saem de sua boca amontoadas, sem nexo. Empurram-me para um container que serve como escritório e casa. Esvaziam meus bolsos, metodicamente; trouxe comigo poucos euros e algum dinheiro líbio, por prudência.
Dão risadas, empurram: conheço a cena, é preciso fingir-se de tonto, ficar calado, esperar pacientemente. Agora não depende mais de ti, nada depende. Desaparecem com a carteira em outra sala. Então me preparo. As relações com um país onde tentaram te matar são complexas, não evoluem. Eles voltam, devolvem minha carteira e me empurram para fora: ficou apenas o dinheiro líbio que não vale nada. Partimos novamente.
Os postos de combustível estão fechados ou tomados por filas intermináveis de carros em busca de gasolina. As milícias interceptam os carregamentos, compram o combustível pelo preço fixado por lei de um dinar por litro e depois o revendem no mercado paralelo. Um enorme ganho. A estabilização da Líbia.
Em Sabratha, eu e meu amigo líbio, procuramos por um conhecido, um ex-agente da polícia turística. Em um café que ele costumava frequentar perguntamos por ele, descrevemos sua aparência. Os olhos abaixam-se: "Foi morto pelos islamitas, cortaram sua cabeça". Histórias líbias parecem sem peso, a presença de uma pessoa desaparecida pode ser mais densa do que uma presença real.
A cidade parece intacta e viva. Um ano atrás, o EI fazia desfilar descaradamente pelas ruas suas picapes e suas negras bandeiras. Agora eles se retiraram para o interior, nas montanhas, esperando nossos erros. Nas lojas elegantes são exibidos luxuosos xadores e ‘burkinis’ para banhistas virtuosas. Junto à prefeitura cor de café com leite, montes de lixo e grama ressequida, o sol derrama sobre a poeira branca uma luz crua que quase obriga a fechar os olhos. Todos dirigem na contramão, sem prestar atenção às caminhonetes com metralhadoras abarrotadas de ruidosos jovens barbudos.
O prefeito Hasan al Dauadi é um homem jovem, à vontade em seu elegante barracano (roupa típica, ndt) cinza: "Os contrabandistas de pessoas são gente daqui, uma máfia organizada, poderosa, bem armada, eles têm barracões e casas onde escondem os migrantes. Talvez agora as partidas diminuam um pouco: a Itália não paga os líderes do tráfico e as milícias?".
As ruínas parecem intactas, o mar quebra sobre elas, com seu intenso azul sem transparência, e a balsa na margem de um verde pavão, opalino, misterioso. No teatro, desproporcional, improvável, reconstruído por um místico arqueólogo despreocupado com a realidade, há muito lixo, o mato seco ganha terreno onde as tubulações abandonadas sugerem que um tempo havia grama e flores. Todo mundo se move como em uma névoa de suor, ofegante, acuado. Duas famílias líbias vagueiam entre as colunas, as crianças lançam gritos que se perdem no silêncio do mar. O que mais os fascina são as velhas latrinas, milagrosamente conservadas, sob o lindo pórtico pentagonal, com os bancos de mármore. Acho que houve imperadores romanos que chegaram a Roma vindos daqui, e tinham a pele escura. Hoje, talvez, os estaríamos mandado de volta como incômodos migrantes.
Cada praia daqui até Trípoli é um ponto de partida. Um grupo de negros está acocorado na areia, uns em frente aos outros, entre garrafas de água. Estão absolutamente imóveis.
Não se olham. Seus olhos estão voltados para diferentes pontos do mar. Emanam uma sensação de eternidade. Vejo crianças dormindo como se estivessem mortas. Não têm qualquer bagagem com eles, no desespero fica o consolo de se separarem de tudo, de se reduzirem a si mesmos. Eles olham para mim com a mesma inocência com que olham para o horizonte. Eles oferecem água: a hospitalidade não é um ritual, mas um dom.
"O mar está bom, vocês vão partir à noite?". E repito a fórmula ritual "Estamos nas mãos de Deus". "Deus existe". Agora já está escuro. As margens do cais ficam na adivinhação, invisíveis, como o mar de sombra onde apenas brilham, junto aos cascos dos barcos de pesca, os reflexos das lâmpadas. Aqui e ali, formas alongadas mancham o céu noturno, redes içadas por pescadores, talvez.
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Líbia. No reduto dos traficantes de pessoas começa o inferno dos migrantes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU