23 Abril 2017
Os mártires “nos ensinam que, com a força do amor, com a mansidão, é possível lutar contra a prepotência, a violência, a guerra, e é possível realizar, com paciência, a paz.” Às 17h da tarde desse sábado, na Basílica de São Bartolomeu na Ilha Tiberina, em Roma, o Santo Padre Francisco presidiu a Liturgia da Palavra em memória dos “Novos Mártires” dos séculos XX e XXI, com a Comunidade de Santo Egídio.
Publicamos aqui a homilia que o papa proferiu durante a liturgia da palavra.
A homilia foi publicada pela Santa Sé, 22-04-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Viemos peregrinos a esta Basílica de São Bartolomeu na Ilha Tiberina, onde a história antiga do martírio se une à memória dos novos mártires, dos tantos cristãos mortos pelas loucas ideologias do século passado – e ainda hoje – e mortos apenas por serem discípulos de Jesus .
Ícone dos Novos Mártires da Basílica de São Bartolomeu. (Crédito: Comunidade de Sant’Egidio)
A recordação dessas heroicas testemunhas antigas e recentes nos confirma na consciência de que a Igreja é Igreja se for Igreja de mártires. E os mártires são aqueles que, como nos recordou o Livro do Apocalipse, “vêm da grande tribulação e lavaram e alvejaram as suas vestes no sangue do Cordeiro” (7, 14). Eles tiveram a graça de confessar Jesus até o fim, até a morte. Eles sofrem, eles dão a vida, e nós recebemos a bênção de Deus pelo seu testemunho. E também há tantos mártires escondidos, aqueles homens e aquelas mulheres fiéis à força suave do amor, à voz do Espírito Santo, que, na vida de cada dia, tentam ajudar os irmãos e amar a Deus sem reservas.
Se olharmos bem, a causa de toda perseguição é o ódio: o ódio do príncipe deste mundo por aqueles que foram salvos e redimidos por Jesus com a sua morte e com a sua ressurreição. No trecho do Evangelho que ouvimos (cf. Jo 15, 12-19) Jesus usa uma palavra forte e assustadora: a palavra “ódio”. Ele, que é o mestre do amor, que gostava tanto de falar de amor, fala de ódio. Mas Ele sempre queria chamar as coisas pelo seu nome. Ele nos diz: “Não se assustem! O mundo odiará vocês; mas saibam que, antes de vocês, ele me odiou”.
Jesus nos escolheu e nos redimiu, por um dom gratuito do seu amor. Com a sua morte e ressurreição nos resgatou do poder do mundo, do poder do diabo, do poder do príncipe deste mundo. E a origem do ódio é esta: como nós somos salvos por Jesus, e o príncipe deste mundo não o quer, ele nos odeia e suscita a perseguição, que, desde os tempos de Jesus e da Igreja nascente, continua até os nossos dias. Quantas comunidades cristãs hoje são objeto de perseguição! Por quê? Por causa do ódio do espírito do mundo.
Quantas vezes, em momentos difíceis da história, ouviu-se dizer: “Hoje, a pátria precisa de heróis”. O mártir pode ser pensado como um herói, mas o fundamental do mártir é que ele foi um “agraciado”: é a graça de Deus, não a coragem, que nos faz mártires. Hoje, do mesmo modo, pode-se perguntar: “Do que a Igreja precisa hoje?”. De mártires, de testemunhas, isto é, dos santos de todos os dias. Porque são os santos que levam Igreja em frente.
Os santos: sem eles, a Igreja não pode seguir em frente. A Igreja precisa dos santos de todos os dias, os da vida ordinária, levada em frente com coerência; mas também daqueles que têm a coragem de aceitar a graça de serem testemunhas até o fim, até a morte. Todos eles são o sangue vivo da Igreja. São as testemunhas que levam a Igreja em frente; aqueles que atestam que Jesus ressuscitou, que Jesus está vivo, e o atestam com a coerência de vida e com a força do Espírito Santo que receberam como dom.
Eu gostaria, hoje, de acrescentar um ícone a mais, nesta igreja. Uma mulher. Não sei o nome. Mas ela nos olha do céu. Eu estava em Lesbos, cumprimentava os refugiados e encontrei um homem de 30 anos, com três filhos. Ele me olhou e me disse: “Padre, eu sou muçulmano. Minha esposa era cristã. No nosso país, chegaram os terroristas, olharam-nos e perguntaram a nossa religião, e viram ela com o crucifixo, e lhe pediram para jogá-lo no chão. Ela não o fez e a degolaram na minha frente. Nós nos amávamos tanto!”.
Esse é o ícone que eu trago hoje como presente aqui. Não sei se esse homem ainda está em Lesbos ou conseguiu ir para outro lugar. Não sei se ele foi capaz de sair daquele campo de concentração, porque os campos de refugiados – tantos – são de concentração, por causa da multidão de pessoas que são deixadas lá. E os povos generosos que os acolhem também devem levar em frente esse peso, porque os acordos internacionais parecem ser mais importantes do que os direitos humanos. E esse homem não tinha rancor: ele, muçulmano, tinha essa cruz da dor levada em frente sem rancor. Ele se refugiava no amor da esposa, agraciada pelo martírio.
Recordar essas testemunhas da fé e rezar neste lugar é um grande dom. É um dom para a Comunidade de Santo Egídio, para a Igreja em Roma, para todas as comunidades cristãs desta cidade e para tantos peregrinos. A herança viva dos mártires doa hoje a nós paz e unidade. Eles nos ensinam que, com a força do amor, com a mansidão, é possível lutar contra a prepotência, a violência, a guerra e é possível realizar, com paciência, a paz. E então podemos rezar assim: “Ó Senhor, torna-nos testemunhas dignas do Evangelho e do teu amor; efunde a tua misericórdia sobre a humanidade; renova a tua Igreja, protege os cristãos perseguidos, concede logo a paz ao mundo inteiro. A ti, Senhor, a glória, e a nós, Senhor, a vergonha (cf. Dn 9, 7)”.
Nota de IHU On-Line: Para ver o vídeo da peregrinação do Papa Francisco à Basílica de São Bartolomeu, clique aqui.
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Papa Francisco: "A ti, Senhor, a glória, e a nós, a vergonha. Os campos de refugiados são campos de concentração" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU