21 Janeiro 2017
Ao invés do Uber e do AirBnB, plataformas autogeridas. Para preservar privacidade, um provedor compartilhado. Quem sabe no futuro, uma opção ao Facebook. Veja como tudo isso está sendo feito no Brasil.
O artigo é de Rafael Zanatta, pesquisador em direito e sociedades digitais. É mestre em direito e economia política pela International University College of Turin e mestre em sociologia jurídica pela Universidade de São Paulo, onde foi coordenador do "Núcleo de Direito, Internet e Sociedade", em artigo publicado por Outras Palavras, 19-01-2017.
Eis o artigo.
Em 2016, mesmo com os ininterruptos choques políticos em nível nacional e internacional, explorei nesta coluna algumas possibilidades progressistas para nossa sociedade digitalizada. A partir de experiências capitaneadas pela Peer-to-Peer Foundation (Holanda), a OuiShare (França) e o Platform Cooperativism (EUA), discuti a possibilidade de “subversão do capitalismo de dados” por meio de plataformas geridas democraticamente pelos seus próprios usuários.
Imagine um aplicativo de corridas moderno para smartphones controlado pelos motoristas? Ou uma plataforma online de aluguel de quartos de propriedade de moradores de um bairro? São modelos radicalmente opostos à ideologia do Vale do Silício, que advoga um modelo único para as economias digitais: grandes empresas financiadas pela indústria do capital de risco que extraem valor das ações econômicas das “pontas”, por meio da Internet. Porém, como lembra a socióloga Juliet Schor, esse modelo não é único. Ele pode e deve ser contestado a partir dos ideais de democracia econômica, solidariedade e justiça social. É possível que existam vários mercados (peer-to-peer).
Esse debate inicial trouxe resultados positivos em 2016. Aos poucos, ganhou força no Brasil o debate sobre “cooperativismo de plataforma”. Tive a oportunidade de discutir as ideias centrais deste projeto em diferentes locais, para diferentes públicos, incluindo organizações de cooperativas do Rio Grande do Sul; o Comitê Gestor da Internet, em São Paulo; e a reunião do fórum da sociedade civil da OCDE, que ocorreu no México.
Ao lado do projeto de “cooperativismo de plataforma” – a possibilidade de empreendimentos cooperativos de tecnologia onda há participação democrática nas decisões e distribuição justa do valor gerado por intermediações e serviços –, outra agenda promissora é o das “redes comunitárias”. Trata-se da possibilidade de gestão coletiva, feita por uma comunidade, de infraestrutura de conexão à Internet.
No último Internet Governance Forum (IGF), realizado em dezembro no México, o tema ganhou extrema importância. O diagnóstico feito por ativistas e acadêmicos de diferentes partes do mundo – Estados Unidos, Espanha, Argentina, Brasil, México, Itália, etc. – foi de emergência de diferentes experiências comunitárias e identificação de “princípios comuns” para governança de redes comunitárias. Tal como discutido em João Pessoa em 2015, participantes do IGF apontaram para a necessidade de modelos financeiros de apoio a tais comunidades e políticas públicas direcionadas à inclusão dos desconectados.
A partir de experiências concretas de pequenas comunidades, ativistas identificaram seis princípios para as redes comunitárias. Primeiro, a propriedade coletiva da infraestrutura (não há um “único dono” ou “investidor”). Segundo, a gestão social da infraestrutura de rede (todos que se conectam possuem deveres para auxiliar na operação). Terceiro, design aberto (a implementação da rede deve ser documentada de forma pública e acessível). Quarto, a participação aberta (qualquer pessoa pode estender a rede, desde que siga os mesmos princípios e design). Quinto, o livre trânsito e peering (redes comunitárias podem fazer acordos com outras redes para reciprocidade e tráfego de dados). Sexto, a segurança e privacidade (o design sempre buscar proteger os membros).
As “redes comunitárias” seguem princípios muito próximos das “cooperativas de plataforma”. A diferença central é de finalidade da ação coletiva: enquanto a governança das redes dedica-se à conexão à Internet, a governança das plataformas dedica-se aos serviços e ao trabalho nas economias digitais. Os princípios de abertura, participação econômica e gestão coletiva são os mesmos.
Engana-se quem pensa que tais experiências são “coisas de gringos”. Elas estão mais próximas de nós do que imaginamos.
Nesta semana, a Artigo 19, em parceria com o Instituto Bem-Estar Brasil e a Associação Nacional de Inclusão Digital, publicou um guia sobre “como montar e regularizar um provedor comunitário”. O material baseia-se em anos de trabalho comunitário desenvolvido no interior do Rio de Janeiro e explora três possibilidades de conexão: via rádio, via fibra óptica ou “redes mesh”.
Um outro projeto promissor – e que é semifinalista de uma competição promovida pela Fundação Mozilla – é o “Cooperativa P2P Redes Livres”, uma espécie de “metacooperativa” de redes comunitárias. Seu objetivo é fomentar a criação de novas cooperativas, estimulando a autogovernança de comunidades no interior do Brasil e conexão à Internet por conta própria.
Em um cenário de concentração do mercado de telecomunicações no Brasil, comportamento predatório de multinacionais e desconstrução das políticas de inclusão digital pelo governo federal, as redes comunitárias são uma resposta “de baixo para cima” para o problema da desconexão à Internet banda larga fixa, que atinge mais de 100 milhões de brasileiros. De brinde, promove uma cultura cívica de participação, democracia e responsabilidades compartilhadas.
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Internet: chegou a hora das redes comunitárias? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU