02 Mai 2016
"A transversalidade pensada ao modo errejonista (em referência ao intelectual podemita Iñigo Errejón) — e provavelmente também ao modo laclauliano (ao politólogo argentino Ernesto Laclau) — se baseia na instauração de um equivalente geral, transcendente às distintas demandas existentes numa população. Seu eixo fundamental é a relação entre demandas e representação, onde ressoam velhos ecos hobbesianos (proteção do soberano em troca da obediência dos súditos). É fundamental neste esquema remover qualquer virtualidade política dos antagonismos sociais parciais, tais como as lutas de classe, as lutas das mulheres e das minorias, os ambientalismos etc, fazendo deles a mera expressão de 'dores'", escreve Juan Domingos Sánchez Estop, professor de filosofia da Universidade Complutense de Madrid, em artigo publicado por Contraparte e reproduzido por UniNômade, 28-04-2016.
Eis o artigo.
1. O termo “transversalidade” é um dos mais populares na linguagem dos ideólogos e estrategistas do Podemos e por bons motivos. É evidente que nenhuma escolha política que não seja transversal a uma ampla gama de agentes sociais poderá tornar-se hegemônica. A ideia de transversalidade é, portanto, fundamental para pensar a agregação de distintos sujeitos segundo uma ação social e política comum. Apesar disso, a transversalidade se diz de muitas maneiras: existe uma transversalidade teológica baseada na arbitrariedade de um significante vazio e uma transversalidade democrática e materialista baseada na produção de uma racionalidade comum. A primeira permanece no plano da ilusión (outro termo usual do podemismo), isto é, da ideologia ou do imaginário, enquanto a outra nos arranca do solo imaginário ou ideológico em que nos movemos, para desembocar na produção e invenção de noções comuns, de formas de racionalidade surgidas da interação do múltiplo. A escolha por uma ou outra forma de transversalidade não é inocente, pois estão em jogo temas importantes como a racionalidade — sempre limitada, mas necessária — da política, ou a possibilidade mesma de uma democracia digna desse nome.
2. A transversalidade pensada ao modo errejonista (em referência ao intelectual podemita Iñigo Errejón) — e provavelmente também ao modo laclauliano (ao politólogo argentino Ernesto Laclau) — se baseia na instauração de um equivalente geral, transcendente às distintas demandas existentes numa população. Seu eixo fundamental é a relação entre demandas e representação, onde ressoam velhos ecos hobbesianos (proteção do soberano em troca da obediência dos súditos). É fundamental neste esquema remover qualquer virtualidade política dos antagonismos sociais parciais, tais como as lutas de classe, as lutas das mulheres e das minorias, os ambientalismos etc, fazendo deles a mera expressão de “dores”. A ideia que existam contradições inscritas na materialidade das relações sociais de produção é rechaçada como “essencialista” por Laclau e seus discípulos espanhóis: uma demanda somente alcança dignidade política quando está representada por um significante correspondente, e articulado a outros de um modo puramente discursivo, num bloco hegemônico capaz, a seguir, de ser realizado por meio do poder do Estado. Laclau e seus discípulos se declaram a esse respeito “pós-marxistas”. Ante os indubitáveis obstáculos com que o marxismo economicista tinha bloqueado toda inovação política, os laclaulianos tentam pensar a “autonomia do político”. Evitam, assim, fazer do político uma esfera determinada pelo econômico, para pensá-la como processo que se desenvolve no espaço discursivo. Para eles, a hegemonia é questão de significantes e de articulação de demandas ao redor de um significante vazio que passa a funcionar como um equivalente geral dessas demandas, e cuja pluralidade e diversidade impedem uma unificação instantânea. A unificação de demandas será assim necessariamente o resultado de uma intervenção política realizada em torno de um significante (em sentido amplo), que pode ser uma palavra, um nome, um personagem, um logo, um rabo de cavalo… As demandas e as “dores” galgam consistência política quando são representadas ou nomeadas: antes somente existiria o caos, o “tohu bohu” anterior à criação do mundo pelo verbo divino, como descrito no Gênese. Há realmente muito de teologia nessa concepção peculiar da política.
3. Pode-se ver na crítica de Laclau ao marxismo não exatamente um “pós-marxismo”, mas sim um regresso a posições teóricas e políticas anteriores à obra de Marx. Laclau abandona a perspectiva das relações de produção e da luta de classe, por considerá-las demandas parciais que somente poderiam ter existência política por meio de sua unificação com outras demandas ao redor de um significante vazio. Distancia-se assim da perspectiva marxista, por considerá-la um essencialismo e um determinismo econômico. Por um lado, não lhe falta razão ao abandonar tais posturas (essencialistas ou deterministas), mas, por outro lado, ao fazê-lo incorre numa leitura da obra de Marx enviesada pelo estalinismo. Esquece que a crítica da economia política de Marx torna impossível a existência (nas sociedades de classe) de uma economia independente da luta de classe e, por conseguinte, da própria política. Esquece que o capitalismo como sistema de dominação nunca foi um “sistema econômico”. Ele exige, para funcionar como economia de mercado baseada em transações contratuais, que fiquem ocultas as relações de exploração econômica, assim como relações de dominação política: que se invisibilize a luta de classe enquanto realidade política, relegada à “economia”, ao mesmo tempo que se remete a política às instituições da representação como seu único lugar. Laclau e seus discípulos, buscando superar o estalinismo e pensar a política em sua “autonomia”, se veem levados a reproduzir o esquema ideológico básico da dominação capitalista, isto é, a dualidade entre autorregulação da economia e autonomia do político.
4. O que o laclaulismo não faz — e ainda menos em sua vertente podemita-errejonista — é pensar a vida social segundo uma tópica, como faz, por exemplo, a leitura de Marx realizada por Louis Althusser. Isto é, como um conjunto de instâncias com índices variáveis de eficácia que fazem da estrutura e de suas partes realidades sobredeterminadas. Nesse contexto, a sociedade é um todo complexo, uma estrutura de estruturas na qual a economia determina, “em última instância”, todas as demais instâncias e o todo. Porém, a economia como tal não existe: ela é causa imanente, no sentido que ela somente existe enquanto sobredeterminada por todas as demais instâncias. Poderia dizer-se pela mesma razão que ela seja causa ausente, pois somente é eficaz no marco da causalidade da estrutura. A economia como causa não é nada, ou melhor, não é nada além do que a eficácia mesma da produção material e das relações que a organizam e reproduzem as suas condições de existência através das demais instâncias da estrutura social. Tanto a economia como as demais esferas estão atravessadas pela política — não no sentido de uma esfera política específica, mas sim da mais geral da luta de classe. Não carece dizer que a luta de classe não se reduz a um fenômeno “econômico”: a luta de classe é um processo transversal às distintas instâncias. Reduzir — invertendo o economicismo — a política à ação nas instâncias política e ideológica significaria manietar-lhe a atuação sobre as demais relações de produção. Não admira que o termo “relações de produção” seja alheio à teoria de Laclau. Atuar na esfera política é necessário, por sinal, é indispensável, mas nunca será suficiente: há política além do político. Se o refluxo dos processos latino-americanos de mudança está nos ensinando alguma coisa, consiste em entender a insuficiência de uma ação limitada à esfera política, a uma gestão do pressuposto sem nenhuma consequência real sobre as relações de produção.
5. A teoria de Laclau pensa a política como uma prática exclusivamente interna à esfera política, invertendo o gesto de Marx. Por meio de sua tópica, através do conceito de luta de classe, Marx politiza o conjunto das instâncias da vida social, inclusive a economia… e a própria esfera política. Já a política pensada a partir da transcendência de um significante vazio tem as características de uma teologia política. A doutrina errejonista reproduz e exacerba importantes elementos das teologias políticas — de matriz burguesa — típicas das esquerdas, tal como a ideia de uma vanguarda que conhece o sentido da história e que por isso pode transmutar a classe em si em classe para si, i.e., o saber sobre o processo histórico serve de legitimação da vanguarda; ou a ideia de um destino político (o socialismo, a mudança…). Se a esquerda se propunha a construir a classe mediante a sua representação pelo partido, o errejonismo se propõe a “construir o povo”, recuperando a ideia hobbesiana de um povo que não passa de efeito da representação da multidão pelo soberano: “The King is the People”, afirmava Hobbes em De Cive. O errejonismo tem ao menos a virtude de reconhecer a necessidade de transversalidade, de defender uma posição particular em nome do universal, o que lhe confere uma enorme vantagem em relação ao sectarismo da esquerda clássica. Contudo, essa vantagem é também a sua desvantagem, pois seu posicionamento se fundamenta numa teologia política oposta à da esquerda tradicional, numa teologia que produz um fechamento dogmático político e discursivo e impede integrar num projeto político comum aqueles que não aceitem este fechamento. Uma teologia (de esquerda) exclui outra teologia, o que obstaculiza a necessária política de alianças baseada na transversalidade. Um projeto hegemônico viável deve sair desse plano em que estão ausentes, em nome de uma concepção extremada da representação política, tanto a participação efetiva da multidão, quanto uma oposição entre a ideologia e o seu outro, seja ele a ciência ou a pura razão.
6. Somente uma perspectiva laica (não teológico-política) e baseada no comum e em seu potencial de produção e racionalidade, pode servir de base a uma autêntica transversalidade e propiciar assim as confluências necessárias para o transbordamento político e social. Talvez o debate sobre a confluência e a esquerda possa aclarar algo se recordarmos um conceito muito simples, procedente da tradição iluminista: o laicismo. Contrariamente a uma prática habitual, o laicismo não é uma arma que possa ser brandida contra as pessoas religiosas para obrigá-las a professar uma convicção ou uma confissão “laica”, senão o exato contrário. O laicismo não é uma obrigação do cidadão, mas do Estado, dos poderes públicos, que não devem assumir qualquer tipo de identidade religiosa. O Estado deve velar pela liberdade de culto e pelo desenvolvimento normal das práticas religiosas que não entrem em conflito com a legalidade (os sacrifícios humanos deveriam obviamente ser proibidos, assim como a violência entre as religiões ou outras formas de violência associadas), mas isto não deve constituir o conteúdo de nenhuma ideologia religiosa própria ao Estado. O cidadão deve, pelos motivos ideológicos que melhor o inspirem, obedecer às leis e respeitar os concidadãos. A confluência de forças democráticas antiausteridade deveria inspirar-se neste princípio “laico”. Não serve pra nada que a confluência se declare “de esquerda”; aliás, seria contraproducente declarar-se assim, pois se trata de permitir a coexistência dentro de um bloco hegemônico de ideologias e pontos de vista muito diversos, dentre os quais alguns “de esquerda”, sem que o sejam necessariamente todos. O mais importante está na coincidência num programa político: os motivos pelo que uns e outros apoiem esse programa são privados e secundários. Se alguém se opõe às políticas de austeridade inspirado pela caridade cristã, pela justiça islâmica, pela Sadaka judaica, pelos ideais humanitários do socialismo ou por uma análise em termos de luta de classe da conjuntura é algo perfeitamente indiferente na hora de fomentar e aplicar políticas que permitam sair da miséria neoliberal e reconquistar a democracia.
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Os limites de Errejón e Laclau para as confluências - Instituto Humanitas Unisinos - IHU