04 Mai 2017
"O governo Temer não se diferencia da lógica de outros governos em relação à política mineral de gestões anteriores, nas quais também prevaleceu uma lógica produtivista da exploração mineral, com aparelhamento dos órgãos responsáveis por representantes das empresas, com insuficiente fiscalização e controle das atividades, e pouca governança do Estado. Mas o governo golpista demonstra um viés ainda mais acelerado e subordinado ao capital mineral. E com ainda menor abertura ao diálogo com o setor organizado da sociedade brasileira, seja movimentos ou sindicatos", escreve Maria Júlia Gomes Andrade, antropóloga e componente da coordenação do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), em artigo publicado por Brasil De Fato, 02-05-2017.
Eis o artigo.
No dia 17 de abril de 2017 completou-se um ano que a Câmara dos Deputados aprovou a abertura do pedido de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, processo que consolidou o golpe parlamentar, jurídico e midiático no Brasil. Desde as primeiras movimentações do novo governo, sinalizava-se que o golpe de Temer aceleraria o saque mineral, com projeção de maior abertura do território nacional para a exploração desenfreada dos nossos bens minerais. Mas, apenas no início deste ano é que começam a se desenhar de forma mais explícita os eixos sobre os quais o governo decidiu investir os esforços neste momento: novo código da mineração, mineração em faixa de fronteira e aberturas de reservas do Estado.
As mais recentes declarações do Ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Bezerra Filho, indicam que a proposta de um novo código da mineração não será considerada na sua integralidade, mas será fatiada por temas específicos. Existe ainda a forte possibilidade de que não serão projetos de lei com tramitação regular no Congresso Nacional, mas sim Medidas Provisórias. Dois assuntos têm sido fundamentais na discussão do governo: o primeiro trata da transformação do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em Agência Nacional de Mineração, com a justificativa de que traria maior regulação, tecnicidade e transparência ao órgão público. Não estão sendo considerados neste debate questões fundamentais que afetam negativamente o cumprimento das funções do órgão, como a defasagem de funcionários para cumprir as funções de fiscalização e controle dos pedidos, e o sucateamento da estrutura das regionais em todo o Brasil. O DNPM tem funcionado como um grande cartório, em que os requerimentos de pesquisa ou lavra são protocolados. O departamento, no entanto, não tem qualquer controle sobre as áreas concedidas. A estrutura disponibilizada para o insuficiente número de funcionários parece ser propositalmente pensada para estes fins: garantir a falta de fiscalização e controle, com um ambiente mais livre para a atividade mineral.
O segundo assunto em discussão é a nova alíquota da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais, a CFEM. Este é o principal tópico de interesse de todos os prefeitos das cidades mineradas, que buscam aumentar a arrecadação dos municípios. A atual CFEM é distribuída da seguinte maneira: 65% para os municípios que possuem as cavas (minas), 23% para os estados e 12% para a União. Desde que o código começou a tramitar na Câmara dos Deputados, prefeituras de municípios que não possuem minas, mas são impactados pela infraestrutura (plantas de beneficiamento, barragens de rejeitos) ou pelos modais de escoamento da produção (rodovias, minerodutos e ferrovias), passaram a pressionar para que fosse incluída uma participação da CFEM para estas cidades também. Outra questão nevrálgica da discussão é a proposta que a CFEM passe a ser incidida no faturamento bruto e não líquido, como é hoje. Nesse caso, o valor variaria de acordo com o tipo de minério. E a discussão sobre a CFEM parece encerrar o principal do código, como se tudo se tratasse de uma arrecadação fiscal que precisa ser corrigida e melhorada em prol dos municípios. Não há uma linha de reflexão, da parte do governo, sobre os royalties da mineração no Brasil (mesmo que se incluam essas mudanças) serem um dos mais baixos do mundo. Ou, ainda, sobre que tipo de controle a população tem sobre o uso efetivo deste recurso. Por que há em Minas Gerais índices tão baixos do índice de desenvolvimento humano, com alta desigualdade social na população em quase todas as cidades com maior arrecadação de CFEM? E por que a população das cidades que recebem a CFEM sofre com problemas estruturais nos serviços de saúde e educação? Por que os maiores bolsões de pobreza do sudeste do Pará se encontram na região de Parauapebas, cidade onde se localiza o maior complexo de minas de ferro do mundo, o Projeto Grande Carajás? São reflexões importantes para sairmos do automatismo de imaginar que a arrecadação da CFEM resolve, em si, todos os problemas causados pelo atual modelo mineral.
Durante a ditadura militar, em 1979, estabeleceu-se uma lei que impunha uma série de proibições de atividades nas zonas de fronteiras, que são faixas de 150 km de largura. A justificativa era que essas áreas eram de segurança nacional, e deveriam ser reguladas mais rigidamente pelo Estado Brasileiro. São proibidas pesquisas e exploração dos bens minerais nestas áreas, entre outras atividades, salvo exceções que precisam passar previamente pelo Conselho de Segurança Nacional. Sobre as atividades de mineração recaem hoje restrições adicionais: empresas mineradoras que eventualmente consigam autorização para atuar nesses territórios precisariam ter, no mínimo, 51% do capital nacional e pelo menos dois terços de mão de obra composta por trabalhadores brasileiros. A proposta do governo Temer é abrir as faixas de fronteira para qualquer projeto de mineração, de forma irrestrita.
As faixas de fronteira atravessam 11 estados brasileiros, mas a concentração principal para a exploração mineral está na Amazônia. Algumas das áreas de maior interesse minerário são explicitamente citadas, como é o caso da região chamada de Cabeça de Cachorro, no estado do Amazonas, divisa com Colômbia e Venezuela. A região é marcada pela existência de diversos povos indígenas, de distintas famílias linguísticas, com centenas de aldeias e comunidades tradicionais. Mas esta não é a única região com declarado interesse mineral; todos os estados da região Amazônica possuem terras indígenas em conflito latente com possíveis projetos de mineração. Para além do debate necessário sobre a segurança nacional, a possível permissão irrestrita da mineração em zonas de fronteiras impactará, sobretudo, os povos indígenas e populações tradicionais da Amazônia.
O atual presidente do CPRM (Serviço Geológico do Brasil, na antiga sigla), Eduardo Ledsham, foi funcionário de carreira da empresa Vale S.A. por 29 anos, e há nove meses assumiu a presidência de um dos órgãos fundamentais da estrutura da política mineral do Estado brasileiro, responsável pelo mapeamento de pesquisas geológicas do subsolo brasileiro. O CPRM é vinculado ao Ministério de Minas e Energia e possui as mais vastas e detalhadas informações sobre a riqueza mineral do Brasil. Um conhecimento estratégico que deveria estar a serviço do Estado brasileiro, mas que tem sido usado como atrativo para investimentos. Em entrevista no dia 16 de fevereiro de 2017, Ledsham se preocupa em dialogar com as mineradoras, afirmando “que já encarregou de iniciar pesquisas para municiar as empresas interessadas em investir nas áreas”. O órgão estatal, historicamente dirigido pelo setor mineral, está se esmerando no governo Temer em ser ainda mais eficiente no serviço às empresas mineradoras.
Um primeiro anúncio foi de que algumas reservas minerais do Estado, que são hoje fechadas para a exploração, seriam então disponibilizadas para a iniciativa privada. A primeira a ser anunciada foi a Reserva Nacional do Cobre e Associados (RENCA), criada em 1984, que possui uma enorme diversidade de minerais já mapeados: cobre, nióbio, ferro, platina, fosfato, tântalo, bauxita, paládio e grandes jazidas de ouro. Uma portaria de 30 de março de 2017, publicada em seguida no Diário Oficial da União, foi o primeiro passo administrativo para garantir que a área – cujo tamanho se aproxima de todo o território da Bélgica - seja então colocada à disponibilização do mercado do setor mineral. A reserva se localiza entre os estados do Pará e Amapá, possui cerca de 46.000 quilômetros quadrados, em uma região que possui baixa densidade populacional, grandes áreas de floresta amazônica e aldeias indígenas no entorno. A alegação para a extinção da RENCA foi a tradicional justificativa de que “é necessário atrair investimentos para a região”. É uma área muito visada porque tem potencial de exploração de diferentes tipos de minerais, e em altas quantidades.
A mineração funciona historicamente em ciclos de altas e baixas, de valorização e desvalorização dos minerais, sempre existe uma melhor ou pior época para colocar as reservas à disposição, nos termos do próprio setor. Pensando através desta ótica, este é o pior momento para se colocar as gigantescas reservas da RENCA à disposição. O pretexto de “incentivar a indústria mineral” é colocado como se ela estivesse em crise; mas o ponto fundamental é que a indústria mineral que atua no Brasil só quer continuar lucrando nos patamares que tem lucrado.
Não está em discussão o melhor ou pior momento para o desenvolvimento do país, não são estes os termos. O processo de reabertura da RENCA é uma confirmação do ritmo mais agressivo de exploração que pode vir neste novo governo, aprofundando a subordinação da soberania mineral brasileira às grandes empresas mineradoras.
Mas a RENCA não é a única área sob o controle de pesquisa do CPRM. Além dela, outros territórios hoje fechados para o processo de concessão minerário já são nomeados para serem abertos e licitados a partir deste ano. Já estão na lista áreas em Pernambuco (fosfato), Tocantins (cobre, zinco, chumbo, cádmio e prata), Rio Grande do Sul (carvão) e Goiás (cobre). Estas áreas foram anunciadas no final de 2016 dentro do pacote do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal. Com o início da abertura da RENCA, a mais cobiçada, a tendência é que haja mais áreas abertas ao longo de 2017. Mais reservas estratégicas do Estado Brasileiro sendo colocadas para licitação do setor privado.
O governo Temer não se diferencia da lógica de outros governos em relação à política mineral de gestões anteriores, nas quais também prevaleceu uma lógica produtivista da exploração mineral, com aparelhamento dos órgãos responsáveis por representantes das empresas, com insuficiente fiscalização e controle das atividades, e pouca governança do Estado. Mas o governo golpista demonstra um viés ainda mais acelerado e subordinado ao capital mineral. E com ainda menor abertura ao diálogo com o setor organizado da sociedade brasileira, seja movimentos ou sindicatos.
Se o código for levado adiante de maneira fatiada, focado em questões fiscais e sem pensar o todo, o Brasil vai perder uma oportunidade de pensar as novas regulações necessárias da política mineral. O desastre causado pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), já ensinou o quão necessário é repensar o modelo mineral brasileiro. E mais além: se as medidas de abertura para a exploração mineral nas faixas de fronteira e nas reservas estratégicas do Estado se concretizam, viveremos no próximo período uma aceleração sem freios deste mesmo modelo destrutivo, passando por cima do meio ambiente, das populações e da nossa soberania.
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A política mineral do governo Temer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU