04 Janeiro 2017
"O aniversário de 80 anos na Igreja Católica normalmente designa a data em que os cardeais perdem o direito de eleger o papa, e em que – do ponto de vista de Roma – bispos meritórios renunciam definitivamente ao seu ofício, tendo já ultrapassado de cinco anos a idade normal da aposentadoria. Em Bergoglio, nada faz pensar nesses prazos. Está cheio de energia e mentalmente age de modo mais jovial e aberto do que a maioria dos bispos, padres e políticos, incluindo até mesmo aqueles biologicamente décadas mais jovens. Muitos esperam que este papa, tão inesperadamente vindo de longe, permaneça ainda muitos anos à frente da Igreja Católica. Uma pequena, mas influente minoria, pelo contrário, espera que o papa aproveite a oportunidade de seus oitenta anos para demitir-se do cargo", escreve Kurt Appel, professor da Universidade de Viena, em artigo publicado por Settimana News, 17-12-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Papa Francisco é amado por muitos crentes, e não poucos o veem quase como um salvador. Muitos intelectuais, personalidades cristãs, líderes religiosos, bem como agnósticos e ateus o admiram, e pode-se supor que ele seja a única autoridade moral global do nosso tempo. No interior da igreja também ganhou muitos bispos e padres conservadores, mas, não poucos deste grupo mostram-se bastante céticos e alguns o consideram um herege.
A Igreja Católica, que em sua história, é especialista em marketing, há algum tempo começou a dar aos papas um atributo atraente. O Papa João XXIII foi o "Papa bom", João Paulo II, o "Papa da nova evangelização", Bento XVI "Papa da verdade". Só com Paulo VI – aquele grande e tímido intelectual, certamente não adequado às estratégias de marketing – este esforço não conseguiu êxito nas relações públicas da Igreja, e tornou-se o "Papa da pílula".
Ao Papa Francisco é dado o título de "Papa da Misericórdia". Este atributo parece legítimo pelo seu pontificado, pois seus escritos, homilias e catequese indicam que o próprio papa se compreende como testemunha da misericórdia de Deus. A renovação, ligada à Bíblia em sua consciente relação com este nome divino central (Ex 34,6s), não se encontra somente em seu enorme potencial ecumênico – pense-se à confissão muçulmana de Deus misericordioso –, mas também na renovação do ordenamento simbólico da Igreja Católica. A ordem simbólica de uma comunidade é marcada pela sua expressão linguística, cultural, estética, ética, afetiva e cognitiva. A Igreja Católica é caracterizada, ao menos desde a Contrarreforma e o barroco a ela associado, por um enorme programa estético. Em certo sentido, ela traz para a terra o palácio celeste. Com isso, o mundo católico apresenta um belo cosmos, finamente estruturado, organizado em cada detalhe, garantido por várias hierarquias. Esta ordem, onde que cada pessoa tem seu próprio lugar específico, vai desde as três classes de cardeais, aos paramentos litúrgicos dos sacerdotes, até as regras da moral sexual católica fixadas no catecismo e à hierarquia das verdades. O problema é que esta ordem, na modernidade, descobre-se sempre mais frágil. Autodeterminação e individualismo, emancipação das estruturas políticas e familiares tradicionais, perda de legitimidade das assim chamadas hierarquias "divinas", e uma grande consciência do potencial de violência dos sistemas normativos e disciplinares totais, colocaram sempre mais à dura prova a Igreja.
O Papa João Paulo II e Bento XVI entendiam por "nova evangelização", sobretudo, um retorno à Igreja, como um sistema de ordem universal e constitutivo de identidade – com particular atenção à defesa da dignidade humana universal – onde, sobretudo o clero, como mediador entre o homem e Deus, desemprenhava o papel de guia. O problema era, no entanto, que nas novas megacidades e realidades culturais, o ordo construído ao longo dos séculos possuía uma base social sempre menor. Privada de sua tradicional base cultural, a Igreja tornou-se sempre mais mediatizada e virtualizada. Suas tradições, constitutivas de identidade, tornaram-se, no perfeito estilo pós-moderno "marcas" sem conteúdo e sem história, enquanto o clero mais jovem é esmagado entre o papel de guardião de uma ordem imaginária intocável e os mundos frágeis que se encontram in loco. Paradoxalmente, então, a Igreja, que queria combater a pós-moderna perda de identidade e o niilismo, tornou-se, ela mesma, cada vez mais expressão da sociedade global pós-moderna: longe da história concreta e de suas feridas, longe da esperança concreta e das suas fadigas.
A peculiaridade do Papa Francisco é que ele conseguiu – referindo-se de modo consciente ao Papa do Concílio, Paulo VI – dar novo significado aos ordenamentos simbólicos da Igreja. Sob o tema norteador da misericórdia, coloca o inteiro mundo simbólico do catolicismo a serviço da percepção da vulnerabilidade e das consequentes potências de cura. O homem pós-moderno é frágil, porque muitos dos mecanismos de proteção tradicionais (família, metafísica, Igreja etc.) foram abolidos, e responde a esta fragilidade ou com uma constante virtualização do mundo ferido, ou – e este é o caminho de Bergoglio –, com o reconhecimento da vulnerabilidade, como primeiro e decisivo passo de um ser-com solidário e misericordioso. Recentemente cardeais e bispos, em face às críticas da parte de quatro cardeais (Meisner, Burke e Caffarra e Brandmüller), apontaram a continuidade entre os ensinamentos de João Paulo II e Francisco, o que é provavelmente verdade. Mas não o é inteiramente. Porque Bergoglio, mesmo que nada tenha mudado do ensino tradicional, no entanto, coloca-o radicalmente a serviço de uma visão "compassiva" (aisthesis), quer dizer, convida a experimentar e assumir solidariamente a vulnerabilidade, de modo que o ordenamento clássico da igreja barroca seja, em certo sentido, "superado" (no sentido hegeliano de preservar, suspender, elevar a um nível superior).
Exatamente, na luta contínua pela concretização do olhar sobre a miséria dos outros, Bergoglio quebra, ao menos momentaneamente, a medialização do papado. De vez em quando, pelo menos, pode-se alimentar a ideia de que este papa existe realmente. O olhar sobre o concreto induz também a uma mudança teológica radical, vinda à luz já nos principais escritos de Paulo VI [Populorum Progressio (1967), Evangelii Nuntiandi (1975)]. Caracteriza-se pelo fato de que a teologia, como nos primeiros séculos, põe-se a serviço de um modo específico de análise social. Nos seus três documentos principais (Evangelii Gaudium, Laudato si’, 'Amoris Laetitia), o papa Francisco foi capaz de comunicar também ao mundo laico (e não cristão) o “valor acrescentado” da análise teológica e, então, testemunhar Deus como momento de abertura ao mundo real de hoje. A teologia, desta forma, não gira obsessivamente sobre si mesma, mas tenta penetrar nas questões concretas de seu tempo, onde - do ponto de vista cristão – ela encarna o próprio Kyrios. Neste sentido, não em último lugar, Bergoglio é o papa que devolve um espaço significativo para as perguntas dentro da Igreja.
A renovação que Francisco encarna, e que para muitos aparece como um milagre, não pode, no entanto, negligenciar os perigos aos quais seu pontificado está exposto. Seu lema "misericórdia" refere-se ao centro da mensagem bíblica, mas poderia muito bem ser vítima de uma ideia de um amor de arbitrariedade, como quando "misericórdia" significa tudo e nada, e até mesmo o bispo ou o cristão mais cruel começam a embelezar-se com ela. Neste sentido, já se começam a ver as primeiras tendências. O termo "misericórdia" não é, portanto, privado de ambiguidades. De fato, se por um lado designa o mistério do ser – com divino, por outro lado, na esfera da sociabilidade humana, pode ser facilmente abusado em sentido paternalístico. Sobretudo no campo das instituições públicas, não se poderá confiar na misericórdia das autoridades, mas se farão valer os direitos jurídicos.
Para uma encarnação crível do Evangelho do amor misericordioso, a Igreja precisa de novas formas de institucionalização. Ela se encontra diante do fato de que na Europa, mas também, cada vez mais, nos Estados Unidos, cresce uma geração de jovens completamente alheios às tradicionais formas de expressão religiosa, o que pode ser uma das razões para que o próximo Sínodo dos Bispos seja dedicado à juventude. Além disso, há cada vez menos lugares reais onde se possa fazer experiência de Igreja. Na verdade, o suporte da rede eclesial, o clero, para cuja promoção os dois últimos papas gastaram tanta energia, não é nem quantitativa, nem qualitativamente capaz de conduzir (por si só), a Igreja do futuro. Os leigos, no entanto, geralmente, ainda não contam nada e permanecem estruturalmente dependentes da boa vontade do respectivo bispo ou padre.
A Igreja precisa, portanto, olhando para a misericórdia divina, de uma renovação espiritual que se mede pelo fato de que os pobres, os marginalizados, os feridos encontram hospedagem nela. Olhando para esta tarefa, deve também reformar radicalmente suas estruturas. Caso contrário, irá cair, em décadas, numa completa irrelevância. Talvez o pontificado de Bergoglio seja a última chance para uma tal reorientação.
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Papa Francisco: Profeta contra a irrelevância - Instituto Humanitas Unisinos - IHU