12 Agosto 2013
A diferença entre o bode ritual e o que nós mesmos entendemos por "bode expiatório" desaparece nos Evangelhos a partir de uma expressão que lhes é própria e que substitui vantajosamente a nossa, porque ao menos ela é inequívoca: trata-se do Cordeiro de Deus.
A análise é do filósofo e historiador francês René Girard, em artigo publicado no jornal Avvenire, dos bispos italianos, 04-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto
Eis o texto.
A Paixão representa um fenômeno de bode expiatório e de modo mais explícito do que qualquer outro texto. Nenhuma vítima religiosa ou histórica é mais visivelmente bode expiatório do que Jesus crucificado. Ele sofre o suplício mais infamante do mundo romano. É abandonado por todos, até pelo seu melhor discípulo que o traiu em público e, na noite da sua prisão, não conseguiu nem vigiar algumas horas com ele.
Não há ninguém na sua agonia, nem as gentes, nem as autoridades. Dos mais sábios aos mais ignorantes, todos estão contra ele.
Toda a vida pública e a morte de Jesus se colocam no cume de uma crise religiosa, política e social em que se joga o destino de Israel. Trata-se de uma realidade histórica indubitável e que transparece por trás do tema da intervenção messiânica, que deve ocorrer em uma hora fixada pelo auge da crise. Quando tudo parecer perdido, quando a crise nivelar tudo, tudo uniformizado, tudo tornado indiferenciado, é que deve surgir o Salvador: "Todo vale será aterrado, e as montanhas, aplainadas".
O tema da crise é mais desenvolvido do que em qualquer outro lugar. Jesus é um ser posto às margens, rejeitado por todos os seus, não possui uma casa, a sua própria sinagoga o rejeita. Também é preciso entender que a perfeição moral de Jesus, a sua rejeição à violência que seduz os homens superficialmente logo depois os irrita, porque o seu próprio comportamento e toda palavra que sai da sua boca denunciam a mediocridade dos homens comuns e o indicam à hostilidade geral.
Todos os temas da constelação perseguidora estão presentes nos Evangelhos, e a sua relação com a missão divina de Jesus é enfatizada. Cada traço característico da estrutura se encontra na Paixão, longamente explicado e sublinhado tanto por palavras memoráveis de Jesus, quanto por citações do Antigo Testamento. "É melhor que um só homem morra e que o povo seja salvo... Eles me odiaram sem motivo... Todos os poderes deste mundo se uniram contra o ungido do Senhor".
Mas então, se poderá dizer, os Evangelhos deveriam dizer explicitamente que Jesus é um bode expiatório. Ao invés, nunca usar tal expressão. O silêncio contradiz a minha tese? Em nada, porque, para dizer a diferença entre o bode ritual e o que nós mesmos entendemos por "bode expiatório", os Evangelhos possuem uma expressão que lhes é própria e que substitui vantajosamente a nossa, porque ao menos ela é inequívoca: trata-se do Cordeiro de Deus.
Cordeiro diz tudo o que é preciso dizer mais claramente do que o nosso "bode expiatório". Cordeiro tem um sentido antropológico e ao mesmo tempo teológico. Não é preciso reduzir o cristianismo a uma ciência social, mas também não é preciso esquecer a Encarnação. Tudo o que se refere a Cristo envolve uma dimensão humana, assim como divina.
Assim como o bode, o cordeiro se destina ao papel de vítima. Com relação à espécie zoológica a que pertencem, esses dois animais – o bode e o cordeiro – estão o mais próximos possíveis um do outro, enquanto, no que diz respeito aos sentimentos que eles nos inspiram, estão nos antípodas um do outro. Ao contrário do bode, o cordeiro desperta uma imediata simpatia. A sua inocência, a fragilidade, a brancura imaculada nos fazem considerar o seu sacrifício como uma cruel injustiça, imagem da injustiça cometida contra Jesus e contra todos os bodes expiatórios que, na realidade, são todos cordeiros de Deus.
Assim, substituir o cordeiro pelo bode significa eliminar as conotações pejorativas deste último, é afirmar a inocência da vítima, é livrar-se dos fatores simbólicos que facilitam a polarização contra uma vítima inocente.
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Do bode expiatório ao cordeiro de Deus. Artigo de René Girard - Instituto Humanitas Unisinos - IHU