Por: Cesar Sanson | 16 Julho 2014
"A reação a Junho já está acontecendo, e o poder mostra-se com toda a sua força". O comentário é de Vladimir Santafé, filósofo, professor da Universidade Estadual do Mato Grosso e UniNômade em artigo publicado por Outras Palavras, 15-07-2014.
Eis o artigo.
A sociedade atual caracteriza-se pelo controle imediato e virtual, pela conexão de dados que forma os indivíduos que, para o poder, não passam de dados. Dados produtivos e inclusos nas relações de produção, enquanto consumidores e produtores, consumidores de seus próprios produtos, isto é, de seus desejos e dos modos de vida que constituem o mercado atual, imagético e autoproducente.
Como nos disse Guy Debord, “Na sociedade do espetáculo, a imagem é mais real que o real”. Consumimos imagens, isto é, produtos colados à publicidade que bombardeia nossos olhos e atenção a todo o tempo (neymares por todos os lados!), o smartphone é o que foi a TV na década de 50 do século passado, ou o rádio a partir da década de 20, a era do rádio “elegeu” Hitler e Getúlio, a era do smartphone os desconstruiu. Mas o que é e como atua o poder na sociedade de controle? Ele atua ao ar livre, em qualquer lugar, através de dispositivos tecnológicos digitais que conectam os dados que nos constituem, um dispositivo não é apenas um objeto, mas um formador de subjetividades, uma catalisador de transformações históricas, vê-se o arco composto entre os hunos, que aliado ao cavalo, derrotou o Império Romano.
Nas sociedades de controle, somos dados ligados a esses dispositivos digitais, já não somos apenas matrículas e assinaturas. Nas sociedades disciplinares, a normatização da multiplicidade registra o indivíduo e o molda em espaços fechados e descontínuos, a família, a escola, a fábrica, a prisão, o hospital, mas o controle o modula em espaços abertos ou semiabertos, numa modulação contínua e constante, como as ondulações de uma cobra. O indivíduo torna-se o dividual, dividido a partir de cifras e senhas, identidade móvel sempre em modificação, apesar de massificado. A massa é informe, indefinida, amorfa, muitas vezes incontrolável, e quando ela forma multidão, isto é, quando ela organiza-se em singularidades ligadas a desejos e pontos em comum, ela faz história, ela fez as Jornadas de Junho, assim como fez a Praça Tahrir, a Praça Taksim, ou os Occupys espalhados pelo mundo. E o poder é, essencialmente, reação.
Como escreveu Nietzsche, o poder é o contrário da potência, a potência abre e desdobra conexões, o poder captura e reage, ressente-se com a criação, conserva-se e reproduz-se a partir das forças que normatiza ou enforma. A reação a Junho já está acontecendo, e o poder mostra-se com toda a sua força. Num país que convive com o genocídio da população negra e pobre das favelas e periferias, com o racismo estrutural das suas elites neoescravocratas, reproduzindo-o em seus mínimos detalhes, onde a imagem refletida na novela é o retrato dessa elite, o aparato policial que mais mata no mundo é acionado para prender e reprimir manifestantes contrários aos megaeventos antes mesmo deles se manifestarem, numa ação coordenada pelas tecnologias utilizadas pelos próprios ativistas em seu processo de mobilização e organização[1].
Em Minority Report, filme de Steven Spielberg, os crimes são antecipados pela fusão de finas tecnologias digitais que identificam o indivíduo através de sua íris, remetendo-o aos dados que o preenchem, com a coordenação de previsões produzidas por videntes acoplados aos fios tecnológicos que transmitem suas imagens na tela flexível, mistura de ciência e “magia” ou de biotecnologia, evitando a realização dos crimes a partir da prisão e do exílio em vida dos seus condenados.
Em Minority Report ou no Brasil de hoje, não há como escapar do olho do poder, pois estamos todos condenados de antemão, somos todos criminosos em potencial. A conclusão que chegamos: para garantir o lucro das megaempresas que patrocinam a Copa do Mundo da FIFA, os lucros diretos e indiretos das empresas locais, além dos votos obtidos com as obras da Copa, físicas e simbólicas, com a conivência dos grandes meios de comunicação que reforçam os ganhos imateriais da publicidade em torno do evento, os partidos no poder (da aliança PT/PMDB a PSDB/DEM) recorrem a procedimentos jurídicos usados pela ditadura militar no seu período mais feroz e autoritário, o AI-5, desdobrado e atualizado pelas tecnologias que tornam o filme de Spielberg atual. Mas o que foi o AI-5? “O AI-5, sobrepondo-se à Constituição de 24 de janeiro de 1967, bem como às constituições estaduais, dava poderes extraordinários ao Presidente da República e suspendia várias garantias constitucionais.”[2]
Para reforçar a minha tese, transcrevo abaixo a fala do delegado Orlando Zaccone D´Elia Filho sobre a responsabilidade da presidente Dilma nas detenções dos manifestantes:
“A Presidente Dilma é responsável não só pelas prisões dos manifestantes do Rio, como os de São Paulo e no restante do país. A estratégia de definir os ativistas no crime de quadrilha armada, associação criminosa, milícia, etc., foi definida em reunião do Ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo] com os Secretários Estaduais de Segurança. Infelizmente ela já se manifestou sobre as prisões, determinando aos estados que assim o procedesse. Para piorar a situação, todo este movimento de intervenção federal na atribuição investigativa criminal do estados é tido como um grande sucesso.Recentemente, a Presidente falou sobre a necessidade de uma maior competência federal na gestão das policias. Ou seja, infelizmente, tudo o que está acontecendo tem a assinatura da Presidente.”
Também reproduzo abaixo o depoimento de Dony Escobar sobre a prisão com requintes ditatoriais de um amigo em comum, o lutador Filipe Proença, conhecido como Ratão:
“Bem… Nosso querido amigo, professor de história e baixista/vocalista dos Vulcânicos, Filipe Proença, foi preso em sua casa por volta das 3h da madrugada. A polícia bateu em sua casa com um mandado de prisão e em busca de camisas pretas de movimentos populares e ‘artigos de manifestação’. Pelo menos 60 mandados estão sendo cumpridos e a todo momento ativistas estão chegando presos nas caçambas de viaturas da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil. Os ativistas foram alvo de uma verdadeira operação de guerra envolvendo ao menos 150 policiais. Os agentes chegaram nos locais de busca encapuzados e fortemente armados. Parentes e amigos dos presos estão sendo ameaçados e intimidados dentro da delegacia e Advogados do Povo já denunciam várias violações de prerrogativa.”
Não há o que esconder, esta é a realidade que vivemos, a imagem também é potência! É o momento de velhos fantasmas ressuscitados, com caras e roupas novas, a velha política se traveste de “esquerda” ou de direita, e nos impede de sonhar para além do voto e da democracia representativa, a máxima de Marx continua acesa: “o parlamento é o balcão de negócios da burguesia”, com a diferença de que esses negócios atualmente estão em toda parte, assujeitando e moldando significados, direcionando desejos e reprimindo violentamente, quando não mata e tortura.
O que fazer? Continuar sonhando e mobilizando, porque a primavera é inevitável.
Notas
[1] São 26 mil policiais e militares das Forças Armadas nas ruas. A Polícia Civil prendeu 19 suspeitos por atos de vandalismo no dia 12 de julho, um dia antes da final da Copa, a 27° Vara Criminal da Capital expediu 26 mandados de prisão temporária e dois de busca e apreensão de menores de idade.
[2] Fonte: Wikipedia
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AI-5 da sociedade de controle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU