09 Novembro 2015
René Girard descobriu com a sua exegese que uma estratificação hermenêutica repousa no texto neotestamentário, em vista de uma reconquista "vitimária" do relato: que, em vez disso, na história concreta do Jesus histórico, neutraliza o mecanismo do bode expiatório.
A opinião é de Alberto Melloni, historiador da Igreja, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII de Bolonha. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 06-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Compreender, "ao mesmo tempo, porque os crentes, primeiro, e, a seu exemplo, os não crentes, depois, cada vez mais passaram para perto do segredo, aliás, tão simples, de toda a mitologia": essa foi a ambição e o êxito da pesquisa do francês René Girard, que faleceu em Stanford, nos Estados Unidos. Uma pesquisa que era impossível (prova disso é a entrevista autobiográfica de 1994, com Michel Treguer) encaixar nos quadros estreitos das disciplinas acadêmicas.
No início da sua carreira, Girard foi um paleógrafo de base sólida como medievalista, construída na Paris da Libertação, onde ele se formou, nascido em Avignon em 1923, com uma tese sobre a vida privada do século XV.
Nos Estados Unidos, onde encontrou cátedra e família, foi um professor de literatura francesa, que espremia o texto de um modo que há 50 anos leva filósofos, antropólogos, psicanalistas, teólogos a se anexar a Girard ou a repudiar as suas conclusões, construídas em um sistema complexo, em cujo fundo se encontra a chave do seu pensamento: isto é, a descoberta do desejo mimético, que já aparece em Mentira romântica e verdade romanesca, de 1961.
Aquele desejo que leva a desejar o que o outro deseja (por isso, mimético) e que – ao contrário do desejo "objetual" freudiano da libido, que precisa de uma filosofia da consciência – gera um dinamismo triangular entre objeto do desejo, o outro desejante e o sujeito desejante.
A partir dessa pesquisa iniciada com Dostoiévski, chegou a obra que fez dele um filósofo e um antropólogo da religião: Violência e sagrado, de 1972 elabora uma teoria da gênese da religião. Na mitologia e na sua elaboração filosófica e literária, Girard reencontra o ato inicial de ocultação que "engana a violência": o "sagrado" que absorve a violência destinada fatalmente a nascer e o derramamento sobre uma entidade não reivindicável e, ao mesmo tempo, em aparente continuidade com aqueles no lugar dos quais ele é sacrificado.
Assim, o bode expiatório aplaca e funda a sociedade nessa sombra religiosa que é "o sentimento que a coletividade inspira nos seus membros, mas projetado para fora das consciências que o sentem e objetivado".
O desafio para a antropologia e a psicanálise (e, portanto, para Lévi-Strauss e para Freud), implícito nessa obra capital do século XX, continua no texto talvez mais complexo e sugestivo de Girard, que é o diálogo-entrevista com Jean-Michel Oughourlian e Guy Lefort, sobre Coisas escondidas desde a fundação do mundo, de 1978: um denso exame que abre ao longo corpo a corpo com o texto bíblico, em uma pesquisa que não é "uma solução de encurvamento em relação às ambições da filosofia, uma sábia resignação. É outra maneira de satisfazer essas ambições".
De fato, Girard descobre com a sua exegese que a estratificação hermenêutica repousa no texto neotestamentário, em vista de uma reconquista "vitimária" do relato: que, em vez disso, na história concreta do Jesus histórico, neutraliza o mecanismo do bode expiatório.
A potência teológica dessa intuição não seria captada até o fim (só O bezerro de ouro e O êxtase do profeta, de Pier Cesare Bori, foram nessa linha e além): mas, assumindo a "própria" religião, o judeu Jesus liberta a sua força desmistificatória e desmascara a reivindicação cristã de universalizar a sua mensagem, reduzindo-a a "dez mandamentos" que, em nome de uma ética para todos, exalta a "unanimidade da violência".
Descoberta capital, essa de Girard, também para a história: porque, se a vítima se torna "Cordeiro de Deus" e sai da sua passividade regulatória, o homem vê ser-lhe entregue de volta a sua violência; o religioso, a própria imanência; e Deus, a Sua transcendência.
Jesus de Nazaré, a vítima "perfeita e inocente", que está do lado das vítimas e que, como tal, engloba o fim último do tempo, confere à história uma "responsabilidade" (nas palavras de Emmanuel Lévinas).
Em Rematar Clausewitz: além da guerra, no fim de 2007, Girard observa: "O cristianismo é a única religião que previu o seu fracasso: essa presciência nasceu como apocalipse. De fato, é nos textos apocalípticos que a palavra de Deus é mais enérgica, repudiando aqueles erros que são inteiramente culpas humanas que são cada vez menos inclinados a reconhecer os mecanismos da sua violência. Quanto mais persistimos no nosso erro, mais forte a voz de Deus emerge sobre a devastação. (...) Uma vez, na nossa história, a verdade sobre a identidade de todos os humanos foi pronunciada, e ninguém quis ouvi-la; em vez disso, concentramo-nos cada vez mais obsessivamente nas nossas falsas diferenças".
As falsas diferenças com que, como ele explica na produção dos últimos anos, a violência se reapresenta na sua "forma de sagrado corrupto": o imobilismo daquele "Satanás" que é o nome comum de todas as "escaladas para o extremismo" deve ser desafiado na raiz ou no seu "início". Não efusões efêmeras entre "moderados", mas com a inteligência urticante que sabe que "buscar conforto é sempre um modo de contribuir para o pior".
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René Girard, explorador do sagrado. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU