11 Mai 2007
“Da `Constituição Cidadã` aos mínimos sociais” é o título da tese de Denis Maracci Gimenez. Promulgada em 1988, a Constituição Cidadã previa os direitos sociais com os quais a geração que viu o Brasil se redemocratizar sonhou. Era o início, ou pelo menos a previsão, de uma sociedade mais justa. Hoje, 19 anos depois, percebemos a redução contínua desses direitos, com a constituição transformando-se em mínimos sociais. Assim, Denis analisa, em seu trabalho, a estagnação econômica, que teve início na década de 1980 e perdura até hoje, lançando sua tese de regressão econômica e social estabelecida no Brasil. A IHU On-Line contatou o professor Denis e realizou, por telefone, a entrevista que segue.
Denis Maracci Gimenez graduou-se em História pela USP. Seu mestrado, na área de Economia Social e do Trabalho, foi feito na UNICAMP. Nele, Denis pesquisou as políticas de emprego no século XX e o significado da ruptura neoliberal. Atualmente, Denis é professor da FACAMP e da UNICAMP, onde também é pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a Constituição Cidadã transformou-se nesses mínimos sociais?
Denis Maracci Gimenez – A Constituição de 1988 (1) é muito ampla do ponto de vista da construção de um Estado de cidadania no Brasil. Ela foi feita em meio às lutas pela redemocratização do País (2) na década de 1980, pensando exatamente sobre a idéia do resgate da dívida social, que, de alguma maneira, empurrava as forças políticas envolvidas no processo de redemocratização no fim do regime militar.
Assim, ela é um objeto social extremamente avançado. A questão é: para um projeto social avançado, é um imperativo o progresso material do País, ou seja, é impossível pensar um projeto social avançado com lento progresso material e baixo crescimento econômico. Então, essas forças reformadoras de 1980 pensavam na construção, no avanço, no resgate da dívida social, ou seja, num projeto social avançado do País, mas nem sabiam que isso pressupunha a retomada do crescimento econômico. O problema que nós assistimos na década de 1980, quando o Brasil já estava em ritmo lento em relação ao seu crescimento, e nos últimos 15 anos, é que esse padrão de baixo crescimento levou ao aumento das dificuldades, do ponto de vista da recuperação do desenvolvimento sustentável da economia. Com isso, a década perdida já trouxe indícios de uma taxa da economia muito baixa, em relação aos 50 anos da nossa industrialização, e que só vem se concretizando nesses últimos 15 anos.
Ao final da década de 1980, o projeto liberal de reformas que chegou ao País vindo de fora, mas com grande articulação interna, prometeu, a partir da concepção e da execução de um conjunto de reformas liberais, que o crescimento econômico voltaria ao Brasil. E, nos últimos 15 anos, não só o crescimento não voltou como o padrão de crescimento é inferior ao dos anos 1980.
IHU On-Line – E o que isso significa?
Denis Maracci Gimenez – Na realidade, a estagnação econômica aprofundou-se. Com o baixo crescimento econômico, a Constituição de 1988 e o projeto social nela inscrito encontraram enormes limites para sua implementação. Nesse sentido, o que eu estou dizendo no trabalho é que, pelos resultados, a partir da ordem liberal na década de 1990, é possível oferecer à sociedade brasileira um projeto social pobre para os pobres, e se encontram enormes dificuldades em oferecer tudo aquilo ou parte daquilo que está inscrito na Constituição de 1988 como um projeto de sociedade com estruturas de proteção social mais avançadas.
IHU On-Line – Como o senhor vê a aceitação da população em relação ao que foi prometido na Constituição de 1988 e ao que realmente foi implementado?
Denis Maracci Gimenez – Para a população, é algo de compreensão bastante complexa, porque os efeitos do baixo crescimento, da dificuldade do País em relação ao progresso material, são efeitos muito difusos. Os mais evidentes, como a estruturação do mercado de trabalho, o alto desemprego, a queda dos rendimentos, são fenômenos característicos dos últimos 15 anos no Brasil. A percepção da população é difusa, pois sabe que a situação é difícil, mas vai caminhando. Isso, de alguma maneira, para ideólogos do projeto liberal, para os quais, apesar das dificuldades, o País vem avançando. Eu, no trabalho, defendo uma outra idéia: a de que não só nós não estamos avançando, do ponto de vista da questão social, como eu caracterizo o quadro dos últimos 15 anos do País como um quadro de regressão social. Assim, evidentemente, o Brasil tem muitas dificuldades para voltar a crescer.
A regressão social da qual eu falo, tanto a econômica como a social, eu entendo da seguinte maneira: pensando do ponto de vista da economia, nós estamos ficando para trás em relação àquilo que os países mais dinâmicos têm conseguido fazer. Quando eu digo que o País cresce pouco, estou olhando para o que está acontecendo com o resto do mundo, principalmente nos países emergentes que, por exemplo, na década de 1980 estavam atrás do Brasil e que hoje se encontram numa situação econômica bastante confortável. A regressão do ponto de vista social eu entendo como um processo de distanciamento daquilo que seria uma sociedade desejável para aquilo que está acontecendo de fato. A regressão aqui, portanto, é um critério relativo.
IHU On-Line – E, algum dia, o liberalismo pode alavancar a economia brasileira, conforme planejado pelos implementadores da Constituição?
Denis Maracci Gimenez – Não. Apesar de as promessas feitas pelos liberais no começo dos anos 1990 de que, se nós fizéssemos as reformas econômicas liberais, o País voltaria a crescer, não foi o que aconteceu. Ao contrário, essas promessas de retomada do crescimento não se concretizaram nos últimos 15 anos, e o País tem crescido menos do que cresceu nos anos 1980. Foi uma promessa que não concretizou-se e não há indícios de que se concretize. Eu digo isso independentemente das forças políticas que vêm governando o Brasil, com diferentes partidos políticos, diferentes espectros sociais atuando junto ao governo. O resultado tem sido um só: a estagnação do crescimento econômico e, do meu ponto de vista, do agravamento da questão social.
IHU On-Line – Quais são as principais conseqüências da estagnação econômica hoje?
Denis Maracci Gimenez – Por exemplo, com esse padrão de crescimento que nós temos aí, estamos perdendo espaço no mercado internacional, pois este espaço ocupado hoje é inferior ao que ocupávamos no final dos anos 1980. Nos últimos 15 anos, o País regrediu muito. A falta de crescimento econômico impõe conjuntos de limitações do ponto de vista da própria economia, da atualização do parque industrial, da capacidade de competição da economia brasileira no exterior. Já do ponto de vista social, impõe sérios limites às políticas públicas.
A verdade hoje é que todo debate sobre a questão fiscal no Brasil é um debate feito em torno de uma economia que não cresce. Portanto, numa economia com baixo crescimento, como é que se ampliam os gastos públicos? A primeira alternativa sempre é o aumento da carga tributária, que é o que aconteceu e, paradoxalmente, foi sob a ordem liberal que a carga tributária no Brasil subiu como nunca. É uma escolha de Sofia, porque com um conjunto de interesses que recaem sobre o gasto público com lento crescimento precisamos escolher sempre se vamos atender, por exemplo, à educação básica ou superior, à saúde ou à previdência etc. Levando em conta que todas essas áreas são importantes, o baixo crescimento tem impactos terríveis sobre as contas públicas e, mais do que isso, sobre uma ordem econômica que prima pela defesa dos interesses financeiros. Então, não só no caso dos gastos públicos ficamos limitados, tendo como uma rubrica muito importante os juros e os recursos financeiros.
Como conseqüência, hoje você fica vivendo um conjunto de dilemas: os recursos para pagamentos de juros são sagrados, e o que sobrar será ajustado para ver as possibilidades de construir rodovias, melhorar os portos, fornecer condições de educação para todos etc. Pode-se perceber que temos uma limitação em relação aos gastos públicos, ao mesmo tempo em que ele possui um conjunto de interesses concretos da sociedade brasileira, onde há uma priorização clara em relação aos compromissos financeiros em detrimento às necessidades de promoção de investimentos em infra-estrutura e na área social. Com isso, só é possível fazer um atendimento social precário no Brasil. Como eu disse a você, cabe fazer políticas pobres para os pobres.
IHU On-Line – Celso Furtado, certa vez, afirmou que ainda estamos muito longe da sociedade com a qual nós sonhamos. Há chances ainda de alcançarmos essa sociedade ideal do ponto de vista social e econômico?
Denis Maracci Gimenez – Nós, as forças democráticas do País, os homens de bom coração, que não acreditamos no fim da história, devemos ainda evidentemente manter nossas posições firmes na crença de um futuro melhor. Agora, eu acho que podemos, como pessimistas nos diagnósticos e otimistas na ação, dar o primeiro passo para organizarmos as forças de transformação no País, e esse primeiro passo é olhar a realidade social hoje de frente e com coragem. Não podemos reduzir a certas particularidades o quadro social brasileiro, que é terrível, numa economia que encontra enormes dificuldades e que deve ser olhada de frente para termos minimamente a dimensão dos desafios colocados. O que eu digo na tese é que o projeto liberal tem conseguido consolidar, no País, nos últimos 15 anos, independentemente do governo, o baixo crescimento e, mais do que isso, derivado dele, as possibilidades limitadas para o enfrentamento da questão social no Brasil. Então, é o primeiro passo para buscarmos saídas e encararmos isso de frente.
IHU On-Line – Como o senhor vê a questão da industrialização hoje no Brasil?
Denis Maracci Gimenez – É uma área onde nós temos grandes dificuldades. Se olharmos para a política econômica, é evidente que existe uma política que impõe sérias dificuldades ao setor produtivo nacional. Há problemas com os juros altos, como o que temos praticado, e com o câmbio valorizado, que expõe o setor produtivo nacional à concorrência externa sob condições extremante desfavoráveis. Os juros e o câmbio, hoje, no País, sem que haja uma política industrial, são uma combinação explosiva que me leva a conclusões terríveis sobre a situação da indústria no País. Então, a quebra de cadeias industriais gera uma situação difícil do ponto de vista da obtenção de financiamentos.
Na realidade, o setor industrial encontra enormes dificuldades que não são de agora, mas vêm dos anos 1990, é por isso que o Instituto de Estudos de Desenvolvimento Industrial e vários outros estudiosos dizem que o Brasil vive um processo de desindustrialização relativa, porque o setor industrial vem investindo nas áreas de ponta mais complexas, na participação dos setores que agregam maiores valores. Eu olho para o setor industrial, que é um setor chave para o desenvolvimento do País, e vejo que não é possível pensarmos que uma economia complexa como essa, que nos final dos anos 1970 era a oitava economia do mundo, terá uma saída razoável no agronegócio ou plantando cana. Historicamente, sabemos o que significa voltar a fundar a economia em produtos primários. Não podemos, no entanto, pensar que a saída seja transformar o País num canavial. Daí a importância de defendermos a indústria nacional, em que ela cumpre um papel fundamental, junto com uma agricultura de alta produtividade.
Notas:
1. Constituição brasileira de 1988 é a Lei Maior vigente no Brasil, segundo o qual rege-se todo o ordenamento jurídico do País. Alguns dizem que esta Carta seguiu uma longa tradição histórica brasileira já presente na Constituição de 1934 e na Constituição de 1946. É a tentativa de combinar a igualdade política formal típica do liberalismo estrito, próprio da constituição de 1891, com o reconhecimento de direitos sociais que garantissem alguma medida de igualdade real, para o que ela pressupunha uma forte intervenção do Estado na economia capitalista. Independentemente das controvérsias de cunho político, a Constituição Federal de 1988 continuou restringindo o conceito de empresa nacional e criou novas garantias constitucionais aos cidadãos e às liberdades constitucionais, como o mandado de injunção e o habeas data.
2. Brasil, após o período ditatorial iniciado com o Golpe de 1964, o processo de redemocratização teve início no governo do general João Baptista Figueiredo, com a anistia aos acusados ou condenados por crimes políticos, processo perturbado pela linha dura. Em dezembro de 1979, o governo modificou a legislação partidária e eleitoral e restabeleceu o pluriparditarismo. A Arena transformou-se no Partido Democrático Social (PDS), e o MDB acrescentou a palavra partido à sigla, tornando-se o PMDB. Outras agremiações foram criadas, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT), de esquerda, o Partido Popular (PP) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de centro-direita. Alguns partidos, como o Partido Comunista do Brasil ainda permaneceram proibidos. Com o agravamento da crise econômica, inflação e recessão, os partidos de oposição ao regime cresceram; da mesma forma, fortaleceram-se os sindicatos e as entidades de classe.
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"Não podemos pensar que a saída seja transformar o País num canavial". Entrevista especial com Denis Maracci Gimenez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU