11 Junho 2011
Desde o dia 15 de maio eclodiu na Espanha o movimento chamado 15-M, com o objetivo de contestar o atual sistema político.
Sobre o tema, a IHU On-Line entrevistou por e-mail a professora Marina Garcés, da Universidade Aberta da Catalunha e da Universidade de Saragoza.
Para ela, trata-se de "um grito da sociedade inteira. Um grito de dignidade frente às narrações catastrofistas da crise, que afundaram o país no medo e seus cidadãos na impotência. Agora, as pessoas se sentem dignas. Não sabemos se mudaremos o país, nem se conseguiremos mudar as coisas, mas já mudou o fundamental: a relação com nós mesmos e com a nossa capacidade de tomar a vida em nossas mãos".
Ela percebe que a própria ideia de democracia está sendo colocada em questão com as manifestações do movimento quando questiona: "Que novos sentidos da palavra democracia nasceram e estão começando a ser experimentados com a onda de tomada de praças que entra na Europa de sul a norte?".
E conclui: "O 15-M só terá tradução política transformando a própria política. Aí está o desafio. Esse é o horizonte em que devemos trabalhar. O caminho, para isso, não é feito só de ideias e de desejos. Já está traçado nas praças".
Marina Garcés é professora de Filosofia da Universidade Aberta da Catalunha e da Universidade de Saragoza. É autora de En las prisiones de lo possible (Barcelona: Editorial Bellaterra, 2002). É uma das fundadoras de Espai en Blanc, um coletivo que se propõe a tornar o pensamento apaixonante, abrindo brechas entre o ativismo e a academia, o discurso e a ação, as ideias e a experimentação, numa aposta ao mesmo tempo filosófica e política.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em razão de que a Spanish revolution luta?
Marina Garcés - Há muitas motivações que confluem em uma só: "Já basta. Queremos viver". Viver quer dizer aqui muitas coisas: comprar uma casa sem pagar com a vida por ela, estudar com a expectativa de ter um futuro, envelhecer sem medo da pobreza, deixar de ser enganado por políticos, banqueiros, etc. E, sobretudo, a participação inclusiva de todas as pessoas na construção da mudança que queremos. Diz-se que é uma mobilização de jovens sem futuro: sim e não. Obviamente, os jovens têm o tempo, a força e a disponibilidade para tomar as praças. Mas é um grito da sociedade inteira. Um grito de dignidade frente às narrações catastrofistas da crise, que afundaram o país no medo e seus cidadãos na impotência. Agora, as pessoas se sentem dignas. Não sabemos se mudaremos o país, nem se conseguiremos mudar as coisas, mas já mudou o fundamental: a relação com nós mesmos e com a nossa capacidade de tomar a vida em nossas mãos.
IHU On-Line – As referências às mobilizações sociais recentes na Espanha indicam a singularidade do movimento. A seu ver, o que tem de novo nessas mobilizações?
Marina Garcés - É um movimento novo que articula elementos já existentes. E, primeiro lugar, nasce com a repetição de um gesto radical: a tomada das praças, que foi acontecendo ao longo de todo este inverno no mundo árabe e que ainda não terminou. Essa repetição, na Espanha, põe em marcha um processo em que todas as lutas e os mal-estares já presentes em cada rua e em cada cidade do país se articulam e se organizam juntos. Essa é a principal novidade: a articulação. Articulação significa duas coisas ao mesmo tempo: organização e horizonte de sentido. O 15-M introduz essas duas dimensões. Pela primeira vez depois de muito tempo, coletivos, movimentos, lutas de bairro ou setoriais e muita gente anônima estão sendo capazes de se organizar conjuntamente de maneira ágil, efetiva e, ao mesmo tempo, entendem suas diversas práticas sob um mesmo horizonte de sentido. Essa é a grande novidade, a fonte de alegria e de força do 15-M. Isso não quer dizer que não houvesse nada antes. Insiste-se nos meios de comunicação: onde estava toda essa gente há pouco tempo? De onde surgiu essa capacidade de mobilização? Seria um grande erro pensar que saiu do nada. A lógica do milagre é perigosa, porque nos convida a pensar que, assim como surgiu, pode desaparecer no ar e não deixar rastro. Há uma longa trajetória de lutas (contra a guerra, 13-M, "V de vivienda", movimento contra a Lei Sinde, greve geral do ano passado, etc.) que confluem no 15-M. Isso não significa que ele seja seu prolongamento ou uma luta a mais nessa lista. É um salto qualitativo que abre um novo cenário político de caráter irreversível.
IHU On-Line – Em que medida esse movimento contribui para repensar/renovar as práticas políticas?
Marina Garcés - A grande renovação que esse movimento introduz é que ele rompe a dualidade movimentos/cidadania "normal". Isto é, rompe a ilusão de uma sociedade normalmente despolitizada que é atravessada por movimentos vinculados ou pela excepcionalidade (uma guerra, um protesto, etc.) ou pelas minorias (reivindicações dos migrantes, homossexuais, etc.). O horizonte de sentido do 15-M se abre para tudo e para todos. É um horizonte inclusivo, tanto em sua linguagem quanto em suas aspirações, que, além disso, assume o desafio de querer pensar tudo. As comissões que se puseram a trabalhar em cada praça tomada, em tantas cidades e povoados de todo o país, abordam todas as questões imagináveis, desde a política, a economia, a cultura, o meio ambiente, assim como as relações pessoais, a saúde, a educação, etc. Combina-se um alto nível combativo com um trabalho mais paciente de renovação de todos os âmbitos da vida. O 15-M articula a interrupção do sistema que nos acorrenta ao lançamento de novos modos de vida. E sempre a partir de uma mesma ordem: o que começa aqui não é para alguns alternativos, nem para uma vanguarda consciente, mas sim para todos. Todos sabemos e padecemos do que acontece. Todos, juntos, temos a capacidade de mudança. Isso introduz uma grande transformação, por exemplo, com relação ao movimento antiglobalização e os fóruns sociais: as pessoas que estão na rua no 15-M não se entendem como parte de um movimento determinado, e aqueles que tomam parte nas comissões e nas assembleias de bairro não o fazem enquanto membros de associações, ONGs, etc., mas sim por si mesmos, façam ou não parte de entidades sociais. O protagonismo político mudou radicalmente.
IHU On-Line – Vocês se referem muito à força do anonimato. Que significa isso?
Marina Garcés - O 15-M, assim como algumas das manifestações que o precederam, é um claro exemplo do que chamamos, em Espai en Blanc, de "a força do anonimato". Força do anonimato é o nome de uma subjetividade política que escapa à lógica dos nomes: nomes da representação política, identidades que nos separam entre maiorias e minorias, e marcas que fazem de cada uma das nossas vidas uma empresa de valorização capitalista. A força do anonimato é a que tem um nós que desocupa, portanto, nomes, identidades e marcas. É um nós que não tem uma resposta fácil para o "quem?" que o interroga, mas que, com sua presença, desarticula a própria interrogação do poder. Dito dessa forma, poderia parecer que a força do anonimato é algo quase sobrenatural, alheio ao dia a dia da vida social e política. Pensamos que é exatamente o contrário: a força do anonimato é a que cada um de nós tem quando faz de sua vida um problema comum.
IHU On-Line – Algumas das frases frequentemente repetidas no movimento são "ninguém nos representa, não somos mercadorias", que expressam a indignação da população com as instituições políticas e mostram o caráter de rebelião do movimento. Com o desenrolar do tempo, esta opção pela resistência não pode provocar um certo cansaço no movimento?
Marina Garcés - O 15-M tem uma dupla dimensão inseparável. Como dizíamos antes, há um "já basta" que se expressa em frases como as que você assinala. Mas há também um "queremos viver" como se reflete no trabalho prático das comissões, na vida dos acampamentos, no renovado desejo de pensar e de escrever. Em um texto que foi lido no dia 4 de junho na [praça] Sol (Madri), dizia-se o seguinte: "Havíamos interiorizado suas pressas, seus ritmos, sua velocidade. Basta. Vamos devagar porque vamos longe. Vamos devagar porque queremos ir todos juntos. Vamos devagar porque queremos fazer bem feito. Vamos devagar porque o caminho é tão importante quanto o resultado". O 15-M inaugura outra temporalidade. Mas é uma temporalidade dentro e contra a do tempo-máquina do capitalismo. Não devemos ser ingênuos, porque a vitória não está em nada garantida. Muito pelo contrário. O que sim está claro é que o que aconteceu até agora é irreversível, assim como todo começo revolucionário: marca um antes e um depois sobre cujas consequências nos cabe agora trabalhar para que não fiquem sufocadas.
IHU On-Line – Que relação há entre o que está acontecendo na Espanha e as mobilizações recentes no Oriente Médio?
Marina Garcés - A relação é óbvia e consciente por parte de cada praça tomada desde um primeiro momento. Em Barcelona, assim como em outros lugares, áreas da Praça Catalunya foram marcadas explicitamente com nomes que articulam uma nova geografia centrada no vínculo desse gesto com as praças tomadas no norte da África, especialmente com a praça Tahrir. Além do caráter mítico e midiático que essa referência possa ter, é importante assinalar como ela introduz dois deslocamentos fundamentais: em primeiro lugar, abre uma nova geografia simbólica e política. A partir da tomada das praças, gera-se uma nova territorialidade das alianças e dos referentes políticos, que tem como palco principal o Mediterrâneo, com suas duas margens, nos últimos séculos tão pouco comunicadas. Depois das múltiplas tentativas institucionais de criar, a partir de cima, um espaço político e, sobretudo, comercial euromediterrânico (conhecido como União para o Mediterrâneo ou Processo de Barcelona), são agora as pessoas, nas ruas, que estão criando essa relação sobre outras bases, sobre outros valores e sobre outro horizonte de expectativas. Isso tem consequências para a própria ideia de Europa, em um momento de crise econômica extrema, que põe em questão a sobrevivência das economias do Sul e sua relação com os países do norte. O que fará a União Europeia diante dessa nova geografia? Que novos processos se darão a partir desse novo mapa de alianças? Até onde pode nos levar?
A ideia de democracia em questão
Essas perguntas nos colocam sobre o segundo deslocamento que eu gostaria de mencionar: a relação entre os movimentos nos países árabes e na Espanha põe em questão a própria ideia de democracia e a arranca do monopólio dos países e das ideologias que tradicionalmente se fizeram valer como seus "fiadores". Quando começou a tomada das praças na Tunísia e no Egito, os meios de comunicação europeus logo entoaram a canção, repetida quase como um mantra: "Esses jovens querem desfrutar o que já temos, querem gozar da nossa democracia". Mas muitos tinham a sensação contrária: esses jovens, perfeitamente informados, sabem muito bem o que têm e não querem a mesma coisa. Em sua luta pela democracia, dão um passo à frente, põem-se à nossa frente e estão nos mostrando que, embora a Europa não tenha governos ditatoriais, nossos sistemas políticos e econômicos também não são realmente democráticos. O movimento 15-M começou com uma convocatória de manifestação lançada pela plataforma "Democracia real já". Que novos sentidos da palavra democracia nasceram e estão começando a ser experimentados com a onda de tomada de praças que entra na Europa de sul a norte?
IHU On-Line – Em sua opinião, ao que se deve a extraordinária derrota do PSOE nas últimas eleições e a vitória do PP? A Espanha caminha para a direita? Ou PSOE e PP já não se diferenciam?
Marina Garcés - Antes, dizíamos que não deveríamos ser ingênuos. No mesmo fim de semana, começou o movimento 15-M e houve uma vitória eleitoral muito ampla da direita na Espanha, que não está isolada, mas continua a passagem marcada em outros países europeus (como agora mesmo em Portugal). A direita sabe trabalhar em tempos de crise. Conecta-se com o mal-estar das pessoas mais desfavorecidas e, ao mesmo tempo, tem as medidas de força que os "mercados" precisam para impor sua ideia do que é uma economia que funcione. Frente a isso, é normal que a esquerda parlamentar fique derrotada. Ela não tem nada a oferecer, mais do que uma má e ineficiente cópia da direita. Dentro do marco da política conhecida, é lógico que, nestes momentos, a direita arrase. O bom e o interessante é que o 15-M introduz outro marco. Não é uma peça a mais do jogo político que já conhecíamos, mas ela abre, sim, outro campo de jogo que distorce o anterior. Será decisivo que ele não se deixe nem capturar como uma força política a mais, nem isolar e neutralizar como um campo "à parte" ou à margem. O 15-M só terá tradução política transformando a própria política. Aí está o desafio. Esse é o horizonte em que devemos trabalhar. O caminho, para isso, não é feito só de ideias e de desejos. Já está traçado nas praças.
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"Já basta. Queremos viver". A força do anonimato. Entrevista especial com Marina Garcés - Instituto Humanitas Unisinos - IHU