25 Setembro 2010
O desejo é constitutivo da natureza humana, mimético, e por isso não é único ou original, mas socialmente determinado, descreve a filósofa Sílvia Saviano Sampaio, professora assistente do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. “O desejo é aquilo que o outro deseja”.
E completa:
“Segundo Girard, os comportamentos sociais são mimeticamente transmitidos. Aprendemos a desejar os mesmos objetos desejados por alguém que tomamos como modelo”. A rivalidade mimética é produto do desejo mimético e se converte em círculo vicioso quando o imitador “se transforma em modelo de seu modelo e assim sucessivamente, numa simetria cada vez mais abrangente”.
De acordo com Sílvia, “quando o objeto desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente”. O mecanismo do bode expiatório é a canalização da violência mimética através da cultura, mas é apenas através do cristianismo, conforme as ideias de René Girard e Kierkegaard, que se pode quebrar a espiral de violência. “No cristianismo trata-se do verdadeiro Deus, uma divindade não violenta que precisa tornar-se vítima, e não o Deus violento da religião arcaica. Cristo oferece a outra face e redime seus algozes. Não busca vingança, não derrama mais sangue. É pela cruz, pelo amor, que se dá a interrupção do ciclo de violência”.
Graduada em Filosofia e mestre em Filosofia da Educação pela PUC-SP, Sílvia é doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP com a tese A subjetividade da existência em Kierkegaard. É autora do artigo Kierkegaard e Girard: o desejo mimético, que inspirou essa entrevista concedida, por email, à IHU On-line.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é o desejo mimético ao qual se refere René Girard (1)?
Sílvia Sampaio - No seu primeiro livro, Mensonge romantique, verité romanesque, Girard chamava a atenção para a “mentira romântica”, questionava a crença absoluta no individualismo, sobretudo em relação ao objeto do desejo. Segundo Girard, não desejamos algo ou alguém porque somos seduzidos diretamente pelo objeto. Ao contrário, desejamos esse objeto porque ele é desejado ou possuído por alguém que temos como modelo. Tal relação é, na maioria das vezes, inconsciente. O desejo faz parte da natureza humana. O desejo é mimético, ou seja, não é único ou original, é socialmente determinado, desejo aquilo que o outro deseja. As relações humanas são mediadas pela presença constitutiva de um “outro”. A verdade romanesca representa o reconhecimento de que o amor à primeira vista é sempre de segunda mão.
IHU On-Line - Por que é mais difícil apaziguar o desejo de violência do que desencadeá-lo?
Sílvia Sampaio - Segundo Girard, os comportamentos sociais são mimeticamente transmitidos. Aprendemos a desejar os mesmos objetos desejados por alguém que tomamos como modelo. Assim, criamos uma área potencial de conflito, já que estaremos envolvidos na disputa do mesmo objeto e, desse modo, o modelo se transformará em rival. As crises miméticas são destrutivas porque envolvem toda a comunidade e não apenas indivíduos isolados. No auge da crise, não haverá mais diferença entre sujeito e modelo, entre imitador e imitado, pois, disputando o mesmo objeto, transformaram-se todos em adversários. O desejo mimético desencadeia a rivalidade mimética, num círculo vicioso em que o imitador se transforma em modelo de seu modelo e assim sucessivamente, numa simetria cada vez mais abrangente.
Esta simetria produz a duplicidade. A duplicidade, ao disseminar-se, provoca a indiferenciação, tornada possível pelo desaparecimento do objeto. No calor da rivalidade, os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados, idênticos. Girard analisa o perigo representado pelos duplos, pelos gêmeos e pelos irmãos inimigos, exemplos de simetria e perigo de indiferenciação.
A rivalidade mimética, geradora do desaparecimento das diferenças, que desemboca na violência, evidencia a crise mimética, crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais. Para que a mímesis se torne puramente antagonista, “o objeto precisa desaparecer”. Quando o objeto desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente. A crise mimética, acirrada, transforma-se em conflito mimético, que poderá resultar na destruição do grupo social ou da ordem cultural. Configura-se, assim, uma crise sacrificial, cuja resolução tem por objetivo a preservação do grupo social. Desse modo, os desejos e as rivalidades começam como fenômenos isolados que evoluem para “uma contaminação mútua” das ocorrências, à medida que a mímesis se torna cumulativa, passando a envolver vários membros de uma mesma comunidade.
Como a violência mimética pôde ser controlada na ausência de formas de mediação que integram o que denominamos cultura? Através da descoberta do mecanismo do bode expiatório: a violência coletiva é canalizada contra uma vítima expiatória. “Criamos rivalidade na mímesis, competindo pelo mesmo objeto, desejando os desejos do nosso modelo, o outro. Esta admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, é a constatação clara de ser insuficiente. Constatação esta muito angustiante e incômoda. Já o modelo, o intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo. Pelo contrário, faz de tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto. Pois, que valor tem o objeto, senão pelo desejo de outrem? Este é o ciclo infernal do desejo. E também dos conflitos” (GIRARD, René, Entrevista à Revista CULT, n. 134).
IHU On-Line - O conceito de inconsciente está presente na teoria girardiana?
Sílvia Sampaio - Segundo Girard, a violência é constitutiva do ser humano. Ele enfatiza a inevitabilidade da violência mimeticamente engendrada. Trata-se de reconhecê-la, aprender a lidar com ela, dominá-la, circunscrever sua atuação, dirigi-la para um alvo aceitável para o grupo social, papel fundamental exercido pelo sacrifício que reveste diferentes roupagens nas diferentes culturas e, na maioria das vezes, pertence à esfera da religião, ao domínio do sagrado. O sistema baseado no mecanismo do bode expiatório, que assumirá todas as culpas, canalizando para si a violência dispersa na sociedade, possui uma dimensão religiosa. Seu sacrifício provocará uma catarse coletiva, restaurando a serenidade e a estabilidade anteriores à crise. Girard se refere a esse mecanismo como mecanismo do bode expiatório, mecanismo vitimador ou mecanismo mimético. Sua importância deve-se a que ele direciona a violência coletiva contra um único membro da comunidade, arbitrariamente escolhido. É um dispositivo inconsciente e eficaz para resolver conflitos, caso contrário, irromperia a guerra civil. Daí a existência de um dispositivo que permite matar coletivamente à distância, sem nenhum contato poluidor com a vítima, como ocorre quando se força alguém a jogar-se de um penhasco. Enquanto apedreja a vítima, a comunidade toda está empurrando-a até que decida saltar do penhasco “por si mesma”. Nessa morte todos tomam parte, mas ninguém é responsável por ela. Sobretudo, não se toca a vítima.
Em Um longo Argumento do Princípio ao Fim (Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. Trad. de Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro, Topbooks, 1994, p. 204), Girard admite que o conceito de inconsciente não é tão estranho à sua teoria e que evitara usar o conceito de inconsciente em Coisas ocultas desde a fundação do mundo, para que não fosse aproximado de Freud. Assinala, então, que o inconsciente freudiano está “repleto de violência” e que nas suas últimas obras como Moisés e o monoteísmo, Freud oferece “riquíssimo material para a teoria mimética”. Girard acredita que o inconsciente é coletivo. “O único ponto correto na teoria de Jung consiste na postulação de um inconsciente coletivo, porém num sentido bem diverso do que postula a teoria mimética”.
IHU On-Line - Quais são os efeitos miméticos da violência?
Sílvia Sampaio - O desejo mimético conduz à escalada de uma violência imanente aos grupos sociais e, ao se configurar como conflito, busca uma válvula de escape. Essa válvula de escape pode tomar a forma de uma conflagração interna ou de uma guerra contra um inimigo externo, que colocam em perigo a própria sobrevivência do grupo social e de sua ordem cultural. Ela também pode ser institucionalizada através de um ritual em que a violência difusa acumulada tenha uma resolução catártica dirigindo-se contra uma única vítima, o bode expiatório ou vítima sacrificial, escolhidos de acordo com critérios mais ou menos pré-estabelecidos e cujo sacrifício preserve o grupo ou a ordem cultural em questão.
IHU On-Line - Em que consiste o ciclo infernal do desejo?
Sílvia Sampaio - Criamos rivalidade na mímesis, competindo pelo mesmo objeto, desejando os desejos do nosso modelo, o outro. Esta admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, é a constatação clara de ser insuficiente. Constatação esta muito angustiante e incômoda. Já o modelo, o intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo. Pelo contrário, faz de tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto. Pois, que valor tem o objeto, senão pelo desejo de outrem? Este é o ciclo infernal do desejo. E também dos conflitos.
Porém, no livro de 1994, Um longo argumento do princípio ao fim. Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. (Trad.: Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro, Topbooks), Girard afirma que a violência derivada da natureza mimética do desejo não é inevitável: “há pessoas que não se deixam levar pela violência mimética, o indivíduo não está inexoravelmente preso ao desejo mimético, ele pode resistir ao seu mecanismo” (p. 214).
IHU On-Line - Nossa sociedade está fundada sobre a violência. Quais são as possíveis compreensões que podemos fazer desse fenômeno à luz da filosofia de Kierkegaard e da obra de Girard em relação à nossa época? Além disso, qual é a o papel da inveja e do nivelamento dos processos de violência humanos?
Sílvia Sampaio - De acordo com Girard, na entrevista à Revista Cult (número 134), as descobertas coletivas são extremamente perigosas, e um exemplo desta periculosidade encontra-se no caráter altamente bélico da primeira metade do século XX. Nosso século afronta-nos com desafios inéditos, relacionados às descobertas devidas ao desenvolvimento científico, com as quais não somos capazes de lidar de maneira adequada. Devemos tentar ver todos os conflitos e guerras que temos hoje sob a ótica do mecanismo mimético, tanto a mímesis do desejo quanto do uso da violência.
Muito importante, também, é o alerta de Girard: a análise mimética não é uma receita, jamais deve ser reduzida a uma receita pronta, pois o mimético é “fluidez absoluta”, é o antissistêmico por excelência. Não devemos esquecer que a própria realidade nos impõe constantes questionamentos.
Kierkegaard (2) por sua vez, faz um diagnóstico sombrio da sociedade dinamarquesa na primeira metade do século XIX. Após o colapso da economia em 1813 e a derrota militar para os britânicos no mesmo ano, a nação tornou-se próspera, impregnada de uma mentalidade burguesa de mercado público, um modo de vida caracterizado pela prudência. A hegemonia dos processos de modernização teve poderosa influência sobre o processo de autoconstituição do indivíduo. A vida interior estava atribulada pelos sofrimentos do conforto burguês: tédio, inveja, uma espiritualidade banal, a volatilização das categorias religiosas e éticas da cristandade. Em suma: a ausência de paixão.
Sociedade de rebanho
O uso do termo “rebanho” para descrever a sociedade de massa implica que se cai de um nível humano de existência para um nível meramente animal. Pois o Indivíduo – ser de relações consigo mesmo, com os outros e com o Inteiramente Outro – opõe- se à massa, ao anonimato. É o desejo que “guia” a consciência “sobre o caminho da vida” para que ela possa tomar consciência de si mesma. Para Kierkegaard, cada fase do desenvolvimento do indivíduo se baseia numa forma de paixão. No estágio estético da existência, a paixão desencadeia o “impulso para a existência”, e é a forma inicial da consciência de si mesmo. A paixão também é a porta de entrada no estágio ético da existência, na medida em que fornece alternativas ou possibilidades de escolha. E é na paixão religiosa de fé que o indivíduo é elevado a “mais alta expressão da subjetividade”. Porém, sob a força niveladora do dinheiro, o desejo é substituído pela prudência, pela sobriedade, pelo senso comum, que determinam a destruição do indivíduo. A única identificação remanescente é a quantitativa. Vemos, assim, que respeitadas as diferenças entre o pensamento de René Girard e o de Kierkegaard podemos encontrar alguns pontos de contato entre os dois pensadores.
Deixemos que o próprio René Girard fale por nós:
“Minhas ideias estão bem mais próximas às de Kierkegaard do que foi visto nas entrevistas que dei e nos artigos escritos sobre minha obra. Para mim, o desejo do impossível e o não-desejo ainda estariam de acordo com mecanismos miméticos. Kierkegaard constatou, em sua análise dos três estágios do ser, a presença de um homem que se escora no outro. Possuindo um vazio existencial aterrador, ele procura na observação do outro, do que o outro possui, do que o outro aparenta, uma forma de saber quem é e como sentir-se pleno. Portanto, para ser ele mesmo, este homem necessita tomar conhecimento do outro, como no mecanismo do desejo mimético, onde este desejo somente se faz possível pela intermediação do que é e deseja um outro” (Revista Cult, n. 134).
IHU On-Line - Haveria a possibilidade de se interromper o ciclo de violência?
Sílvia Sampaio - Tanto para Girard quanto para Kierkegaard, no cristianismo, quebra-se o ciclo da violência. No cristianismo trata-se do verdadeiro Deus, uma divindade não violenta que precisa tornar-se vítima, e não o Deus violento da religião arcaica. Cristo oferece a outra face e redime seus algozes. Não busca vingança, não derrama mais sangue. É pela cruz, pelo amor, que se dá a interrupção do ciclo de violência. O cristianismo mostrou que a sociedade humana produzia vítimas únicas. A crucificação desobstruiu o caminho para o entendimento do processo da vítima expiatória. “Jesus salva porque o solapamento do mecanismo do bode expiatório por ele provocado é, em primeiro lugar, a oferta do Reino de Deus, ou seja, de uma existência inteiramente livre da violência”. (Um longo Argumento do Princípio ao Fim. Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. Tradução Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro, Topbooks, 1994, p. 217.)
Notas:
1.- René Girard (1923): filósofo e antropólogo nascido na França. Partiu para os Estados Unidos para dar aulas de francês. De suas obras, destacamos La Violence et le Sacré (A violência e o sagrado), Des Choses Cachées depuis la Fondation du Monde (Das coisas escondidas desde a fundação do mundo), Le Bouc Émissaire (O Bode expiatório), 1982. Todos esses livros foram publicados pela Editora Bernard Grasset de Paris. Ganhou o Grande Prêmio de Filosofia da Academia Francesa, em 1996, e o Prêmio Médicis, em 1990. O seu livro mais conhecido em português é A violência e o sagrado (São Paulo: Perspectiva, 1973). Sobre o tema desejo e violência, confira a edição 298 da revista IHU On-Line, de 22-06-2009 (Nota da IHU On-Line).
2.- Søren Kierkegaard (1813-1855): filósofo existencialista dinamarquês. Filosoficamente, faz uma ponte entre a filosofia de Hegel e aquilo que viria a ser o existencialismo. Kierkegaard negou tanto a filosofia hegeliana de seu tempo, bem como aquilo que classificava como as formalidades vazias da igreja dinamarquesa. Boa parte de sua obra é dedicada à discussão de questões religiosas como a natureza da fé, a instituição da igreja cristã, a ética cristã e a teologia. É autor de O Conceito de Ironia (1841), Temor e Tremor (1843) e O Desespero Humano (1849).
A respeito de Kierkegaard, confira a entrevista Paulo e Kierkegaard, realizada com. Álvaro Valls, da Unisinos, na edição 175, de 10-04-2006, da IHU On-Line.. A edição 314 da IHU On-Line, de 09-11-2009, tem como tema de capa A atualidade de Søren Kierkeggard.. Leia, também, uma entrevista da edição 339 da IHU On-Line, de 16-08-2010, intitulada Kierkegaard e Dogville: a desumanização do humano, concedida pelo filósofo Fransmar Barreira Costa Lima. (Nota da IHU On-Line).
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Desejo mimético e violência: a superação através do cristianismo. Entrevista especial com Sílvia Saviano Sampaio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU