11 Março 2024
Na entrevista do Papa Francisco à televisão suíça, ele recordou que a guerra é sempre “uma loucura”. Acrescentou que todos os governantes atuais, embora conscientes desta deriva irracional, são incapazes de resistir às pressões da procura frenética de lucro através da produção contínua de armas. Neste contexto, ele colocou o problema da aplicabilidade do cânone da autodefesa à guerra em curso na Europa Oriental.
Segundo o Pontífice, "as trágicas condições da população ucraniana – caracterizadas em diversas ocasiões pelo Papa através do uso do vocabulário do martírio – levaram-no a perguntar-se se ainda existe proporcionalidade entre o mal da resistência armada e o mal da invasão russa. A resposta do papa é negativa".
O artigo é de Daniele Menozzi, historiador do cristianismo e professor emérito da Normale di Pisa, em artigo publicado por Settimana News, 10-03-2024.
O Papa Francisco deu uma entrevista à Rádio e Televisão Suíça que será transmitida no dia 20 de março. No entanto, as passagens relativas à atitude do pontífice face às guerras em curso foram antecipadas. A menção sobre o conflito na Ucrânia causou protestos generalizados na imprensa. O site do Vaticano considerou, portanto, apropriado divulgar o texto completo da entrevista.
A transmissão, dedicada à cor branca, exortou Bergoglio a expressar suas avaliações sobre o tema a partir de diferentes perfis (o valor do branco para a Igreja, o significado das manchas no branco, as razões da vestimenta branca do papa, etc.). Neste contexto, o entrevistador colocou a questão da “bandeira branca”: hasteá-la na Ucrânia significaria legitimar a arrogância dos mais fortes? Francisco observou que se trata de “uma interpretação”. Quem a levanta, para iniciar uma negociação “com a ajuda das potências internacionais”, realiza um ato não de rendição, mas de coragem, caso a população envolvida no conflito se encontre em condições catastróficas.
Papa Francesco: "L'Ucraina abbia il coraggio della bandiera bianca e di negoziare" #ANSA https://t.co/vYvBBmhK4m pic.twitter.com/ajMR80D2HZ
— Agenzia ANSA (@Agenzia_Ansa) March 9, 2024
Diante das perguntas dos jornalistas, a Sala de Imprensa da Santa Sé esclareceu então que o Papa pretendia apelar à trégua e à busca da paz através dos canais diplomáticos. As palavras do porta-voz do Vaticano manifestam a posição oficial da Santa Sé. Mas é claro que não correspondem exatamente às expressões utilizadas pelo pontífice. Não é por acaso que as interpretações da entrevista seguiram direções diferentes.
Alguns referiram-se à visão geopolítica do pontífice. Ao romper com um Ocidente onde o catolicismo está em declínio e voltar-se em particular para a evangelização da China, Francisco alinha-se com a posição de numerosos países que, sem aprovar o ataque da Federação Russa, desaprovam a linha mantida pela OTAN sobre o conflito na Europa Oriental.
Outros acreditavam que se tratava de um relançamento da reivindicação da Igreja Católica de protagonismo político no cenário internacional. A tentativa de mediação – que encontrou expressão na nomeação de um enviado especial do Papa às capitais envolvidas no conflito – teve certamente razões humanitárias, mas ao mesmo tempo colocou Roma no topo da política mundial. Após o fracasso dessa iniciativa, a proposta de negociação de hoje parece ser uma autocandidatura para aquele papel para o qual as Nações Unidas se mostraram inadequadas.
Outros ainda pensaram que se tratava de um acidente diplomático, que a intervenção da Sala de Imprensa da Santa Sé corrigiu posteriormente. Afinal, não seria a primeira vez. No dia 25 de agosto de 2023, ao receber um grupo de jovens católicos russos, Francisco recordou a construção do império russo por Pedro, o Grande e Catarina II, como um traço identificador do seu país.
Como foi imediatamente salientado, desse discurso resultou a legitimação das conquistas russas na Europa de Leste e, em particular, justificou o nacionalismo russo, que, ao contrário do nacionalismo ocidental, não se baseia no povo, mas no espaço.
🇫🇷 O antigo primeiro-ministro e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Dominique de Villepin, fala da seriedade do momento internacional atual pic.twitter.com/vOq1jGY4Ts
— geopol.pt (@GeopolPt) March 10, 2024
Contudo, pode-se perguntar se não existe uma interpretação diferente que, ao colocar as palavras de Francisco no itinerário das suas posições sobre a paz e a guerra, não seja capaz de fornecer uma leitura coerente com a linha geral do pontificado. Nesse sentido, vale acompanhar, ainda que brevemente, a evolução de seus posicionamentos.
Após a ascensão ao governo da Igreja universal, Bergoglio tomou nota do que a teologia moral havia recolhido do Catecismo Universal da Igreja Católica publicado em 1997. As condições estabelecidas para a única guerra aqui apresentada como moralmente lícita – a da autodefesa – eram tão rígidas que agora era impossível considerar o uso de armas, sob qualquer forma, eticamente justificável. Francisco proclamou então que, quando confrontado com um conflito, a atitude evangelicamente correta para um crente é a “não violência ativa”.
Esta atitude exige obviamente uma construção adequada de instrumentos de intervenção popular para que, face à iminente agressão armada, seja possível implementar uma ação eficaz. Na verdade, trata-se de quebrar o círculo vicioso da violência da guerra sem permitir que a força prevaleça sobre a lei. O mundo católico não fez muito nesta área. Mostrou-se assim completamente despreparado para o momento em que a violação do direito internacional se aproximava em fevereiro de 2022 com a agressão da Federação Russa contra a Ucrânia.
Francisco então tomou nota desta situação. Adiou explicitamente a publicação de uma encíclica sobre a não violência ativa ao seu sucessor, reiterou a necessidade de rever uma teologia agora inútil da guerra justa e sublinhou que, entretanto, tudo o que poderia ser feito era lembrar a legitimidade moral da defesa legítima.
Um ataque militar que ignore os canais de negociação para resolver disputas é sempre eticamente inaceitável. Mas o critério fundamental para julgar a legalidade moral da defesa legítima é a proporcionalidade: o mal que se pretende remediar com o recurso às armas deve ser menor do que o mal que é causado pelo seu uso. Parece-me que as palavras de Francisco encontram aqui a sua explicação óbvia.
Na entrevista o Papa recordou que a guerra é sempre “uma loucura”. Acrescentou que todos os governantes atuais, embora conscientes desta deriva irracional, são incapazes de resistir às pressões da procura frenética de lucro através da produção contínua de armas. Neste contexto, ele colocou o problema da aplicabilidade do cânone da autodefesa à guerra em curso na Europa Oriental.
As trágicas condições da população ucraniana, caracterizadas em diversas ocasiões pelo Papa através do uso do vocabulário do martírio, levaram-no a perguntar se ainda existe proporcionalidade entre o mal da resistência armada e o mal da invasão russa. A resposta do papa é negativa.
Neste ponto podemos recordar uma resposta subsequente à entrevista da Rádio e Televisão Suíça.
Quando questionado sobre a relação do papa com o erro, Bergoglio observou que todos cometemos erros porque somos todos pecadores. Além disso, noutras ocasiões o papa admitiu que tinha de corrigir afirmações erradas. Parece, portanto, que o julgamento sobre a proporcionalidade dos males na guerra na Ucrânia também pode ser atribuído a uma avaliação contingente que pode ser revista.
De momento, com base nas informações de que dispõe o Papa, permanece a sua opinião de que as condições relativas à moralidade da guerra de autodefesa já não existem. Isto não significa uma legitimação da agressão russa, muito menos uma rendição ao invasor. Bergoglio disse claramente que é necessária uma iniciativa internacional para iniciar negociações que ponham fim ao sofrimento da população.
Uma vez alcançada esta condição essencial, caberá às negociações estabelecer as condições de coexistência para resolver as diversas questões políticas em cima da mesa. O ponto crucial é a interrupção de um mal desproporcional à restauração pela força das armas do direito violado. A nova ordem internacional, garantida legalmente pelas potências promotoras da negociação, será fruto do diálogo.
Se assim for, como parecemos poder deduzir do caminho percorrido por Bergoglio sobre o tema da guerra e da paz, podemos responder a quem duvida, já preparando o conclave, sobre o seu estado de saúde com uma das suas frases: a Igreja é governada com a cabeça e não com as pernas.
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O Papa, a Ucrânia, a “bandeira branca” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU