19 Abril 2023
Foco de 'revitalização' da gestão Melo, região reúne comunidades que já lidaram com obras da Arena e da nova ponte do Guaíba.
A reportagem é de Duda Romagna, publicada por Sul 21, 17-04-2023.
Uma das regiões mais valorizadas pela gestão do prefeito Sebastião Melo (MDB), o 4º Distrito – formado pelos bairros Floresta, Navegantes, Humaitá, São Geraldo e Farrapos – vem se transformando há alguns anos. O processo que iniciou lento, ainda no governo de José Fortunati (União Brasil), avançou mais recentemente com a transferência de boa parte da vida noturna da Capital para a região. Além disso, bares, cervejarias e eventos ao ar livre passaram a priorizar o 4º Distrito, com o incentivo do poder público. Em março, dois eventos lotaram as ruas antes tomadas por indústrias, o South Summit, evento de inovação e empreendedorismo que aconteceu no Cais Mauá, no centro da cidade, e que levou happy hours à região, e o Saint Patrick’s Day, em homenagem ao santo irlandês, movimentando o polo cervejeiro. Ambos foram apoiados pelo Executivo, através do Gabinete do Prefeito e da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET).
No entanto, os novos frequentadores não estão sozinhos no 4º Distrito. A região entre a rodoviária e a Arena do Grêmio abriga ao menos seis comunidades com centenas de famílias cada: as vilas Liberdade, Coobal, Voluntários, Areia, Tio Zeca e o Beco X. Diferente do projetado pelo poder público para receber novos frequentadores e comerciantes, esses milhares de antigos moradores relatam conviver com o abandono do Estado e com o medo da repressão policial.
Mapa da área do 4º Distrito elaborado pelo grupo Vizinhos do 4D. (Foto: reprodução)
Para articular a aproximação das comunidades e dos bairros em torno do 4º Distrito, surgiu, em 2019, o coletivo Vizinhos do 4D, descrito pelos seus integrantes como um grupo de moradores “na luta por moradia e construção de identidade cidadã e comunitária”. No diz 8 de abril, o grupo organizou um seminário intitulado “A União da Moradia e a Luta pela Posse: Mediação de Conflito no Território”, em parceria com a União Nacional por Moradia Popular e apoio da Ford Foundation, do Sindimetrô, da Unisinos, do Movimento Vidas Negras Importam e do grupo OCUPAS.
A partir da convergência com líderes comunitários, confeccionaram cartazes retratando a realidade de cada região e suas histórias:
Maior entre as comunidades da região, a Vila Liberdade abriga em torno de 2 mil famílias, tem em sua história um incêndio em 2010 e enfrenta diariamente alagamentos e a presença de escorpiões e cobras. A Vila Coobal reúne 200 famílias e divide seu espaço com as obras na entrada da cidade, não há água nem luz regular, coleta de lixo ou saneamento. Na Vila Voluntários, uma das mais recentes, 70 famílias convivem com ratos e mosquitos, não possuem endereços regulamentados ou acesso a serviços públicos. Na Areia, 500 famílias relatam falta de vagas em creches e problemas de mobilidade. A Tio Zeca abriga 400 famílias que também convivem com enchentes, pragas e precariedade de serviços. No Beco X, 400 famílias correm o risco de uma reintegração de posse, já que o terreno seria privado.
Cartazes confeccionados por moradores expõem as particularidades de cada área. (Foto: Reprodução | Vizinhos do 4D)
As comunidades que vivem no acesso principal à Capital gaúcha foram “escanteadas” com as obras da Arena do Grêmio, no início da década de 2010, e as promessas de contrapartidas que nunca se consolidaram. As obras da nova ponte do Guaíba, anunciadas em 2011 e finalizadas em 2020, voltaram a ameaçar a permanência das famílias.
Agora, outra perspectiva de mudança na região preocupa as comunidades que ali vivem. Um pedido do relator do projeto 4D+, de revitalização do 4º Distrito, o vereador Ramiro Rosário (PSDB), fez a Prefeitura analisar a retirada de 38 famílias do local mais próximo à Rua Voluntários da Pátria, no ano passado. Essas famílias estariam invadindo o leito da via. “É como a música do Chico [Buarque]”, diz Clarice Zanini, advogada responsável pelas causas vinculadas aos moradores.
A advogada relata que foram realizadas reuniões com a Prefeitura e, em época de campanhas eleitorais, a pressão gerou um combinado de que a notificação viria somente para “aqueles que realmente estariam atrapalhando”. “Na verdade, foi para ganharmos tempo. Isso ficou parado, não foi ganho. Eles fazem o terrorismo da reintegração administrativa quando as pessoas não saem e depois eles entram judicialmente.”
Em comum, moradores de todas as comunidades do 4º Distrito relatam enfrentar truculência diária das forças policiais. “Perto do Natal, a polícia dobrou aqui, minha filha de 5 anos tava paradinha aqui na porta e eles deram um tiro pra frente, do lado dela, porque eles viram um menino de 12 anos correndo”, relata Patrícia Maria Barreto, moradora da Coobal. “Ela ficou com medo e tão traumatizada que tive que botar sentada com o menino pra brincar, mostrar que ele tava vivo. Ela dizia que tinha sangue, imaginou na cabeça dela”, completa.
No dia 20 de março, a comunidade organizou uma manifestação conjunta contra a violência policial. Moradora do Beco X, Valquíria Pinheiro concedeu uma entrevista a um canal de televisão que cobria o ato. Ela conta que foi surpreendida, dias depois, com policiais que gritavam seu nome enquanto rondavam a região. “Eles diziam que iam me ‘enxertar’”, relata. A expressão é usada em referência a crimes forjados de posse de drogas.
A filha de Valquíria, de 13 anos, usou o celular para uma live durante a manifestação. Ela afirma que foi reconhecida pelos policiais e agora procura não sair de casa. Outra reclamação é a falta de policiais mulheres durante as abordagens na região, o que causaria desconforto principalmente quando meninas são revistadas durante as rondas.
De início, a comunidade não via a revitalização do 4º Distrito como uma ameaça. “Seria ótimo porque traria mais rotatividade econômica para dentro do bairro, mais moradores. Nosso pensamento era: olha que bom, tá vendo? Tá progredindo”, diz Patrícia. “Não, é que ruim! Tu não tem paz, não tem uma criança que vai sair na rua e vai dizer pra polícia ‘oi, tio, tudo bom?’. Não, é ‘a polícia, a polícia!’, entra e fecha a porta.”
Após a manifestação da comunidade, as lideranças afirmam que se estabeleceu um diálogo com a polícia. Em entrevista à reportagem, o tenente coronel Daniel Araújo, Comandante do 11º Batalhão da Brigada Militar, responsável pelo patrulhamento da região, dá sua versão: para ele, foram os problemas de segurança nas comunidades que diminuíram.
“Temos algumas regiões que sabemos que devido à questão social se concentraram todos ali e, durante algum tempo, esse lugar foi um foco de problemas como crimes violentos letais intencionais, grande fluxo de tráfico de drogas e armas, pessoas foragidas e hoje nós não temos mais isso, hoje a gente pode afirmar que ela tá controlada dentro do aspecto do que é aceitável por uma comunidade do tamanho daquela ali”.
Mesmo com esse “controle”, ele admite que as abordagens policiais são diferentes em comparação com áreas fora da periferia. “Existem algumas características que a gente precisa respeitar para que a gente possa atuar de forma eficaz. Nos arredores aqui dos shoppings, na Nilo Peçanha, a viatura precisa estar circulando nesses eixos onde as pessoas estão andando, indo para centro de compras. Nessas áreas, como por exemplo da Farrapos, nós temos que ter um trabalho de inteligência de vigilância e rondas diárias para que a gente possa combater o tráfico de drogas.”
O comandante, no entanto, nega a falta de policiais mulheres em abordagens nas comunidades. “No mínimo, nós temos duas mulheres trabalhando em todos os turnos. A gente não vai se expor para abordar uma mulher, não que isso não possa, não existe um aspecto legal que me impeça, mas é de bom tom porque a gente sabe que pode causar um desconforto e isso hoje é muito enraizado em nós. Eu sinceramente não acredito que isso esteja acontecendo, até porque nós não temos nenhuma denúncia dessa situação”, disse.
Outro aspecto que se repete nas reclamações dos moradores é a falta de serviços básicos, como saneamento. “A gente fala ‘onde o Estado sai, a repressão entra’. E a repressão não é só policial, é também no momento em que tu tira todos os direitos e acessos, eles têm uma água fraca que não chega ao chuveiro, não têm saneamento, não têm asfalto, não têm recolhimento de lixo porta a porta”, relata a advogada Clarice.
“Nós não temos direitos. Nós temos que ir para os fins da cidade, não morar na zona que para eles é nobre. Porque é nobre economicamente, mas a gente não tem direito à moradia, a gente não tem direito à água. Eu tô tomando banho de chuveiro faz seis ou sete meses. Fiquei três anos sem chuveiro, porque a Prefeitura cortava a água de uma rede e daí tem que pagar para botar a mangueira em outra rede. Uma vez por mês, queima alguma coisa. Tu nunca consegue melhorar, por quê? Porque estraga alguma coisa e tu tem que comprar outra. E dinheiro da onde tu vai tirar? Mas daí se tu tem alguma coisa tu é traficante, se tu tem alguma coisa é porque é parente de alguém”, exclama Patrícia.
A Secretaria de Serviços Urbanos de Porto Alegre foi procurada para falar sobre as demandas das comunidades, mas encaminhou o assunto para o Dmae, que não respondeu até o fechamento da reportagem.
Os moradores explicam que se sentiram indesejados, primeiro, com a chegada da Arena, e agora, com a expansão do polo cervejeiro na região. Para a advogada Clarice, é o projeto de revitalização da área apresentado pela Prefeitura que causa a repressão policial. “O inimigo não é um cervejeiro que quer vir pra cá porque tem isenções de impostos, é uma coisa maior”.
Segundo a apresentação feita pela Prefeitura, o objetivo é “posicionar a região do 4º Distrito no Século XXI, promovendo a diversidade de usos e de atividades voltadas ao desenvolvimento urbano sustentável, valorizando suas características, sua história, sua identidade, se tornando um lugar para morar, trabalhar e estudar, mas também um lugar para curtir, destino de lazer, compras, turismo e caminhadas”.
O diretor do Escritório +4D da Prefeitura de Porto Alegre e ex-secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Vicente Perrone, acredita que a revitalização do local pode levar riqueza, negócios, trabalho e renda à região. “A gente acredita muito que a melhor e mais sustentável forma de acabar com a pobreza é trazendo o desenvolvimento econômico”, explica.
Em outubro de 2022, a Prefeitura aprovou o primeiro projeto arquitetônico do 4º Distrito, seguindo um novo regime especial de flexibilização dos parâmetros urbanísticos. O projeto está localizado na rua Sete de Abril, no bairro Floresta e prevê a implantação de uma torre de 117 metros de altura, a mais alta da cidade, conectada por um terraço ao imóvel preservado na base (antigo Moinho Germani).
Para Perrone, os prédios levantados no novo 4º Distrito devem ter “fachadas ativas” que dialoguem com o que já existe. “A gente tem prédios que, para ter os incentivos ao desenvolvimento econômico, eles precisam ser sustentáveis, com telhados verdes, que tem uma série de requisitos para ganhar uma pontuação para eles terem os benefícios.”
Questionado sobre como o projeto que procura tornar o 4º Distrito atrativo para novos públicos atenderá quem já vive na região, o diretor do Escritório +4D destaca o eixo social do programa, que de acordo com ele está diretamente ligado à regularização fundiária. “Isso nada mais é do que dar títulos de propriedade a quem já vive naquela área. A gente não tem nenhuma intenção de tirar ninguém da sua casa, não tem meios legais nem financeiros de fazer isso”.
No entanto, admite algumas situações mais complexas e que já envolvem moradores da região: “Se houver qualquer movimento nesse sentido é, por exemplo, a situação da Vila Tio Zeca, que é na cabeceira da ponte inacabada do Guaíba. Tem toda a questão de diálogo com o Ministério Público, com a Defensoria, com o governo estadual e federal, não é a Prefeitura que vai decidir tirar, isso não vai existir unilateralmente”, explica.
Ele compara a situação com a da área mais próxima da Arena. “É uma região que sofreu uma injeção de dinheiro significativa semanalmente em função dos jogos e dos shows e houve uma melhoria estrutural”, relata. Vicente também acredita que isso trará mais serviços urbanos, como iluminação, asfalto, retirada de lixo e poda, “o ‘combo’ que traz todo serviço de uma cidade”. O diretor do Escritório +4D, no entanto, não menciona o fato de a região da Arena esperar até hoje contrapartidas que nunca foram cumpridas pela construtora OAS e de que a maioria desses serviços que ele aponta como “melhorias” já deveriam ser prestados pelo poder público a todos os cidadãos.
O projeto está localizado na rua Sete de Abril e prevê a implantação de uma torre de 117 metros de altura. (Foto: Divulgação | Prefeitura Municipal de Porto Alegre)
Para o comandante da Brigada na região, o momento é de preparação para a “mudança” do 4º Distrito. “Obviamente que com as mudanças que estão para acontecer ali o público vai mudar, as pessoas que vão frequentar ali serão outro tipo, os comércios que tem ali serão outros, vai ter bar, entretenimento. Vai ter uma outra cara aquilo ali. O que nós estamos fazendo hoje é nos preparando para que a gente possa receber esse público para entender as realidades e então estabelecer essa relação de vínculo para oferecer um serviço mais eficiente.”
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Porto Alegre. Moradores de vilas do 4º Distrito relatam repressão policial e falta de serviços básicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU