31 Janeiro 2023
“Enfrentamos nada menos do que a decomposição da civilização capitalista. A elite de Davos está consciente da gravidade da crise global: que o sistema está rachando, que seu controle do poder está cada vez mais tênue e dependente de um estado policial global e que as classes trabalhadoras e populares estão em pé de luta. Contudo, o compromisso do Fórum Econômico Mundial em defender e expandir a todo custo a acumulação interminável de capital, em escala global – essa é sua razão de ser –, impossibilita que a classe dominante global ofereça soluções viáveis à crise da época”, escreve William I. Robinson, professor de sociologia da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, em artigo publicado por Rebelión, 30-01-2023. A tradução é do Cepat.
De 16 a 20 de janeiro, a elite política e corporativa transnacional esteve novamente em Davos, para o seu encontro anual, em meio à crise mais severa do capitalismo global desde a fundação do Fórum Econômico Mundial - FEM, há meio século.
Em anos anteriores, os participantes do encontro exclusivo desciam à estação de esqui, em seus jatos particulares, cheios de confiança na hegemonia do capitalismo global. Contudo, desta vez, a incerteza sobre sua capacidade de administrar a crise, manter o controle, reestabilizar o capitalismo global e reconstruir o consenso fraturado em suas fileiras ficou muito visível.
O FEM serviu como uma câmara de compensação e órgão de planejamento para a classe capitalista transnacional e seus aliados políticos no auge da globalização capitalista. No entanto, agora, os grupos dominantes parecem estar em permanente gestão de crises, incapazes de restabelecer a hegemonia, ao passo que o consenso capitalista global construído no auge do neoliberalismo, dos anos 1990 até o colapso financeiro de 2008, segue se desintegrando.
A elite de Davos está muito consciente de que o capitalismo global enfrenta uma série de crises interligadas, o que o relatório anual do Fórum para 2023, “Riscos Globais”, chamou de “policrise”. O mundo enfrenta “inflação, crises de custo de vida, guerras comerciais, fugas de capitais, descontentamento social generalizado, confronto geopolítico e o espectro de uma guerra nuclear”, apontou o relatório.
Tais riscos, alertou, “são ampliados por novidades no cenário de riscos globais, incluindo níveis insustentáveis de dívida, uma era de baixo crescimento, baixo investimento e desglobalização, um declínio no desenvolvimento humano, após décadas de progresso, desenvolvimento rápido e ilimitado de tecnologias de dupla utilização (civil e militar) e a crescente pressão dos impactos da mudança climática”. Em seu conjunto, “estas crises estão convergindo para moldar uma década única, incerta e turbulenta à nossa frente”, concluiu.
O FEM, estabelecido em 1971, às vésperas da globalização capitalista, reúne o círculo íntimo da classe capitalista transnacional e seus representantes políticos em estados e organizações internacionais. Todos os anos, a nata da elite corporativa e política transnacional se reúne em Davos para avaliar o estado do capitalismo global, debater os problemas e desafios que enfrentam como classe dominante global e considerar programas e políticas para abordar esses desafios à sua dominação classista. Em uma palavra, Davos é onde os Senhores da Capital elaboram anualmente sua estratégia de como vão governar o planeta.
O núcleo da membresia do FEM é constituído pelos diretos executivos das 1.000 maiores corporações transnacionais do mundo, juntamente com os mais poderosos representantes dos grupos midiáticos, os principais formuladores de políticas de governos nacionais em todo o mundo e das organizações internacionais, e uma seleção de especialistas dos campos político, econômico, científico, social e tecnológico. Trata-se de um clube ultraexclusivo, cuja adesão se dá apenas por convite. A elite de Davos é uma verdadeira Internacional do Capital.
A participação nas cúpulas anuais é só por meio de convite e custa 19.000 dólares por participante. Entre os 2.700 participantes do encontro de 2023, estiveram presentes os diretores executivos de mais de 600 corporações transnacionais, 51 chefes de estado, 56 ministros das finanças, 19 governadores de bancos centrais, 30 ministros do Comércio, 35 ministros das Relações Exteriores e os diretores das principais organizações internacionais, entre elas, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Banco Central da União Europeia, a Organização das Nações Unidas e o secretário-geral da OTAN.
Sob a égide do FEM, do FMI e de outras instituições financeiras internacionais e dos principais governos ocidentais liderados pelos Estados Unidos, desde os anos 1980, a classe capitalista transnacional tem promovido uma globalização capitalista selvagem, desestabilizando e lançando na insegurança inumeráveis comunidades, países e regiões inteiras. Essa globalização levou a uma concentração e centralização de capital nas mãos da classe capitalista transnacional, em escala mundial, sem precedentes. Em 2018, apenas 17 conglomerados financeiros globais controlavam coletivamente 41,1 trilhões de dólares, mais da metade do PIB mundial.
Ao mesmo tempo, a globalização desencadeou desigualdades sem precedentes e conflitos sociais e políticos em todo o mundo. O aumento da desigualdade, o empobrecimento e a insegurança das classes trabalhadoras e populares, após décadas de decadência social gerada pelo neoliberalismo, estão levando os Estados a uma crise de legitimidade, desestabilizando os sistemas políticos nacionais e colocando o controle das elites em risco.
Poucos dias antes da abertura do encontro em Davos, o Fundo Carnegie para a Paz Internacional atualizou seus dados sobre os protestos populares em todo o mundo, informando que mais de 400 grandes protestos antigovernamentais eclodiram desde 2017, um quarto deles com três meses ou mais, muitos envolvendo centenas de milhares e até milhões de manifestantes, e nada menos do que 32 ainda estavam em curso quando o encontro começou.
Como um símbolo da crescente revolta mundial, no terceiro dia do encontro, mais de um milhão de pessoas saíram às ruas de Paris para protestar contra o ataque às aposentadorias e outras medidas neoliberais, ao passo que do outro lado do Canal da Mancha, os trabalhadores do Reino Unido avançaram com uma onda de greves não vista em décadas. Não surpreende que tanto o presidente francês, Emmanuel Macron, quanto o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, não tenham ido a Davos, neste ano, para lidar com as crises internas.
O capitalismo global está enfrentando uma crise estrutural de superacumulação e estagnação crônica. A classe capitalista transnacional acumulou quantidades obscenas de riqueza, muito além do que pode reinvestir. Ao mesmo tempo, os grupos dominantes também enfrentam uma crise política da legitimidade estatal, hegemonia capitalista e desintegração social generalizada; uma crise internacional do confronto geopolítico; e uma crise ecológica de proporções históricas. O ecossistema planetário em que se baseia a civilização humana está se desmoronando sob o impacto da desenfreada acumulação global de capital.
Como pano de fundo, um relatório de inteligência do governo norte-americano de 2021 alertou que o mundo “enfrentará desafios globais mais intensos” nos próximos anos, incluindo “a mudança climática, doenças, crises financeiras e perturbações tecnológicas”, que “provavelmente se manifestarão com maior frequência e intensidade em quase todas as regiões e países” e “produzirão tensões generalizadas nos Estados e sociedades, bem como choques que podem ser catastróficos”. O relatório continuou destacando que “a amplitude dos desafios transnacionais e as implicações emergentes da fragmentação estão excedendo a capacidade dos sistemas e estruturas existentes”.
Neste ano, os participantes de Davos debateram longamente as várias dimensões dessa “policrise”, mas pareciam estar à deriva em relação a como reestabilizar o capitalismo global e superar a ameaça de revolta em massa das bases, como da direita populista, do nacionalismo e do neofascismo, à globalização capitalista.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou que a batalha contra a mudança climática está sendo perdida, enquanto a diretora-geral do FMI se viu obrigada a admitir que a economia mundial enfrenta, “talvez, sua maior prova desde a Segunda Guerra Mundial”.
Enquanto isso, a invasão russa à Ucrânia, em 2022, e a resposta política, militar e econômica radical do Ocidente, juntamente com a Nova Guerra Fria entre Washington e Pequim, estão acelerando o violento colapso do sistema internacional pós-Segunda Guerra Mundial. Este ano, os chefes de Estado da Rússia, China e Estados Unidos se mantiveram afastados.
Supunha-se que a pandemia de Covid-19 abriria caminho para “restabelecer ou remodelar” o mundo dentro do que o Fórum chamou de “Grande Reset”. Este foi um eufemismo para um esforço em reestabilizar e expandir o capitalismo global através de mais desregulamentação neoliberal, aplicação de novas tecnologias digitais, controle mais arregimentado e autoritário sobre a população global, vigilância e “governança global” tecnocrática.
Contudo, as coisas não aconteceram como o esperado. Em vez disso, a pandemia acelerou todas as contradições e tendências de crise do capitalismo global, sobretudo a tendência a uma concentração cada vez maior de riqueza e poder nas mãos da classe capitalista transnacional, o que alimentou ainda mais os protestos em massa e a instabilidade política em todo o mundo.
Todos os anos, a agência de desenvolvimento internacional Oxfam programa a publicação de seu relatório anual sobre as desigualdades globais para que coincida com a reunião de Davos. De acordo com o relatório deste ano, A “sobrevivência” do mais rico, as fortunas dos bilionários estão aumentando em 2,7 bilhões por dia, ainda que ao menos 1,7 bilhão de trabalhadores vivam, nesse momento, em países onde a inflação supera os salários, e o 1% mais rico da humanidade tenha se apoderado de quase dois terços de toda a nova riqueza criada desde 2020.
Em meio à crise mundial energética e alimentar, as 95 maiores corporações de alimentos e energia mais do que dobraram seus lucros em 2022, segundo o relatório, obtendo 306 bilhões de dólares em lucros extraordinários e pagando 257 bilhões a acionistas ricos, ao mesmo tempo em que quase um bilhão de pessoas no mundo passaram fome. Enquanto isso, o relatório da Oxfam alertou que três quartos dos governos do mundo estão planejando cortes nos gastos públicos, incluindo a educação e o atendimento à saúde, pela bagatela de 7,8 trilhões de dólares, nos próximos cinco anos.
A fragmentação e o confronto geopolítico estão atingindo um ponto de ruptura com base na invasão russa da Ucrânia e a Nova Guerra Fria. Os Estados Unidos estão perdendo sua posição dominante no sistema internacional, mas nenhuma nova potência estatal possui autoridade política necessária para estabilizar a agora inextricavelmente integrada economia global. A crise de hegemonia no sistema internacional ocorre dentro dessa economia global única e integrada.
O fim da dominação ocidental do capitalismo mundial está sobre nós, conforme o centro de gravidade da economia global se desloca para a China. No entanto, a China não se tornará a nova potência hegemônica. Ao contrário, o mundo caminha para a multipolaridade política em um momento de crise aguda no capitalismo global: turbulência econômica prolongada e decadência política.
Enfrentamos nada menos do que a decomposição da civilização capitalista. A elite de Davos está consciente da gravidade da crise global: que o sistema está rachando, que seu controle do poder está cada vez mais tênue e dependente de um estado policial global e que as classes trabalhadoras e populares estão em pé de luta. Contudo, o compromisso do FEM em defender e expandir a todo custo a acumulação interminável de capital, em escala global – essa é sua razão de ser –, impossibilita que a classe dominante global ofereça soluções viáveis à crise da época.
Abordar esta crise envolve uma redistribuição de longo alcance da riqueza e o poder para baixo, a regulamentação dos mercados globais, controlar o capital transnacional, a desmilitarização da sociedade global e medidas ambientais radicais. Tais soluções só virão da luta de massas contra a classe dominante de Davos.
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A elite de Davos à deriva diante da “policrise” do capitalismo global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU