30 Agosto 2022
"Seria praticamente impossível resumir em um debate televisivo ou em um comício os temas levantados pela intervenção do professor Varese, em quem me inspirei. Pelo contrário, é fácil gritar na praça Deus, Pátria, Família, traz votos prometer menos impostos para todos, garantir mais segurança e menos imigrantes. Alertar sobre o perigo que os valores da convivência republicana podem correr, ao contrário, tende a desvanecer contra o fundo da indiferença", escreve Corrado Augias, jornalista, escritor italiano e ex-deputado do Parlamento Europeu, em artigo publicado por La Repubblica, 29-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na bela intervenção da última sexta-feira 26 nestas páginas, o professor Federico Varese se perguntou até que ponto seja justificada a acusação de "fascismo" contra Vladimir Putin. Chamou-me a atenção, entre outras, esta frase: “Houve apenas um nazismo, mas muitos fascismos. O primeiro era um regime particular, com uma teoria da raça, neopagã, totalitária, com uma filosofia precisa da vontade de poder."
"O segundo não tinha uma visão monolítica, resultava nebuloso, fundado num sincretismo flexível.”
Assim descrito, torna-se mais compreensível o apelido de “eterno” que Umberto Eco atribuiu ao fascismo – isto é, descrevendo-o mais do que uma ideologia ou um regime, como um estado de espírito.
Transferindo a questão para a feia campanha eleitoral em curso, podemos nos perguntar até que ponto a esquerda acertou ao colocar na primeira parte da campanha eleitoral o possível perigo “fascista”. Centrar um estado de espírito, atingir a nebulosa, mutável natureza do fascismo é praticamente impossível, ainda mais se os apelos às infâmias do regime são agora negados pelos próprios herdeiros diretos.
As pesquisas concordam: a maioria dos italianos estão desorientados e decepcionados com a política, a única coisa que parece lhes interessar é sair o mais rápido possível de uma situação de incerteza que já dura desde 1994, ou seja, desde que pela primeira vez um partido anômalo como o Forza Itália quebrou o costume republicano que, bem ou o mal, havia permitido meio século de crescimento ininterrupto.
O eventual retorno de um “fascismo”, inevitavelmente amenizado pelos tempos e pela presença da Europa, não assusta quase ninguém. Ainda mais que estamos vivendo anos sem trégua, um período de vinte anos aberto pelo ataque às torres de Nova York, seguido por dez anos de grave crise econômica, por uma pandemia que causou 1 milhão de mortos e não dá sinais de acabar, por uma guerra que prepara um futuro imprevisível, mesmo que travada com instrumentos e táticas de meados do século XX.
O século XXI até agora nos deu uma boa surra. Decepção, desorientação são reações amplamente compreensíveis também porque as velhas organizações políticas não resistiram à onda da mudança. Com uma exceção, estamos lidando com agrupamentos confusos desprovidos de estrutura - portanto disciplina - sem ideologia nem cultura política, dirigidos por líderes efêmeros prontos a passar de uma ideia a outra, totalmente à vontade em prometer qualquer coisa, sabendo muito bem que não poderão manter suas palavras.
Em tais condições, são humanamente compreensíveis a decepção e a desorientação, assim como a imensa abstenção do voto em um país que até poucos anos atrás tinha uma das maiores participações eleitorais da Europa.
O apelo aos valores do antifascismo é ao mesmo tempo obrigatório e ineficaz.
Não é fácil desafiar a indiferença e a decepção citando um dos poucos elementos que mantiveram os italianos unidos desde 1948, os valores da Constituição republicana e antifascista. Esse escudo de 139 artigos defendeu e defende não apenas os protagonistas da vida política, mas cada cidadão individualmente, incluindo os promotores daqueles movimentos de viés ‘anarquistoide’ que não querem a Europa nem as vacinas, rejeitam o euro e a posição atlântica da Itália.
Podemos considerá-los delírios irresponsáveis como essencialmente são - mas têm o direito de existir e de serem expressos porque o escudo constitucional também os defende.
Quando os perigos do autoritarismo são apontados pela esquerda, certamente não estamos nos referindo a uma nova marcha sobre Roma (embora eu esteja curioso para ver o que acontecerá no próximo dia 28 de outubro), são apontados apenas os possíveis danos a esse escudo, o medo que sua função de defesa possa ser diminuída ou prejudicada por interesse, resíduos ideológicos, irresponsabilidade ou inexperiência no manejo do delicado equilíbrio de pesos e contrapesos no funcionamento do Estado. Lembro do que aconteceu em 2008, quando Gianni Alemanno foi eleito prefeito de Roma.
Houve manifestações barulhentos de exultação, saudações romanas, viva o Duce, eja eja alalà na praça do Campidoglio.
Giorgia Meloni é mais inteligente, entre outras coisas ela mostra saber quais delicados equilíbrios internacionais permitem que a Itália permaneça de pé apesar de sua monstruosa dívida pública; acredito que desencorajaria manifestações desse tipo, acredito que poderia até tentar se livrar gradativamente das franjas paracriminosas de seus apoiadores. Aquela, no entanto, continua a ser a sua cultura de origem, naquela companhia passou a sua juventude, tomou forma se “estado de espírito”. Não é injustificado o medo de que, uma vez no governo, possa negligenciar, ou pior ainda, os valores residuais comuns da convivência republicana. Ter reivindicado já antes do voto a presidência do Conselho, violando a etiqueta institucional, é um mau sinal.
O aspecto dramático dessa situação é a dificuldade de comunicá-la. Seria praticamente impossível resumir em um debate televisivo ou em um comício os temas levantados pela intervenção do professor Varese, em quem me inspirei.
Pelo contrário, é fácil gritar na praça Deus, Pátria, Família, traz votos prometer menos impostos para todos, garantir mais segurança e menos imigrantes.
Alertar sobre o perigo que os valores da convivência republicana podem correr, ao contrário, tende a desvanecer contra o fundo da indiferença.
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O eterno fascismo como estado de espírito. Artigo de Corrado Augias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU