03 Fevereiro 2017
“Fazer com que as palavras explícitas de uma exortação apostólica passem como ‘opiniões de alguns Padres sinodais’ não faz um serviço à verdade. Sobre esse ponto, o ministério de um prefeito de Congregação deveria evitar que se criasse confusão e registrar a evolução de uma disciplina, ajudando a compreendê-la, em vez de fingir ignorá-la.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 01-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em uma entrevista à revista Il Timone, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé responde a uma pergunta com estas palavras:
Pergunta – A exortação de São João Paulo II Familiaris consortio prevê que os casais de divorciados em segunda união que não podem se separar, para poderem ter acesso aos sacramentos, devem se comprometer a viver em continência. Esse compromisso ainda é válido?
Resposta – É claro, ele não é superável, porque não é só uma lei positiva de João Paulo II, mas ele expressou aquilo que é constitutivamente elemento da teologia moral cristã e da teologia dos sacramentos. A confusão sobre esse ponto também diz respeito à não aceitação da encíclica Veritatis splendor com a clara doutrina do “intrinsece malum”. [...] Para nós, o matrimônio é a expressão da participação da unidade entre Cristo esposo e a Igreja, sua esposa. Esta não é, como alguns disseram durante o Sínodo, uma simples analogia vaga. Não! Esta é a substância do sacramento, e nenhum poder no céu e na terra, nem um anjo, nem o papa, nem um concílio, nem uma lei dos bispos tem a faculdade de modificá-lo.
Não só aqui expressam-se algumas convicções que não são, de fato, “magistério adquirido”, mas sim forçações recentes na doutrina comum, mas se citam apenas os trabalhos sinodais e se ignora o texto da Amoris laetitia. Não são, de fato, “alguns Padres sinodais” que expuseram teorias extravagantes sobre a relação entre Igreja e matrimônio, mas é o próprio texto da Amoris laetitia, nos números 72-73, que fala, respectivamente, de “sinal imperfeito” e de “analogia imperfeita” para definir a relação entre o sacramento do matrimônio e as núpcias entre Cristo e a sua Igreja. Ela faz isso apertis verbis e, desse modo, permite considerar, doutrinal e pastoralmente, não só o “bem máximo” do matrimônio, mas também o “bem possível”.
Releiamos os dois textos, que o prefeito parece não conhecer. Destaco em negrito as expressões mais significativas:
72. O sacramento do matrimônio não é uma convenção social, um rito vazio ou o mero sinal externo de um compromisso. O sacramento é um dom para a santificação e a salvação dos esposos, porque “a sua pertença recíproca é a representação real, através do sinal sacramental, da mesma relação de Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja a lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar”. O matrimônio é uma vocação, sendo uma resposta ao chamado específico para viver o amor conjugal como sinal imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja. Por isso, a decisão de se casar e formar uma família deve ser fruto de um discernimento vocacional.
73. “O dom recíproco constitutivo do matrimônio sacramental está enraizado na graça do batismo, que estabelece a aliança fundamental de cada pessoa com Cristo na Igreja. Na mútua recepção e com a graça de Cristo, os noivos prometem-se entrega total, fidelidade e abertura à vida, e também reconhecem como elementos constitutivos do matrimônio os dons que Deus lhes oferece, tomando a sério o seu mútuo compromisso, em nome de Deus e perante a Igreja. Ora, na fé, é possível assumir os bens do matrimônio como compromissos que se podem cumprir melhor com a ajuda da graça do sacramento. (...) Portanto, o olhar da Igreja volta-se para os esposos como o coração da família inteira, que, por sua vez, levanta o seu olhar para Jesus”. O sacramento não é uma “coisa” nem uma “força”, mas o próprio Cristo, na realidade, “vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do matrimônio. Fica com eles, dá-lhes a coragem de O seguirem, tomando sobre si a sua cruz, de se levantarem depois das quedas, de se perdoarem mutuamente, de levarem o fardo um do outro”. O matrimônio cristão é um sinal que não só indica quanto Cristo amou a sua Igreja na Aliança selada na Cruz, mas torna presente esse amor na comunhão dos esposos. Quando se unem numa só carne, representam o desposório do Filho de Deus com a natureza humana. Por isso, “nas alegrias do seu amor e da sua vida familiar, Ele dá-lhes, já neste mundo, um antegozo do festim das núpcias do Cordeiro”. Embora “a analogia entre o casal marido-esposa e Cristo-Igreja” seja uma “analogia imperfeita”, convida a invocar o Senhor para que derrame o seu amor nas limitações das relações conjugais.
Podemos observar que:
- ninguém fala de “vaga relação”, mas de “analogia imperfeita”. Isso não exclui, de fato, uma relação de “representação real” e de “eficácia” entre sacramento e vida eclesial, mas distingue cuidadosa e precisamente essa representação da “reapresentação eucarística”. Justamente essa “identidade” seria uma forçação da tradição, à qual parece inclinar a interpretação maximalista levantada pelos quatro cardeais, e que o prefeito Müller parece compartilhar;
- a “lei da continência” para as famílias em segunda união é uma solução provisória e parcial, que hoje ainda é possível, mas não é mais necessária. Sobre isso, a meu ver, a idealização do sacramento coincide com uma desfiguração da antropologia. E é curioso que a sua formulação tenha sido “inventada” pela Familiaris consortio, enquanto o prefeito a apresenta como uma “verdade constitutiva da teologia moral e da teologia dos sacramentos”. Transformar um elemento positivo em estrutura especulativa é sempre muito perigoso. Ainda mais quando se pretende fazer isso ignorando o texto de uma exortação apostólica;
- fazer com que as palavras explícitas de uma exortação apostólica passem como “opiniões de alguns Padres sinodais” pode comprazer os leitores da Il Timone, mas não faz um serviço à verdade. Sobre esse ponto, o ministério de um prefeito de Congregação deveria evitar que se criasse confusão e registrar a evolução de uma disciplina, ajudando a compreendê-la, em vez de fingir ignorá-la.
Por fim, faço-me algumas perguntas: por que o prefeito não lê com a devida atenção os documentos do papa? E por que desposa superficialmente as teses de cardeais que não querem aplicar a Amoris laetitia, enquanto critica abertamente aqueles bispos que se puseram dentro de um sério processo de recepção do documento? Também sobre isso Müller parece ignorar que é a própria Amoris laetitia (nn.2-3) que pede aquilo que o prefeito censura: de fato, um processo de recepção sinodal não é uma infração ao centralismo eclesial, mas o remédio para a sua patologia.
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O cardeal Müller leu a Amoris laetitia? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU