19 Abril 2018
“A legitimidade não tem nada a ver com a justiça. Ninguém vai preso por cometer atos incompatíveis com a ética da esquerda, que sempre proclamou rigor nesse sentido. Olhar para o outro lado porque não nos convém ou porque são os “nossos”, é de um pragmatismo suicida”, escreve o jornalista e analista político uruguaio Raúl Zibechi, em artigo publicado por Rebelión, 18-04-2018. A tradução é do Cepat.
A esquerda fechou fileiras ao redor de Lula, afirmando sua inocência, com o argumento da falta de provas, já que o juiz Sérgio Moro o processou por declarações de um executivo da construtora OAS que, ao delatá-lo, obteve um tratamento privilegiado (delação premiada é o nome) por parte da justiça.
Se os argumentos de Moro, e por trás de si da direita brasileira, soam questionáveis, os daqueles que o defendem têm também seus pontos fracos. Com efeito, entre Lula e as grandes construtoras brasileiras houve relações carnais, com cruzamento de favores que podem não ser ilegais, mas são questionáveis.
Durante anos, o ex-presidente se dedicou a oferecer seu prestígio e o de seu governo para azeitar negócios das multinacionais brasileiras. Nos dois primeiros anos após deixar a presidência (em janeiro de 2011), a metade das viagens realizadas por Lula foram pagas pelas construtoras, todas na América Latina e África, onde essas empresas concentram seus maiores interesses. Durante este tempo, Lula visitou 30 países, dos quais 20 estão na África e América Latina. As construtoras pagaram 13 dessas viagens, a quase totalidade pela Odebrecht, OAS e Camargo Correa (Folha de São Paulo, 22-03-13).
Um telegrama enviado pela embaixada do Brasil em Moçambique, após uma das visitas de Lula, destaca o papel do ex-presidente como verdadeiro embaixador das multinacionais. “Ao associar seu prestígio às empresas que operam aqui, o ex-presidente Lula desenvolveu, aos olhos dos moçambicanos, seu compromisso com os resultados da atividade empresarial brasileira”, escreveu a embaixadora Lígia Scherer.
Em agosto de 2011, Lula começou um giro latino-americano pela Bolívia, onde chegou com sua comitiva em um avião particular da OAS, a empresa que pretendia construir uma estrada para atravessar o Território Indígena e Parque Nacional Isibiro Sécure (TIPNIS), o que provocou massivas mobilizações das comunidades indígenas, apoiadas pela população urbana. Daí, seguiu viagem no mesmo avião a Costa Rica, onde a empresa disputava uma licitação para construir uma estrada que, finalmente, foi aprovada por 500 milhões de dólares.
Trata-se de empresas muito poderosas, que contam com centenas de milhares de empregados e negócios em dezenas de países. A quase totalidade das obras de infraestrutura contempladas no projeto Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), no total mais de quinhentas obras por 100 bilhões de dólares, foi ou está sendo construída pelas construtoras brasileiras. O estatal Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é o principal financiador destas obras, mas realiza isto na condição de que o país que recebe o empréstimo contrate empresas brasileiras.
O papel de Lula era o de promover “suas” empresas, contribuindo para aplanar dificuldades graças a seu enorme prestígio e ao caixa milionário do BNDES, que chegou a ser um dos bancos de fomento mais importante do mundo, com mais fundos para investir na região que a soma do FMI e o Banco Mundial.
Algumas dessas obras geraram conflitos graves, como o que levou o governo de Rafael Correa a expulsar a Odebrecht do Equador por graves falhas na represa sobre o rio São Francisco, ainda antes de ser inaugurada.
O poder das grandes empresas brasileiras se faz sentir de modo particular nos pequenos países da região. Na Bolívia, a Petrobras controla metade dos hidrocarbonetos, é responsável por 20% do PIB boliviano e por 24% das arrecadações tributárias do Estado.
Como embaixador das multinacionais brasileiras, Lula não comete nenhum crime. No entanto, essas mesmas empresas financiam as campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores, embora também financiem a maior parte dos partidos. Não são doações, mas investimentos: para cada dólar ou real que colocam na campanha, recebem sete em obras aprovadas pelos mesmos funcionários municipais, estatais ou federais que ajudaram a ascender [1].
O assunto da corrupção tem uma face legal e outra ética. É possível não se cometer nenhum crime, mas ser corrupto. Ao menos a partir da ética que a esquerda em todo o mundo sempre professou. Quando os funcionários dos partidos tradicionais importavam carros livres de impostos, no Uruguai das vacas gordas, se atinham estritamente às leis que eles próprios haviam aprovado. A esquerda, façamos memória, apontava corrupção ainda que não existisse crime.
No caso de Lula, para além do juiz Moro, a esquerda deve se fazer perguntas. É legítimo manter relações carnais com empresas multinacionais que deram sobejas demonstrações de sobre-explorar a seus trabalhadores? Poderia Lula ignorar a corrupção que saltou em seu primeiro governo consistente em comprar dezenas de deputados, e que recebeu o nome de mensalão? Poderia ignorar os tremendos casos de corrupção da estatal Petrobras e das construtoras?
A legitimidade não tem nada a ver com a justiça. Ninguém vai preso por cometer atos incompatíveis com a ética da esquerda, que sempre proclamou rigor nesse sentido. Olhar para o outro lado porque não nos convém ou porque são os “nossos”, é de um pragmatismo suicida. As pessoas comuns acabam percebendo as mentiras. Depois saem de lado, provavelmente para sempre.
[1] Zibechi, R. Brasil Potencia. Entre la integración regional y um nuevo imperialismo. Editora Quimantú (2012).
No dia 28 de maio, às 11h, Raúl Zibechi proferirá a conferência "Populismo pós-estrutural e multidão. Possibilidades à reinvenção política brasileira e latino-americana". A atividade acontecerá na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, no Campus da Unisinos em São Leopodo, e integra o 3º Ciclo de Estudos "A esquerda e a reinvenção da política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas". Saiba mais aqui.
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Lula. Inocente ou culpado? Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU