Por: MpvM | 01 Junho 2018
Na liturgia de hoje, irmãs e irmãos, Deus hoje nos interpela a repensar nossa teologia e nossa práxis teológica. Quem faz comunhão com a teologia de Jesus acerca do senhorio da vida humana sobre o senhorio da religião deve também fazer comunhão com sua escolha pelos mais fracos. Lembremo-nos: toda teologia tem consequências éticas. Para uma teologia legalista, há uma práxis legalista, que exclui e condena. Para a teologia cristã, segue-se a prática amorosa do cuidado e da acolhida. Assim, o amor aos sofredores, a defesa dos direitos humanos e a acolhida dos marginalizados na comunidade eclesial não é escolha. É imposição ética da teologia do Nazareno. É condição de fidelidade ao evangelho, mesmo que para isso tenhamos que transgredir algumas prescrições religiosas vigentes.
A reflexão é de Solange Maria do Carmo, teóloga leiga. Ela possui graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE e graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas. É mestre em teologia bíblica e doutora em Catequese pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE. É co-autora da Coleção Catequese Permanente, pela Editora Paulus. Atualmente é professora no Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa da PUC-Minas e no Instituto Santo Tomás de Aquino - ISTA.
Referências bíblicas
1ª Leitura - Dt 5,12-15
Salmo - Sl 80,3-4.5-6ab.6c-8a.10-11b (R. 2a)
2ª Leitura - 2Cor 4,6-11
Evangelho - Mc 2,23–3,6
Irmãs e irmãos na fé,
Os relatos bíblicos proclamados na liturgia desse domingo nos ajudam a conhecer mais e melhor o Deus da Vida que se comunica a nós por meio de Jesus de Nazaré, seu filho. O Evangelho de hoje é Mc 2,23-3,6, composto por dois relatos curiosos que se completam. O primeiro (Mc 2,23-28) dá a fundamentação teológica da fé de Jesus. O segundo (Mc 3,1-6) mostra qual é a práxis que a acompanha. No primeiro relato, Jesus mostra quem é o Deus em quem Ele crê e, no segundo, mostra como se comporta quem assim crê. Ou seja, no primeiro relato, o evangelista nos leva a repensar a nossa teologia, os fundamentos de nossa vida de fé, nossos princípios religiosos, nossa argumentação teológica, a hermenêutica que fazemos da Escritura. No segundo, o evangelista nos leva a conhecer a ética que coaduna com esse modo de pensar, as consequências da teologia de Jesus, que, evidentemente, é também a teologia de seus seguidores.
Tomemos os relatos separadamente. No primeiro, Jesus e os seus seguidores, em dia de sábado, passam por uma plantação de trigo e os discípulos arrancam espigas para abrir passagem. A Lei Judaica proibia terminantemente trabalhar no sábado, dia do repouso, conforme escutamos na primeira leitura dessa liturgia, tirada de Dt 5,12-15: “Não farás nenhum trabalho no sábado”. Afeiçoados às suas tradições e costumes, os fariseus perguntaram a Jesus por que os seus seguidores rompiam com a lei religiosa. Jesus se mostra um bom conhecedor do Antigo Testamento e um excelente intérprete da Torah. Mostra que a Lei não é absoluta e deve ser lida segundo a ótica da vida. Assim, lembra o fato narrado no Primeiro Livro de Samuel (21,2-7) quando Davi e seus companheiros, partindo em fuga por causa de ameaças do rei Saul, entraram no Templo e comeram o pão da proposição, que só aos sacerdotes era permitido consumir. Apesar de serem conhecedores das Escrituras, os fariseus se esqueceram dos fundamentos da lei do sábado, da motivação que a gerou, que está muito clara em Dt 5,12-15: a defesa da vida, o direito do fraco, o amparo e a proteção dos mais fragilizados. “Não farás trabalho no sábado... para que teu escravo e tua escrava possam descansar da mesma forma que tu, pois também tu foste escravo um dia”.
As leis – inclusive as religiosas – costumam defender os fortes, pois são eles quem legislam e, não raramente, legislam em causa própria. Mas, na fé cristã, não pode ser assim ou traímos o projeto de Jesus. A fé cristã está a serviço da vida, da liberdade e da plena realização. Não é a vida humana que está a serviço da fé ou da religião, mas a fé e a religião que estão a serviço da vida. “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado”, explicou Jesus. Essa é a máxima teológica do Nazareno: a vida em primeiro lugar e não as prescrições religiosas. Toda lei, toda religião, todo culto, toda liturgia, todo universo religioso só faz sentido se promove a vida, se reintegra as pessoas, se as reanima, se abre caminhos, se permite passagens, se tira interditos e liberta. A religião que castra, que cerceia e obriga todas as pessoas a entrarem no mesmo “quadrado”, a serem iguais, a se comportarem da mesma forma, a rezarem da mesma forma, não é a religião de Jesus Cristo. Acusado de romper com a tradição, Jesus mostra que não é ele quem rompe com a tradição mais genuína que deu origem à lei sabática, mas sim os fariseus, que se apegaram a uns detalhes da Lei e se esqueceram do todo, de seus fundamentos, de seus alicerces. São eles os transgressores e não Jesus e os seus discípulos. Com sua reposta, Jesus coloca os “pingos nos is”; mostra de fato onde está a transgressão: no descuido com a vida e no cerceamento da liberdade.
Quando lemos o Evangelho de Marcos na sua sequência, e não apenas trechos dele como fazemos na liturgia, a cena relatada pelo evangelista faz ainda mais sentido. No capítulo 1,18-22, Jesus fora interrogado para saber por que seus seguidores não jejuavam como os outros grupos religiosos (fariseus e batistas). Depois de explicar que aquela prática penitente não fazia sentido, pois a vida é a celebração da festa da aliança com Deus, Jesus diz claramente que não vai pôr remendo novo em panos velhos, nem vinho novo em odres velhos. Desde então o leitor já entendeu que – no Evangelho de Marcos – não vai encontrar o caminho tradicional da fé judaica. Para ser cristão, será preciso romper, ousar, transgredir. A teologia de Jesus é transgressora, subversiva, inconformada. Sua relação com o Pai não se dá nos moldes da piedade judaica, mas por meio de um caminho de humanização, de valorização da vida, pois seu Pai é o Deus da vida. Não é à toa que, para Marcos, Jesus é o Cristo às avessas, o Messias inesperado.
Tendo mostrado os fundamentos teológicos de Jesus, Marcos se põe a relatar as consequências dessa opção teológica: a vida humana no centro de tudo. Com o relato do homem da mão seca, antes esquecido num canto da sinagoga e depois colocado no seu centro para receber de volta sua dignidade, Marcos deixa claro como se comporta Jesus e como se comporta a comunidade cristã que professa sua fé em Cristo.
Voltemos ao relato. De novo, segundo Marcos, é sábado. Alguns observavam Jesus para ver o que ia acontecer. Esses, em vez de ter olhos para o sofrimento alheio, tinham olhos apenas para o rigorismo religioso. Seus esforços foram canalizados para criticar, vigiar, condenar e punir; não para amar, salvar e levantar o caído. Em nome de uma pretensa ortodoxia da fé, que nada mais era que arrogância religiosa, os fariseus ignoraram o homem da mão seca e se puseram a observar Jesus. Não observavam para aprender com ele, para fazer discipulado, nem para repensar seus paradigmas. Observavam com o intuito de notar qualquer descuido que lhes servisse de pretexto para condená-lo. Por isso ficaram na expectativa de ver o que ele faria. Os conservadores da fé, aqueles que defendiam os privilégios de uns poucos sobre o sofrimento de tantos outros, não ignoravam a ousadia do Nazareno que, no relato anterior, havia mostrado a caduquice da teologia de seus opositores.
Quando uma pessoa está armada teologicamente contra outra, não está aberta a seu testemunho ou à sua argumentação. Foi o que aconteceu com os fariseus. Eles, certamente pensaram: “Jesus vai aprontar mais uma, quer ver? Será que ele vai ter coragem de curar esse homem em pleno sábado? Será que vai publicamente transgredir nossas leis e nossos costumes religiosos?”. Acostumados com a cultura da hipocrisia, os fariseus ainda tinham esperança de que Jesus se contradissesse. Ou seja, no relato anterior Jesus havia defendido a vida; fizera belo discurso teológico afirmando que o homem é senhor do sábado e não o contrário. A pergunta então é: “Será que ele vai dar conta de, na prática, sustentar esse discurso?”. Também eles conheciam bem a famosa afirmação de que “na prática a teoria é outra”.
Mas, dessa vez, segundo Marcos, não houve nem discussão. Jesus disse ao homem da mão seca: “Levanta-te! Vem para o meio!”. Só depois de colocar o sofredor no centro da sinagoga, ou seja, da religião e do culto, Jesus dirigiu a palavra àqueles que se achavam autoridade no campo religioso: “Em dia de sábado, o que é permitido fazer: o bem ou o mal, salvar uma vida ou matar?”.
Os fariseus se calaram. Tão óbvia era a resposta que não havia o que argumentar. Também Jesus não discutiu; apenas olhou para eles com indignação, olhar que merecem aqueles que endurecem seus corações e manipulam a religião em bem próprio. E, sem uma única palavra a mais aos seus opositores – pois não vale a pena perder tempo se justificando com essa gente, fazendo discursos de defesa como se algum mal tivéssemos cometido –, Jesus disse ao homem da mão seca: “Estende a mão!”. Ele estendeu-a e ficou curado. Simples assim! Jesus sustentou sua teologia com sua práxis teológica. Ora, se, de fato, para ele, o homem é senhor do sábado e não o sábado senhor do homem, então aquele pobre miserável, esquecido num canto da casa, não podia voltar para casa como veio. Precisava voltar liberto, refeito, reintegrado, com seus direitos defendidos, com seu corpo em plena atividade. Jesus vive aquilo que crê; age conforme as razões de sua fé.
Na liturgia de hoje, irmãs e irmãos, Deus hoje nos interpela a repensar nossa teologia e nossa práxis teológica. Quem faz comunhão com a teologia de Jesus acerca do senhorio da vida humana sobre o senhorio da religião deve também fazer comunhão com sua escolha pelos mais fracos. Lembremo-nos: toda teologia tem consequências éticas. Para uma teologia legalista, há uma práxis legalista, que exclui e condena. Para a teologia cristã, segue-se a prática amorosa do cuidado e da acolhida. Assim, o amor aos sofredores, a defesa dos direitos humanos e a acolhida dos marginalizados na comunidade eclesial não é escolha. É imposição ética da teologia do Nazareno. É condição de fidelidade ao evangelho, mesmo que para isso tenhamos que transgredir algumas prescrições religiosas vigentes.
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9º Domingo do Tempo Comum - Ano B - A vida em primeiro lugar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU