Por: Jonas | 16 Dezembro 2014
A advogada Luz Patricia Mejía (foto), secretária técnica do Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (Mesecvi), faz um balanço sobre os 20 anos de aplicação de uma convenção que foi a primeira a falar da violência contra as mulheres em termos de direitos humanos. Disse que 20 anos ainda são poucos para erradicar a violência e que “o grande desafio é poder desconstruir os estereótipos de gênero que aprofundam a violência contra as mulheres”. Embora, em geral, os países progressistas da região colocam na agenda alguns temas fundamentais para as mulheres, também se observa claras resistências: “Com o tema aborto, que é um dos temas mais brutais de violência institucionalizada contra as mulheres, não estão conseguindo os avanços que gostaríamos”.
Fonte: http://goo.gl/2xOvP1 |
A entrevista é de Sonia Santoro, publicada por Página/12, 15-12-2014. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Completam-se 20 anos de Belém do Pará e estão apresentando um Guia para a aplicação da Convenção. Por que ainda falta um guia?
Existem duas maneiras para ver a Convenção. Uma é vê-la como a primeira Convenção que reconhece o direito das mulheres de viver uma vida sem violência, como um direito humano, e que estabeleceu e gerou uma quantidade de estruturas e arcabouço muito importante na região para dar visibilidade à situação das mulheres frente à violência. Porém, ao mesmo tempo, a violência está tão enraizada em nossa cultura – a violência contra as mulheres, as desigualdades entre homens e mulheres - que para além da Convenção o que está colocado nas sociedades americanas é que a violência possui uma ordem natural. Então, embora tenhamos estruturas, leis, planos nacionais, alguns mecanismos de garantias, tanto os homens como nós, mulheres, continuamos tendo uma cultura enraizada no machismo.
Vinte anos não é nada...
Claro, vinte anos depois ainda percebemos que precisamos continuar desconstruindo esses valores com os quais foi construído o estado moderno.
Quando pensamos historicamente, o que significou, em seu momento, esta Convenção?
Sempre penso na Convenção como uma conquista na luta do movimento de mulheres, feminista, para dar visibilidade a uma situação que tinha orlas de praticamente crimes contra a humanidade em toda a região, sem que fossem identificados como tais. Se olharmos para trás, antes de 1994 já se havia começado a falar de uma maneira permanente e clara das grandes violações aos direitos humanos que a humanidade viveu e, no entanto, nunca se havia destacado o impacto diferenciado que algumas dessas violações tiveram sobre as mulheres. De fato, a Argentina é um claro exemplo de um lugar em que houve uma reconstrução histórica sobre o que foram os anos da ditadura e em que foram geradas estruturas, talvez as mais importantes da região e do mundo em matéria de reconstrução da memória histórica, e somente agora se está começando a reconhecer os tipos de violência pelas quais as mulheres foram vítimas. E essa distinção e essa possibilidade são uma contribuição que Belém do Pará claramente deu, sendo não apenas pioneira, mas também revolucionária.
Está aprovada por toda a região?
Apenas os Estados Unidos e Canadá não fazem parte.
A maior conquista, então, foi colocar na agenda a violência contra as mulheres?
Colocar na agenda o direito a viver uma vida livre de violência. Ou seja, estabelecê-lo como um direito humano, à integridade, à vida das mulheres.
Quais são os obstáculos para a sua aplicação? Por exemplo, as mulheres continuam tendo muitos problemas para acessar a Justiça.
Muito claramente foram diagnosticados os obstáculos para o acesso à Justiça: a centralização dos tribunais, o desconhecimento e a falta de formação de juízes e operadores e operadoras da Justiça, a falta de sensibilização, assim como toda uma cadeia de casos que impede as mulheres de chegarem à Justiça. Contudo, eu acredito que após 20 anos o grande desafio é poder desconstruir os estereótipos de gênero que aprofundam a violência contra as mulheres.
E para isso o que é preciso fazer?
Ainda temos que trabalhar profundamente para dar visibilidade aos estereótipos, pois são algo com o que convivemos permanentemente e que temos tão naturalizado que, inclusive, nós, as mães que trabalhamos nisto, que somos as convencidas, ainda não conseguimos tirar nossos filhos e filhas de um sistema educativo que reproduz, em toda a região, o modelo patriarcal de desigualdades de poder. Continuamos tendo meninas que aprendem a ler dizendo “mamãe amassa a massa e papai fuma o cachimbo”. Não vemos esse modelo apenas na educação formal, como também o vemos nos meios de comunicação, na publicidade, nos programas massivos de diversão. Seguimos com um processo muito complexo para poder avançar não apenas nas estruturas formais, não apenas na quantidade de tribunais que atendem as mulheres, não apenas na quantidade de juízes e promotores que se formam, como também entre os homens e as mulheres e a maneira em que se posicionam nessas relações. Em todas as relações de poder, não falo apenas da relação entre o casal ou de ex-casal, mas também de professores-estudantes, médico-pacientes, nas relações em que nós, mulheres, continuamos correndo risco. Quando avaliamos que não é a rua o lugar de maior perigo para as mulheres, mas, sim, suas casas, seus trabalhos, sua escola ou seus centros de saúde, porque são nesses lugares que cada vez mais as mulheres são vítimas de violência, estamos falando de uma sociedade que ainda tem muito a fazer para entender que nós, mulheres, não somos objetos, mas, sim, sujeitos de direitos.
Ao avançar na visibilidade [da violência contra a mulher] aparecem certas resistências e argumentações como: “e os homens que recebem violência?” O que fazer diante desses argumentos?
Todos os estudos que sustentaram a tese da necessidade de dar visibilidade à violência contra as mulheres falam que vivemos em países violentos, sem sombra de dúvidas. Alguns mais violentos do que outros, alguns com conflitos armados, com a luta contra as drogas, por fim, temos uma multiplicidade de situações violentas na região que precisam de uma atenção. A diferença no caso de homens vítimas de violência e de mulheres vítimas de violência é que os homens vítimas de violência, em que há um grupo etário mais propenso a ser vítima de violência, que são os jovens, são em geral vítimas por terceiros que não são familiares, nem amigos, nem companheiros, e o espaço de insegurança está na rua, no marco de outras relações que não necessariamente são de poder. Quando o movimento feminista e o de mulheres buscaram reconstruir e evidenciar a situação das mulheres foi porque o risco à integridade física e psicológica das mulheres se dava nos espaços onde deveriam estar mais seguras. Quais são esses espaços? O espaço do lar, da escola, do trabalho. São nesses lugares em que se marca uma clara diferença. É claro que há homens vítimas de violência no seio familiar, mas a proporção é tão ínfima que não requer uma chamada de atenção. No caso da violência contra as mulheres, os números são enormes. Na Cidade de Buenos Aires, não mais do que no ano passado foram recebidas 8.000 denúncias.
São os dados da Oficina de Violência Doméstica (OVD) da Corte Suprema?
Sim.
Ainda assim se insiste com os argumentos que desacreditam...
A construção onde os homens têm certos privilégios determina que não se possa ver que as mulheres estão sofrendo os danos que a sociedade não reporta como danos. Se em um ano houver as mesmas denúncias de agressão a taxistas, 8.000, para dar um exemplo, em qualquer país do mundo haveria um alvoroço. Quando comparamos esse número com as mulheres, a reação não é a mesma. E não é a mesma porque temos um problema de estereótipos, de naturalização da violência contra as mulheres e claramente de relações desiguais de poder.
Em vários países da região há governos progressistas. Como trabalharam em relação à violência?
Acredito que as agendas progressistas, em geral, levam em conta alguns temas que para as mulheres são fundamentais, no entanto, acredito que também existem algumas claras resistências. Por exemplo, vários países da região que são progressistas, em relação ao tema aborto, que é um dos mais brutais temas de violência institucionalizada contra as mulheres, não estão conseguindo ter os avanços que gostaríamos. Inclusive, não se pode discutir abertamente o assunto. O sistema internacional de direitos humanos, tanto universal como interamericano, disse claramente que a proibição absoluta do aborto atenta contra os direitos das mulheres e que pode ser comparada a tratos cruéis, desumanos e degradantes. É evidente que em países com muitas mais políticas sociais, houve um impacto muito importante nos direitos econômicos, sociais e culturais das mulheres. Por exemplo, o reconhecimento do trabalho no lar, do direito ao cuidado e da segurança social para as donas de casa são parte de uma agenda progressista que avançou muito na região e que coloca uma lupa sobre os estados que não tiveram esta agenda para poder avançar. No entanto, a região continua sendo a que possui os maiores índices de feminização da pobreza, frente a outros índices de desenvolvimento.
No guia, vocês recomendam que os estados contemplem políticas específicas para as mulheres que possuem maior vulnerabilidade de direitos. Por exemplo, nesses dias, aqui, ficou conhecido o caso de uma mulher indígena condenada por matar seu parceiro, que não entendia o idioma, e logo depois de ter ficado presa, no julgamento, colocaram uma tradutora.
Há dois casos no sistema interamericano que são paradigmáticos, porque permitem evidenciar a gravidade desta situação. Duas mulheres indígenas mexicanas, que não falam o idioma oficial, que vivem em zonas rurais, que não possuem organismos públicos que possam receber a denúncia... e que ao longo de todo o processo não podem se comunicar. Esses casos colocam em evidência uma realidade periférica a respeito das mulheres indígenas e do acesso à Justiça a partir de duas perspectivas, a partir da Justiça ocidental e, inclusive, dentro da mesma dinâmica da justiça comunitária nos estados que a reconhecem ou nas comunidades que têm um exercício permanente de justiça comunitária. Dos 32 estados, nenhum reportou acesso à justiça para as mulheres no marco dos próprios processos internos comunitários. Nenhumas das duas justiças possuem perspectiva de gênero para esses grupos que têm maior grau de vulnerabilidade. E isso não é nem sequer comparável com a situação das mulheres com deficiência, que é um assunto que ainda não abordamos; ou das lésbicas e transexuais. Quando colocamos a lupa sobre a discriminação das mulheres lésbicas, transexuais, vemos que Belém do Pará é muito jovem para ter incidido em uma agenda com essas características.
Também se diz no guia que “falta maior evidência” de políticas públicas que se traduzam em maior orçamento, planos nacionais, campanhas...
A região se caracteriza por duas coisas. Graças a Convenção de Belém do Pará, 29 estados da região, de 32, têm legislação específica de proteção à mulher. Esta é uma mudança paradigmática em relação a vinte anos atrás, quando não havia este tipo de lei. Depois, a segunda, é que a maioria dos países tem instituições nacionais competentes para trabalhar o tema gênero. Porém, quando nós colocamos uma lupa, que é o trabalho feito pelo mecanismo de seguimento da Convenção de Belém do Pará, o que conseguimos evidenciar é que, por exemplo, dos 32 estados apenas sete possuem orçamentos específicos e diferenciados para assuntos de gênero. Não só o que tem a ver com o orçamento que se atribui à autoridade nacional competente, mas também orçamentos designados para executar programas de acesso à Justiça, à educação, de prevenção e de reeducação da violência. Evidentemente, quando se coloca o foco nesses sete países, frente aos gastos e outras despesas orçamentárias com outros temas, percebemos que continua havendo uma importantíssima lacuna entre as possibilidades de realização do que estabelece a lei, a possibilidade que estabelece o plano nacional e o que em determinadas circunstâncias a mulher, efetivamente, acaba recebendo.
Ou seja, apenas sete países possuem orçamento específico, mas, apesar disso, esse orçamento é baixo em relação a outros temas.
Sim. Continuamos tendo aí uma lacuna muito importante.
E a Argentina como está?
A Argentina possui alguns avanços importantes em tudo o que tem a ver com a implementação da lei integral contra a violência. É um passo para além de ter apenas legislação. É uma legislação que prevê algumas estruturas para além do reconhecimento formal do direito. A Argentina também possui um avanço muito importante em programas específicos, por exemplo, na possibilidade de que as mulheres vítimas de violência ingressem em programas sociais para sua recuperação não apenas emocional e psicológica, mas também para que seja gerado um empoderamento na capacidade de romper com o círculo da violência. A Argentina também possui desafios muito importantes como o levantamento de informação estatística e a evidência certa de qual é a situação. Porque na informação que nós recebemos é que, evidentemente, a OVD possui números, no entanto, não sabemos o que está acontecendo nas regiões, sobretudo nas mais distantes. E não apenas nós não ficamos sabendo, como também o governo federal não fica sabendo e, seguramente, não sabem as administrações dessas províncias. Sendo assim, a possibilidade de abordar políticas efetivas, com acompanhamento, com orçamento, com capacidade de incidência na realidade das mulheres é mínima. Depois, outros desafios são que não temos um registro único na Argentina que nos permita identificar que esse agressor, que agrediu uma mulher em Chubut, é o mesmo que agrediu uma mulher em Santa Fé, em Tucumán ou em outra província. Esse é um elemento que também não existe no restante da região, mas, ali, sim, temos avanços como na identificação estatística de como é a realidade e que setores atingem mais ou não, qual é a incidência em determinados grupos. De qualquer modo, no caso da Argentina vieram progressos. A primeira recomendação feita pelo mecanismo, há alguns anos, foi a necessidade de se ter uma lei integral, que já se contemplou em 2009. A outra era a de dar visibilidade ao feminicídio, que já está sendo discutido muito claramente e que se incorporou legislativamente. O outro tema é que se revogou a possibilidade de que o estuprador se case com a vítima. Mas, isso faz pouco tempo. Até três ou quatro anos atrás, na Argentina, o estuprador podia se casar com a vítima e era perdoado. Evidentemente, vinte anos parecem muito, mas é bem pouco. Na Argentina, nós destacamos a existência da lei como muito importante, porque é uma mudança no estabelecimento de quais os direitos que temos. Entretanto, os desafios continuam sendo muito grandes.
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“O lugar mais perigoso para a mulher não é a rua, mas, sim, sua casa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU