Brexit: a Europa gera monstros

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Por: Cesar Sanson | 27 Junho 2016

"O sonho europeu se revelou aquilo que ele é: um monstro a ponto de gerar uma Anti-Europa. Este rumo não estava dado quando da partida. Passou a estar no dia seguinte à degeneração socioeconômica sancionada pelo acordo de Mastricht e à aceitação servil daquele pacto “estúpido” por parte das forças sindicais e de esquerda", escreve Andrea Fumagalli, economista em Milão, autor de vários livros sobre a crise global, biocapitalismo e instituições e moedas do comum, do coletivo Effimera em artigo publicado por Effimera e reproduzido por UniNômade, 25-06-2016.

Eis o artigo.

No dia seguinte ao resultado do referendo que sancionou o abandono da Europa por parte do Reino Unido, é possível começar a discutir os prováveis efeitos segundo três planos de análise: financeiro, econômico-institucional e político-institucional.

Os efeitos financeiros

Apesar do impacto imediato, com a queda da bolsa e a forte desvalorização da libra esterlina, os efeitos nas finanças não devem se manter negativos. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que qualquer turbulência, com fortes oscilações dos índices, sempre é um prato cheio para a especulação financeira. O que aconteceu na semana anterior ao voto é tema de manual. Com base em pesquisas mais ou menos previsíveis, todas a favor da Brexit durante cerca de três dias, assistimos ao predomínio da especulação no viés de baixa (vendo hoje os títulos que amanhã me esperam mais baratos, para recomprá-los com margem de lucro). O homicídio da deputada trabalhista Cox, processado no modo cínico que caracteriza o mundo financeiro, levou à inversão da tendência. Os defensores do “fica” recuperaram fôlego e as expectativas voltaram a ser positivas. Esse foi o modo como se pôde capitalizar a fase anterior de baixa. A mesma dinâmica afetou o mercado de valores e derivados da libra. Na última semana, as grandes multinacionais das finanças (as 10 irmãs que controlam a maior parte dos fluxos financeiros internacionais) puderam com isso obter imensos ganhos.

Existe também um segundo aspecto a considerar. É provável que a Brexit, por um lado, atrase a decisão da Federal Reserve (FED) de aumentar as taxas de juros nos Estados Unidos e, de outro lado, favoreça uma emissão posterior de liquidez (como já declarou o Banco Central do Japão): fatores todos que beneficiam ainda mais a especulação financeira.

Disso resulta que, mesmo que a City de Londres tenha sido certamente mais favorável à permanência do Reino Unido na Europa, os grandes capitais internacionais não estão particularmente enlutados com o resultado do referendo. E não poderia ser de outra forma, do momento em que a financeirização da economia global vai muito além de qualquer retomada de soberania nacional. No limite, visto que boa parte da elite financeira europeia se localiza em Londres, se poderá verificar em médio prazo um aumento do peso da praça de Frankfurt, como possível novo núcleo das finanças europeias. Perspectiva que, certamente, não desagrada à senhora Merkel ou ao senhor Schäuble.

Os efeitos econômico-institucionais

A Brexit não é o primeiro caso de abandono da Europa. Um precedente ocorreu com a Groenlândia em 1985, um país de 56 mil habitantes. Mas tal decisão apenas se tornou efetiva depois de cerca três anos, ainda que as normas para o abandono da UE estabeleçam um período de dois anos para as negociações ao redor de um acordo de separação. Considerando o grande número de tratados comerciais e políticos entre Reino Unido e UE, se estima que agora o divórcio não se poderia consumar antes de um prazo de 5-7 anos: o que aliás poderia permitir uma reanálise da decisão tomada, uma vez amainada a onda populista, hoje a montante. De fato, tudo está ainda para ser decidido.

Se, no plano prático, em médio prazo pouco poderia mudar (o capitalismo globalizado e financeirizado, repetimos, contorna segundo múltiplos bypass e sem maiores problemas as fronteiras nacionais), alguns efeitos entretanto poderão ser verificados em curto prazo, sobretudo no que tange às políticas sociais e distributivas. Os grupos mais particularmente suscetíveis de ser atingidos são os trabalhadores e, entre eles, especialmente os trabalhadores imigrantes.

A desvalorização da libra terá um impacto sobre bens importados. Lembremos que, no cômputo global, o Reino Unido é importador de bens materiais, com uma demanda inelástica por alguns produtos, e ao mesmo tempo é exportador de bens imateriais (serviços avançados, formação, finanças etc). Por conseguinte, é lícito esperar como efeito o aumento dos preços: o que, considerando a fase de deflação, não seria de todo negativo, desde que isto não se traduza (como é fácil supor que venha a ocorrer) numa redução do poder de compra, sobretudo dos trabalhadores com menores qualificações, os mais precários e/ou menos sindicalmente protegidos.

Em segundo lugar, a Brexit introduz novos fatores de discriminação entre cidadãos britânicos e quem vem de fora, sejam eles da própria UE, sejam não-europeus. Dessa maneira, é possível que passe a atuar ainda um novo mecanismo de seleção para se ter acesso aos serviços públicos (saúde, educação, transporte). O risco é, então, que piore ainda mais a distribuição de renda num país que já é um dos piores em termos de desigualdade e iniquidade sociais dentro do grupo europeu (junto com a Itália).

O paradoxo do resultado do referendo é que os mais favoráveis ao retorno da “independência econômica” são os mesmos que estão assumindo o risco de serem os maiores prejudicados. Sobre isto retornaremos na conclusão.

Os efeitos político-institucionais

O referendo sobre a Brexit representou no Reino Unido, sobretudo, um desafio interno à política nacional. É notório que o ex-premiê David Cameron (Partido Conservador) prometeu organizar o referendo com o objetivo de erodir os votos de Nigel Farange (líder do UKIP, partido nacionalista). Cameron também pretendia isolar a banda mais à direita de seu próprio partido, reunificando-o numa maioria sólida ao redor de sua própria candidatura a primeiro-ministro depois das últimas eleições.

Noutras palavras, o debate sobre a Europa foi instrumental para questões políticas internas, impostas pelo crescente consenso da direita populista, sobretudo quanto à política de imigração, de segurança nacional e soberania econômica. Trata-se de temáticas de cunho fortemente ideológico, com pouco de verdadeiramente concreto a decidir: basta pensar, de fato, que a política imigratória e a retórica de emergência securitária, assim como a soberania econômica e financeira, já estão bem estabelecidas e asseguradas pela própria UE.

O escândalo do bloco de imigrantes e refugiados em Calais, assim como a existência de amplos espaços de autonomia comercial e financeira, além da soberania monetária do Reino Unido (ampliada e garantida por recentes acordos), confirmam isso. Em contrapartida, o Reino Unido atuava como um financiador do orçamento europeu, com um repasse líquido de 8,5 bilhões de euros por ano, — uma cifra, de qualquer modo, irrisória em comparação com as vantagens econômicas derivadas de sua integração no bloco europeu.

A estratégia integralmente interna de Cameron mostrou ser, contudo, um bumerangue, revelando a sua miopia e temeridade, pois arriscou colocar em marcha um processo de desintegração não somente da Europa, como também do próprio Reino Unido. Pelo menos, é o que parece começar ao ouvirem-se as primeiras declarações vindas da Escócia e da Irlanda do Norte. Um processo que a direita mais reacionária e grosseira perseguirá como seu e para o seu próprio benefício, como também na Itália vem se demonstrando repetidamente (no caso da Liga).

No nível europeu, obviamente, a situação é diversa. Tomando a palavra, todas as instituições europeias parecem rasgar as suas próprias roupas, mas sem sem nenhuma autocrítica. A razão é simples. A saída do Reino Unido pode ser conveniente para vários. Em primeiro lugar, para a Alemanha, que pode reforçar a sua própria posição dominante, além de rebater a sua política de alianças na direção dos países do Leste Europeu. Mas também aos EUA e aos BRICS que, pela razão oposta, não lhes desagrada o desgaste de hegemonia econômica por parte da Europa, segundo o jogo contínuo de redefinição geoestratégica de estruturas hierárquicas. A bem da verdade, os maiores penalizados pela situação serão os países periféricos do Mediterrâneo e do Atlântico Norte.

Duas considerações finais

A vitória do leave institucionaliza a crise da Anti-Europa da moeda, tornando-a politicamente irreversível. Tal realidade de fato já havia sido conclamada na crise do débito na Grécia, em 2015. Deste ponto de vista, esta também é uma crise do ordoliberalismo à moda europeia (diferente daquele típico à americana). Isto não nos desagrada.

Mas há o risco que as instâncias populistas revanchistas tomem de vez a iniciativa, ganhando uma mão superior em relação àquelas progressistas. Deste ponto de vista, a situação pode ser lida como a institucionalização da crise do reformismo político de centro-esquerda, funcional à globalização, ao equilíbrio das contas, à desregulamentação do mercado de trabalho e ao desmantelamento das políticas de welfare.

Porém, não estão se abrindo novos caminhos. A fragmentação política e territorial está longe de criar processos de autonomia, âmbitos para experimentar modos de contrapoder. Na Europa, diversamente de outros continentes (pensamos na América do Sul), em sua história, a reaparição de ideologias nacional-populistas representam e sempre representaram o mais sólido aliado para os poderes econômicos e financeiros, as formas de assujeitamento biopolítico nas estruturas de poder, de controle social e repressão da biodiversidade.

Last but not least, uma parte do debate em curso se refere à composição social do voto. De maneira esquemática, a favor da saída da UE se colocaram, predominantemente, as camadas mais pobres, sobretudo, aquela classe média mais empobrecida pelo prolongamento da crise e os cortes das políticas de austeridade, enquanto as classes mais ricas e a maioria dos jovens mais culturalmente cultivados, que vivem nas áreas metropolitanas, se colocaram pela permanência na UE.

São duas posições opostas, mas acomunadas numa mesma ideia de Europa que se sedimenta cada vez mais, à luz dos objetivos institucionais da UE perseguidos por suas instituições: primeiro, como mercado único (políticas de desregulamentação), depois, como moeda única (política monetarista). Ou seja, uma Europa seletiva, incompleta, parcial. Para os mais pobres, o inimigo a quem atribuir a responsabilidade pelo crescente empobrecimento. Para os mais ricos, o lugar onde podem exercer a desfrutar, de maneira privilegiada, de mais oportunidades de lucro e riqueza.

O sonho europeu se revelou aquilo que ele é: um monstro a ponto de gerar uma Anti-Europa. Este rumo não estava dado quando da partida. Passou a estar no dia seguinte à degeneração socioeconômica sancionada pelo acordo de Mastricht e à aceitação servil daquele pacto “estúpido” por parte das forças sindicais e de esquerda. Para todos esses, que por preguiça ou oportunismo não podiam tolerar nenhuma crítica àquele modelo de Europa, e às forças do poder que impuseram-no, precisaríamos recordar que quem semeia os ventos, cedo ou tarde, colherá a tempestade.

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