Fome na era da comida-espetáculo

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23 Mai 2016

É hora do almoço na Itália. Na televisão, surge um menino africano desnutrido aos prantos em campanhas de organizações como Médicos sem Fronteiras e Save the Children, que revelam o difícil trabalho de cuidar de crianças famintas espalhadas pelo mundo. Como comer diante da fome? É a pergunta do vencedor do prêmio literário italiano Tiziano Terzani 2016, o argentino Martín Caparrós, autor de La fame (A fome), que denuncia o flagelo desnecessário da nossa época em que, segundo a ONU, a cada 5 segundos morre uma criança por desnutrição em meio aos 800 milhões que passam fome.

A reportagem é de Luciana Cabral-Doneda, publicada por #ProjetoColabora, 20-05-2016.

“Vivemos na era da comida. A alimentação nunca ocupou um lugar tão importante na nossa vida; o business da comida nunca produziu tanto dinheiro; nunca houve tanta comida. Nunca houve tanto alimento não comido. Não digo somente pelo desperdício – enorme – das nossas sociedades, em que mais de um terço dos alimentos acaba no lixo; o digo sobretudo por essa nova característica da comida, transformada em espetáculo”, afirma Caparrós, explicando que atualmente, além de comer, lemos, vemos, escutamos, imaginamos, fazemos programas de televisão e publicamos livros sobre comida. “Comer, a coisa mais material, mais íntima, entrou na lógica do espetáculo ou da masturbação.” Comer virou uma arte, enquanto para muitos ainda é uma necessidade. Ele critica até mesmo a moda dos orgânicos. “É só mais um privilégio para fugir da avalanche industrial que produz comida barata”, conclui.

Criança desnutrida no Sudão do Sul: 2,5 a 4,6 milhões de pessoas sofrem de desnutrição no país/ Foto: #ProjetoColabora

Caparrós, um dos fundadores do jornal argentino Pagina 12, revela em mais de 700 páginas o contexto histórico que faz com que atualmente nós sejamos capazes de co-habitar o planeta Terra com crianças como Amin, 7 anos, mas com o peso de um menino de 4, olhos esbugalhados e movimentos lentos, a letargia comum nos casos graves de desnutrição. “Esse menino vai morrer se não comer”, diz, no livro, a médica nigeriana que o atende em uma tenda montada em um vilarejo. E a cada capítulo Caparrós nos faz a mesma pergunta: “Como podemos conviver com isso?”

O livro é permeado por histórias reais, de personagens famintos que ele encontrou durante a sua pesquisa de campo. Na Nigéria, taxa de natalidade de 7 filhos por mulher, o sonho de uma mãe é ter uma vaca. Ele lembra da solidariedade na divisão de pão e sopa nos guetos judeus europeus durante a guerra. Dos latino-americanos que procuram o que comer no lixo. Foram cinco anos de viagens, entrevistas, pesquisas desse escritor nascido em 1957 em Buenos Aires e exilado na França durante a ditadura no seu país. O autor traça uma geografia da fome e os mecanismos que fazem com que ela continue existindo através de narrativas de indivíduos que vão além de cifras e dados. Estão na Índia, na China, na Nigéria, na sua Argentina, milhões de pessoas sem trabalho ou sendo explorados com salários miseráveis que não garantem um prato de comida.

O problema não é a pobreza desses milhões de indivíduos, revela Caparrós, mas a excessiva e onipotente riqueza de todo resto do mundo com “o velho truque da caridade”. Os Estados Unidos incentivaram a obesidade dos seus pobres enquanto do outro lado do mundo a desnutrição irrompe. Os chineses alimentam os porcos, cuja demanda de carne cresce a cada dia, enquanto desempregados fuçam nos lixões. Caparrós questiona e critica lugares comuns e personagens públicos como o famoso economista Amartya Sen, madre Teresa de Calcutá, “que nunca abriu um hospital com o dinheiro que arrecadava”, atores e cantores que se vestem de “embaixadores da fome” e até mesmo o seu conterrâneo, Mario Bergoglio, o Papa Francisco, não escapa das suas críticas.

Foi em 1980, revela Caparrós, que o FMI e o Banco Mundial, com o Washington Consensus (dez regras para o ajustamento macroeconômico dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades), convenceram os governos africanos, por meio de ameaças com a dívida externa, de reduzir a ingerência estatal em vários setores, partindo da agricultura. Colheitas reduzidas? Carestia? Nada de subvenção. Foi a condenação à morte por fome de milhares de africanos, explica o escritor. Enquanto isso, nos Estados Unidos e na Europa os governos subvencionavam os seus agricultores em cerca de 300 bilhões de dólares ao ano. A carne e o leite das vacas na Europa são de alta qualidade, a manutenção de cada uma custa cerca de 2,70 dólares ao dia. No livro de Caparrós, um camponês de Vidarbha revela que o sonho do agricultor indiano é reencarnar em uma vaca europeia. São esses subsídios que permitem baixar o preço dos grandes produtores e levar à falência os pequenos.

Todo ano 220 milhões de toneladas de alimentos vão para o lixo. Só o desperdício da Itália daria para alimentar 44 milhões de pessoas. Lixo, na opinião de Caparrós, é uma metáfora da nossa época em que alguns jogam fora aquilo que outros têm tanta necessidade. A era da comida é também a era da tecnologia, os avanços na produção, na manipulação, na transformação e no armazenamento aumentaram a oferta, a especulação das grandes empresas. Mas quem está fora do sistema não tem como pagar pelo pão ou pelo arroz. “A pobreza é só a moldura, a causa principal da fome é a riqueza – de poucos, a nossa”, afirma.

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