19 Abril 2016
"Guerra e terrorismo atingem numerosas áreas do globo, mas seu húmus é frequentemente local, e as vítimas são, em sua maioria, muçulmanas, embora o peso dado, pela mídia, à morte de muçulmanos e não-muçulmanos vítimas é, muitas vezes, bem diferente", escreve Jean-Marc Balhan, em artigo publicado por Agiornamenti Sociali, nº 4, 2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Jean-Marc Balhan, jesuíta belga, nasceu na cidade que tem maior mesquita do País. Depois de entrar na Companhia de Jesus, viveu em Países de maioria muçulmana, particularmente no Egito e na Turquia. Seu testemunho de experiência de encontro com o Islã, encontra-se no novo número da Promotio Iustitiae, publicação monográfica do Secretariado para a Justiça Social e Ecologia da Cúria Geral dos Jesuítas.
Viver com os muçulmanos. Viagem ao encontro do outro. Este é o título do número monográfico, integralmente disponível on-line, em vários idiomas. Publicamos o artigo de Balhan, particularmente significativo, após os ataques de 22 de março, em Bruxelas.
Eis o artigo.
Os pobres
Belga de origem, passei minha infância e adolescência em Verviers, cidade próxima da fronteira com a Alemanha e com os Países Baixos. Importante centro industrial lanifício, até os anos sessenta, cidade rica, passou, nas décadas seguintes, por declínio econômico e crescente presença de estrangeiros.
Entre estes, os muçulmanos são principalmente de origem turca e marroquina. Começaram a chegar na década de sessenta, a convite da Bélgica, como mão de obra para a indústria. Atualmente, presentes um pouco por toda parte, nos centros das cidades, nas atividades comerciais e nas escolas. Não era assim na época da minha juventude.
Ainda criança, nos anos setenta e oitenta, ser muçulmano, para mim, significava ser "árabe" e fazer parte de uma população pobre, socialmente marginalizada, com a qual eu não tinha, aliás, qualquer contato. Estavam confinados em alguns bairros pouco frequentados por mim. "Árabe", para mim, era sinônimo de ladrão, ou de delinquente. Naquele tempo, a piada mais comum era: "Que diferença há entre a Rua X e do Canal de Suez? Resposta: no Canal de Suez, os árabes estão apenas de um lado ...".
Com este tipo de imagens e preconceitos cresci, e, paralelamente, também com um imaginário romântico do “Oriente", porque, como o nosso herói nacional Tintin, de fato, eu sempre quis "partir"... Em 1984, entrando na universidade, em Bruxelas, fiz amizade com um estudante iraniano, com quem discutia os benefícios da revolução islâmica. Mas, naquela época, durante o primeiro ciclo de estudos de Medicina, estava interessado sobretudo naquilo que era então chamado de "Terceiro Mundo", sonhava em partir com os "Médicos sem Fronteiras", cheguei a fazer um estágio no Congo.
Entrei na Companhia de Jesus em 1987, comecei a interessar-me pelos muçulmanos do meu país, queria chegar mais perto de uma população desfavorecida, e aprender uma cultura diferente. Mas, tive que esperar pela etapa do magistério, depois da filosofia, para encontrar o Islã.
Islã
"Quer ir para a África? Estou lhe enviando para o Egito". Foi com estas palavras que meu Provincial, na época, enviou-me para ensinar, por dois anos, no Collège de la Sainte Famille, no Cairo, uma experiência que, na minha vida, representou uma verdadeira reviravolta e um choque cultural, ainda mais benéfico, pois mesmo antes da partida, minha fé já passava por um momento de crise, e estava à procura de um "Deus maior" daquilo que não era senão uma projeção da figura paterna, pensava eu.
Agora, dirigindo-me aos muçulmanos, por ocasião de conferências inter-religiosas, começo sempre dizendo que, se nesse momento, estou diante deles como sacerdote religioso e católico, é porque encontrei no Egito, durante o magistério, o Islã que eles trazem, e que sustentou-me, naquele momento, na procura do Deus "maior". Não há nenhuma maneira de fugir daquela chamada que toca cinco vezes por dia: Allahu akbar. Ashhadu an la ilaha illa Allah. "Deus é maior. Testifico que não há outro deus, além de Deus". Deus é maior do que qualquer ídolo. Não há nenhum deus além de Deus; quem é, e onde posso encontrá-lo? Numa grande mesquita vazia, que me convida a olhar sempre para "além"? Ou numa igreja, onde Deus está, pensava eu, "demasiadamente perto" para ser verdadeiro, "humano, demasiadamente humano"? Este foi o início de uma luta que não acabaria, senão muitos anos depois, com a redescoberta do Deus trinitário e do amor, como dom de si.
Fiquei impressionado também com a confiança que o muçulmano depoista em Deus, e pela gratidão que tem por Ele, sejam quais forem as circunstâncias em que vive. Quando no Egito se pergunta a alguém “como vai?”, na maioria das vezes não responde “que vai bem” ou “que está indo mal”, mas simplesmente al-hamdu li-llah, "Deus seja louvado". O muçulmano parece estar em paz nas mãos de Deus, enquanto o cristão ocidental (e eu, em primeiro lugar!) parece sempre em luta contra o que é percebido como sem sentido. Eu invejei, durante muito tempo, esta confiança, até começar a encontrá-la, nos últimos anos, na oração de abandono.
No Egito, também descobri o Islã político, que apesar de sua falta de sagacidade, possuía os tons da "teologia da libertação", num universo pós-colonial, onde o presidente recebia 99% dos "votos". A coisa mais difícil para mim era o que sentia como pobreza intelectual do Islã, que embora enraizada numa tradição gloriosa, parecia-me sempre na defensiva, paralisada pelo conservadorismo e pelo medo de reexaminar-se. No Egito, "pensar" era perigoso. Quem tentasse, arriscava a própria vida.
Depois do magistério no Cairo, chegada a hora dos estudos teológicos, tentei não só purificar minha fé, mas também tomar o tempo necessário e pesquisar sobre a origem dos arquétipos antimuçulmanos e dos mecanismos de projeção, que operam no espírito dos europeus, quando se trata de "Oriente". Encontrei pesquisas semelhantes, logo depois, no debate sobre a “entrada da Turquia na Europa". No fim destes estudos, foi-me confiada uma missão de "diálogo inter-religioso", no Egito, e depois no PISAI (Pontifcio Istltuto di Studi Arabi e d’Islamistica) em Roma, para estudar a língua árabe e o islamismo, durante o qual estudei sobretudo a hermenêutica do Alcorão e teologia da revelação, procurando "compreender", a partir de dentro, e deixando-me tocar por aquilo que para os muçulmanos é o único milagre, o do Qur’an (Alcorão) "inimitável", aprendendo de memória belas suras, algumas das quais me inspiram, ainda hoje, de vez em quando, em minha oração.
O muçulmano
Enquanto preparava minha volta à Bélgica, esperava poder conhecer o Islã, não conhecido por mim até então, com o qual trabalharia em meu País: o Islã turco. No fim do milênio, tive a chance de passar duas semanas nos subúrbios de Istambul, com alguns estudantes, que faziam parte de um movimento neosufista, bastante comum na Turquia. Já tinha encontrado alguns pobres, encima de uma grande tradição religiosa: agora encontrava, de fato, pela primeira vez, fieis muçulmanos, inteligentes e à vontade, em sua própria casa, capazes de falar em primeira pessoa, e com toda a honestidade de própria fé, do próprio caminho e da busca de sentido.
Pela primeira vez na vida "dialogava", entrando, em pé de igualdade, desde fora, e de modo um tanto romântico, no universo de um "outro" concreto, e não apenas numa tradição. Aqui está um universo desconcertante, cujas "leis espirituais" são diferentes, e nas quais, minhas próprias convicções, são colocadas sob pressão, por alguém particularmente simpático, que fala em primeira pessoa de sua relação com Deus, de sua relação de confiança: verdadeira experiência de alteridade.
Um dia, quando falávamos dos "belos nomes" de Deus, fiquei impressionado com o fato de que, enquanto perguntava, aos estudantes, qual era o nome preferido, a maioria deles indicava dois: um que poderíamos definir espontaneamente "positivo", como "Aquele que perdoa", e outro, "negativo", como "Aquele que domina" ou "Aquele que pune", ambos percebidos como indispensáveis para uma vida espiritual autêntica.
Um dos jovens foi mais longe, desenhou um gráfico, com o "medo" no eixo das abscissas, e o "sucesso" no eixo das ordenadas; em seguida, traçando uma curva gaussiana, explicou que para se obter sucesso na vida não se pode nem ter muito, e nem pouco medo, mas um sábio equilíbrio! Pois este é o desejo profundo do fiel muçulmano: ter sucesso na vida, chegar à felicidade nesta, mas sobretudo na vida futura. É o convite repetido durante as chamadas para a oração: hayya ‘ala al-falah, literalmente, “vinde ao sucesso”. Ele chegará se seguires "o caminho reto", tal como solicitado na recitação da Fatiha, a sura de abertura do Alcorão.
O Alcorão é caracterizado por exigências bem concretas, de disciplina de vida, que estes jovens aplicam-se, seja na oração ritual cinco vezes por dia, nas regras de pureza ou naquelas relacionadas à alimentação, para não mencionar na imitação piedosa da vida do profeta.
No momento em que a Companhia de Jesus abria uma nova residência em Ancara, ao serviço do diálogo inter-religioso, e da única paróquia católica da capital turca, fui enviado como cofundador no final de 2001, e lá estou até hoje.
O ser humano
Se os estudos de Árabe e Islamística me apaixonaram, pareciam-me representar também a essência de uma tradição vivida de modos tão distintos e por pessoas tão diferentes. Minha transição pelo mundo árabe, especificamente no Egito e na Turquia, com quase quinze anos neste último País, deram-me uma aguda consciência da diversidade do Islã, e sobretudo do fato de que o "muçulmano" é, antes de tudo, um ser humano comum, com suas alegrias e tristezas, sua família e sua vida profissional, enraizadas numa sociedade marcada pela história e pela cultura que fazem dele o que ele é, e para o qual a religião não é que uma das muitas dimensões da sua vida. Em íntima relação com o contexto. É por este motivo que, repito muitas vezes, de modo um pouco provocativo, o “Islã não existe". Porque, na verdade, ele se encarna em sociedades, histórias, línguas e culturas muito diferentes.
O mundo árabe, onde, muitas vezes, há o desejo de fusão da religião, língua, cultura e sociedade, e que sofreu a colonização, não tem muito em comum com um mundo turco, que não conhece o árabe; nativo da Ásia Central, passou pelo Irã, integrou outras tradições e é marcado pelo sufismo, onde o Islã foi administrado por um Império, herdeiro do Império Bizantino, que nunca passou pelo jugo do colonialismo, mas sim, por uma espécie de explosão, sob a pressão dos nacionalismos, das reformas laicizantes de Atatürk e da centralização e controle rígidos desde a chegada da República em 1923. Nestas sociedades, o lugar dos não muçulmanos também é muito diferente, assumindo uma dimensão marcadamente nacionalista na Turquia, onde o cristão é visto, sobretudo, como estrangeiro - muitas vezes grego ou armênio - trazendo consigo o peso da história ligada a estas “nacionalidades".
Minhas estadias em outras regiões do mundo, como Índia e Senegal, nas reuniões do Jesuits Among Muslims, e nos encontros com colegas de todo mundo, neste quadro, só confirmaram, a meus olhos, esta diversidade irredutível dentro do "Islã" como um todo, e entre os muçulmanos.
Dito isto, deixando de lado a Turquia, “o Islã é vivido de modos diferentes, mesmo quando o Estado tenta controlar e unificar tudo sob sua égide. No mundo universitário, que merece uma discussão a parte, há pouco em comum entre os quadros da Faculdade de Teologia de Ancara, modernista, onde muitos jovens professores estudaram no exterior, até mesmo em faculdades de teologia cristã, e para os quais a filosofia da linguagem e as teorias hermenêuticas contemporâneas não têm mais segredos, e os das novas faculdades recentemente estabelecidas em várias cidades da província.
Ao lado destes mundos oficiais, há aqueles das comunidades sufistas e neosufistas, que mostram uma diferença extrema de sensibilidade, desde os "pietistas", como o movimento dos jovens a que pertenciam os que descrevi acima, até os naqshbandi, que estão na origem do islamismo político na Turquia. Quanto a Rumi, fundador dos "dervixes rodopiantes", tornou-se quase um herói nacional, tanto para os crentes de diferentes naturezas, como para os muçulmanos pós-modernos, laicos, em busca de espiritualidade.
Muçulmano: potencial terrorista ou irmão da humanidade?
Quando volto para Verviers, trinta anos mais tarde, já não reconheço a pequena cidade tranquila da minha infância. Vejo uma população cheia de cores, sinais de lojas e cartazes em língua turca, ouço um adolescente da minha família dizer: "na escola, como segunda língua, escolhi o alemão, para ficar junto com os brancos". Fui convidado a dar uma palestra e compartilhar minha experiência para “viver juntos". Do lado deles, as mesquitas organizam jornadas com as portas abertas, em vista de "superar os preconceitos e fortalecer os laços", numa cidade que agora hospeda o maior Centro Islâmico da Bélgica.
Esta pequena cidade da província está ligada também, a contragosto, à macro história: em janeiro de 2015, ela foi cenário da operação antiterrorista, durante a qual, foram mortas duas pessoas, que preparavam um atentado, apenas regressadas da Síria. Quando, pouco antes, preparava-me para uma conferência numa cidade próxima, juntamente com um professor de religião islâmica, de origem marroquina, este confidenciou-me de como era difícil para ele viver na Bélgica, como muçulmano, porque sempre se sentia na defensiva, como se fosse obrigado a responder por todos os fatos e gestos feitos pelos muçulmanos, em todo o mundo, especialmente os mais violentos.
Guerra e terrorismo atingem numerosas áreas do globo, mas seu húmus é frequentemente local, e as vítimas são, em sua maioria, muçulmanas, embora o peso dado, pela mídia, à morte de muçulmanos e não-muçulmanos vítimas é, muitas vezes, bem diferente. É uma realidade, esta, que exige uma análise diferenciada, de acordo com as áreas envolvidas, tornando possível compreender quais são as dinâmicas locais que geram a violência e contra quem, qual é a sua afiliação, sem simplificar excessivamente fenômenos em andamento. Isso não impede que, em vez de colocar a cabeça na areia e dizer "este não é o verdadeiro Islã", os pensadores e políticos muçulmanos tenham a coragem de enfrentar a situação, e fazer um exame de consciência; porque, queiramos ou não, "o Islã é também isso".
Possa a situação atual fazer nascer um "nunca mais", enraizado em instituições justas, para todos e para todas, com pensamento renovado. Por outro lado, quem vive com os muçulmanos, especialmente nos países em que são minoria, é chamado a superar o medo, o desprezo e as generalizações injustas. Podem assim encontrá-los como homens e mulheres, de diferentes costumes, segundo as regiões do mundo, que muitas vezes sofrem mais do que os outros a situação que, no momento que estou escrevendo, é o foco das notícias; sem negar, contudo, o sofrimento vivido pelos não muçulmanos, em outros países envolvidos em conflitos maiores, que são, de fato, eliminados de inteiras regiões do mundo.
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Bélgica, Egito, Turquia: itinerário jesuíta e o encontro com o Islã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU