América Latina: fim de ciclo?

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

24 Novembro 2015

Triste vitória conservadora na Argentina expõe debilidades de projeto político que marcou a região. Mas não é o fim do mundo – e talvez obrigue esquerda a saudável reinvenção…

O artigo é de Alejandro Mantilla Q, no Colombia Info, publicado por Outras Palavras, 23-11-2015. A tradução é de Antonio Martins.

Eis o artigo.
 
A vitória de Maurício Macri nas eleições presidenciais de ontem, na Argentina, parece confirmar uma tese formulada por intelectuais latinoamericanos como Maristella Svampa e Raul Zibechi: assistimos ao fim do ciclo de ascendo dos governos progressistas em nossa América.

A tese do fim de ciclo poderia ser demonstrada por cinco tendências complementares: dificuldades governamentais, guinadas à direita, tendências à moderação, distância em relação aos movimentos sociais e um panorama internacional adverso. A saber:

•    Os governos da Venezuela e do Brasil atravessam um momento difícil. A ausência de liderança de Hugo Chávez soma-se à queda dos preços do petróleo e à sabotagem imperialista permanente contra a economia bolivariana. No Brasil, o governo de Dilma Rousseff atinge recordes de impopularidade, derivada de escândalos graves de corrupção, enquanto no Parlamento cresce uma oposição ultraconservadora.

•    Na Argentina, a vitória de Macri representa uma guinada clara à direita e a volta a um governo abertamente neoliberal. Vale recordar que os chamados “golpes de Estado institucionais” em Honduras e no Paraguai abriram, há alguns anos, uma larga onda de giros à direita na região.

•    No Uruguai, constata-se a moderação da Frente Ampla, após o fim do período de Mujica e o retorno de Tabaré Vázquez ao poder, enquanto o governo de Dilma mantém, no Brasil, um ministro da Fazenda neoliberal, contrariando as recomendações da maioria de seu partido.

•    Na Bolívia e no Equador, Evo Morales e Rafael Correa têm ampla margem de governabilidade, mas há um crescente descontentamento de importantes movimentos sociais com suas política – em especial, setores chaves dos povos indígenas. Somam-se a isso alguns retrocessos nas eleições regionais mais recentes. No Equador, a Aliança País, de Correa, perdeu as prefeituras de cidades chaves, como Quito, Guayaquil e Cuenca. Na Bolívia, ocorreu o mesmo em El Alto e Cochabamba.

•    A redução dos preços das commodities, a desaceleração da economia chinesa e o estancamento do comércio global sugerem dificuldades econômicas para a região, em especial para os governos progressistas que abraçaram a alternativa do extrativismo.

Conquistas e misérias dos governos progressistas:

Os governos progressistas realmente existentes alcançaram vitórias populares cruciais, nos últimos 16 anos. Conseguiram derrotar as oligarquias tradicionais, limitaram a influência dos estados Unidos na região, criaram novos cenários de integração a partir do Sul, promoveram programas sociais que reduziram a pobreza em seus países e deram os primeiros passos para enfrentar a hegenonia liberal globalizada. Mas sua conquista mais significativa foi simbólica: graças a eles, o fantasma da esquerda radical voltou a caminhar pelo continente; a tentativa de demonizar o “castro-chavismo”, tão comum entre a direitas locais, é sintoma do medo que os poderes políticos traducionais sentem, diante de um panorama regional pontilhado por governos de esquerda.

Apesar disso, e sem esquecer das diferenças, tais governos mostraram zonas cinzentas, limitações e retrocessos. Embora tenham impulsionado programas orientados ao bem-estar dos setores empobrecidos, não alcançaram uma substantiva redistribuição da riquena em suas sociedades.

Em segundo lugar, ao promoverem projetos extrativistas geraram resistência social e graves danos ambientais, em territórios ecologicamente sensíveis e em um contexto global marcado pema mudança climática. A aposta no extrativismo permitiu-lhes obter recursos para seus programas sociais sem apelar para políticas redistributivas da riqueza, que golpeassem de maneira decisiva os grandes capitalistas nacionais.
 
Em terceiro lugar, vários destes governos substituíram os empréstimos junto ao FMI, condicionados a ajustes neoliberais, por acordos com o governo chinês, condicionados a projetos extrativistas. Ao fazê-lo, substituíram a influência imperial norte-americana pelo ascenso do novo imperialismo chinês.

O que foi dito acima prefigura um quarto ponto. Persistem as economias rentistas dependentes das commodities e a dificuldade de gerar novas dinâmicas produtivas e inovação em políticas de circulação, distribuição e consumo que apontem efetivamente a um anticapitalismo possível.

Em quinto lugar, descobrimos que vários governos progressistas – em especial os do Equador, Nicarágua e Bolívia – têm sido curiosamente conservadores em assuntos com os direitos das mulheres, dos jovens, e da diversidade sexual. Somam-se graves episódios de corrupção, como se percebe especialmente no caso brasileiro.

Um ponto chave a examinar é a matriz politica gerada nestes anos. Apesar da riqueza dos processos constituintes na Venezuela, Bolívia e Equador, na maioria dos governos de esquerda vigorou uma matriz marcada pelo presidencialismo e o populismo. Ela privilegiou as construções políticas a partir de cima e do Estado, em relação à construção a partir dos movimentos sociais e organizações populares – com a exceção da animadora experiência das comunas venezuelanas, incentivadas pelo governo bolivariano.

O presidencialismo acentuado dos governos progressistas tornou vulneráveis seus processos de transformação. Por um lado, porque a ausência dos dirigentes carismáticos gera uma crise de liderança difícil de superar – como ocorre na Venezuela. Ou então, porque uma possível sucessão não garante a continuidade do processo, como vemos no Uruguai ou como teria ocorrido na Argentina, em caso de uma vitória de Scioli. Em alguns casos, este presidencialismo conviveu com episódios autoritários, como se evidencia nos casos equatoriano e nicaraguenses, ou nos recentes episódios de ação do governo boliviano contra setores do movimento ambientalista.

Compreender o fim de ciclo

Apesar do cenário adverso e das críticas bem fundadas aos governos de esquerda latinoamaericanos, o panorama da região e a vitória do neoliberalismo na Argentina não configuram uma derrota histórica de larga duração – mas uma mudança temporária na correlação de forças.

Nos últimos anos, a esquerda argentina – em especial, a que se agrupou na Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT), ou em organizações populares como a Frente Popular Dario Santillan, ou Pátria Grante – alcançou importantes avanços organizativos. Embora a vitória de Macri seja um grave retrocesso, também poderia abrir um ciclo de lutas dos setores populares, que certamente irão mobilizar-se para rechaçar seu programa de governo. Algo similar pode ser dito no caso venezuelano: ainda que surja um resultado eleitoral desfavorável para o chavismo em dezembro, seu tecido popular tem a maior capacidade organizativa e de mobilização na América do Sul.

A derrota do peronismo argentino não é a queda do Muro de Berlim de nossa geração. No fim dos anos 1980, sucederam-se vários golpes políticos, que paralisaram a esquerda global, configurando uma época histórica de derrota pra os esforços de emancipação. Em nossa época, o cenário é muito distinto. Exceto a crise do governo Dilma Rousseff, cujo futuro é incerto, em nenhum outro país avizinha-se, em curto prazo, uma derrota similar à que sofreu o peronismo argentino. Ou seja, pode-se compreender o fim de ciclo como a interrupção da etapa de ascenso de governos progressistas e início de uma etapa que exigirá novas lutas e antagonismos.

Mesmo que os analistas da velha mídia esqueçam disso, os governos progressistas em nossa América não tiveram origem nas respectivas vitórias eleitorais, mas em experiências insurrecionais e organizativas que abriram caminho para a onda democrática que varreu a região. Não podemos esquecer a frustrada rebelião militar encabeçada por Chávez, as revoltas populares argentinas do início do século, as guerras pela água na Bolívia, as sucessivas derrubadas de governos no Equador, a paciente reconstrução de organizações de massa operárias e camponesas no Brasil após a ditadura, ou a persistência do imaginário sandinista na Nicarágua. Aqui situa-se a verdadeira origem dos governos progressistas.

Das possibilidades organizativas e de ação do movimento popular latinoamericano dependerá a consolidação ou não do “fim de ciclo” progressistas na região. Desta instância também dependerá a correção do rumo programático e político e das esquerdas no continente.

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

América Latina: fim de ciclo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU