Por: Jonas | 02 Junho 2015
“Quase 20 mil professores, servidores públicos e alunos presenciaram o dia em que a democracia morreu no Paraná. Ficou evidente que tudo que o Beto Richa e seus aliados desejaram era aprovar aquele confisco da previdência à custa de sangue inocente”, escreve Jani Moreira, professora do Departamento de Teoria e Prática da Educação (UEM), a respeito da repressão e violência sofrida pelos professores e simpatizantes na capital paranaense, no final de abril. O relato é publicado pela Revista Espaço Acadêmico, 30-05-2015.
Fonte: https://goo.gl/cZ1Tjd |
Eis o relato.
Hoje faz um mês. Não tem como esquecer aquele 29 de abril de 2015, o Dia do Massacre no Centro Cívico de Curitiba.
Eu estava em pé no gramado, embaixo das árvores ali na Praça Nossa Senhora de Salete em Curitiba, numa roda de conversa com cinco colegas professores da UEM. Me lembro que olhei no celular e já era 14h35. Apesar do som amedrontador dos dois helicópteros que sobrevoavam o local e da maciça presença de todos os tipos de policiais com seus mais diversos uniformes e armamentos, tudo parecia tranquilo com a nossa mobilização democrática e organizada por nossos sindicatos, pela classe trabalhadora. Havia sim a possibilidade de ocuparmos a ALEP para que aquele terrível projeto de lei não fosse aprovado. Eu desejava isso! Ocupar a ALEP garantiria mais um tempo de diálogo e de negociações com o governo, então era a nossa única saída democrática para aquele dia de votação.
A assembleia dos deputados estaduais já estava a ocorrer na ALEP e tudo indicava uma votação a favor da austera proposta do governo. Confesso que um pouco de apreensão começou a pairar no ar, já que no dia 28 de abril havíamos experimentado um tumulto às custas de spray de pimenta, gás lacrimogêneo, cacetadas e água jorrando em alguns professores e servidores públicos. Tudo porque a PM e sua tropa de choque não queria que o carro de som da APP Sindicato entrasse na Praça. Veja bem: eu disse “praça”! Então, dentro de mim, ficava uma sensação de que talvez veríamos a mesma cena naquela tarde do dia 29.
De repente, escuto barulhos de explosões de bombas e já avisto uma multidão vindo correndo para nossa direção. A única saída era correr ou ficar ali parada sendo arrastada pela multidão. Então, corri e parei na primeira parede embaixo de uma marquise, uns 2km do prédio da ALEP. Nuvens de fumaça tomaram conta do cenário, misturada aos gritos de pânico, com professores, alunos e servidores correndo de todos os lados para todos os lados.
Um grupo de aproximadamente seis mulheres, que eu nem conhecia, se escondeu nesse mesmo canto da parede. E quando percebi, eu me vi ali com elas abraçadas. Umas choravam, tremiam, outras gritavam, eu enviava áudios para meus colegas da UEM pelo WhatsApp… A sensação era de que a qualquer hora morreríamos. Eu só pensava que tinha que voltar viva porque minhas filhas precisavam de mim (Choro…). Avistei pessoas caídas no chão, algumas desmaiadas sendo socorridas por outras. Olhei à frente e vi um garoto com uniforme do Colégio Estadual do Paraná tendo ataque epilético. Mais adiante, duas pessoas vomitando. Várias pessoas sendo carregadas por outras, pelos braços e pernas. Eu não sabia se ajudava, se corria, se parava. Alguns ficavam inertes com dificuldades respiratórias. E mais bombas, mais gases e fumaças que faziam os nossos olhos arderem e provocavam queimações na faringe e traqueia.
A sensação era de querer água, mas onde achar água naquela hora? Ao mesmo tempo, uma indignação crescia dentro de mim. Ficava a me questionar: O que é isso? Como pode? Estou vivendo aqui a ditadura militar, acabou o estado democrático de direito no Paraná… Por que fazer isso com os professores? E as bombas, as nuvens de fumaças, a água jorrando no povo continuavam; sem pausa. O som de guerra era alto. O meu coração batia forte, palpitava e eu temia até mesmo não aguentar.
Os dois helicópteros que sobrevoavam o local aumentaram a sua velocidade e do alto atiravam os gases. Até que depois de quase uma hora de bombas, cacetadas, gases… eis que um dos helicópteros atira lá de cima uma de suas granadas de gases, que caiu aproximadamente 01 metro de distância de mim. Eu não acreditei… Estava longe do prédio da ALEP, uns 4 km de distância. Qual era o motivo daquele gás? Sai correndo sem enxergar direito porque na hora é incontrolável e os olhos se fecham e lacrimejam de forma incontrolada. O único objetivo daquele massacre que não se cessava era provocar mais desespero e afligir com as vidas ali presentes. Já estando bem longe da ALEP, quando tentávamos nos aproximar aos arredores da praça, os policiais atacavam e mantinham o disparo de suas armas quase letais. Foram aproximadamente três horas de pânico.
Um certo momento, resolvi descer e ficar no portão da Prefeitura de Curitiba, perto dos meus colegas, perto do carro de som para ouvir melhor os informes e acompanhar o que ocorria na assembleia, enquanto a guerra continuava lá encima aos arredores da ALEP. Ao mesmo tempo, eu estava conectada aos colegas de Maringá via Internet. Enquanto eu vivia aquele massacre, eles me informavam as drásticas notícias da assembleia que continuavam lá dentro da ALEP.
Enquanto eu via vidas chegando carregadas para dentro da prefeitura, pessoas chorando, sem poder andar e ensanguentadas, lia informes bombásticos pelo WhatsApp de que o Deputado Luiz Claudio Romanelli (PMDB) afirmou “[…] não estamos falando de professor que está ali fora, porque é black bloc que está lá fora atacando a polícia. É black bloc, sim, estava vendo lá. Não tem professor.” Enquanto que o Deputado Prof. Lemos, solicitava que suspendesse a sessão. E lá pelas tantas, com muitos feridos, sem ainda saber ao certo quantos, com a sensação de que até mortos poderíamos ter no local, sou informada novamente pelo WhatsApp que o Presidente da ALEP, Deputado Ademar Traiano (PSDB), diz na sessão “Por favor! A Assembleia não está sendo invadida, não tem bomba na Assembleia, a Sessão tem que continuar.”
Era um massacre externo e um massacre interno que ocorria ali naquele dia, nas nossas vidas. Quase 20 mil professores, servidores públicos e alunos presenciaram o dia em que a democracia morreu no Paraná. Ficou evidente que tudo que o Beto Richa e seus aliados desejaram era aprovar aquele confisco da previdência à custa de sangue inocente.
Após tudo vivido e sofrido, voltei para casa com um nó na garganta, dores no corpo, com sons na lembrança, imagens na mente e muita revolta. Uma sensação de incapacidade mesclou-se com necessidade e coragem ardente de lutar pela valorização da minha profissão. (Choro…) Chamei minhas duas filhas contei à elas onde a mamãe estava e tudo o que a mamãe viveu, com riqueza de detalhes. Ao final, disse: A mamãe estava lá para lutar pelo nosso futuro. (Choro…)
Levei um mês para registrar essas palavras e encerro o texto em lágrimas, pois confesso, que eu estava com bloqueios para escrever essa experiência… As mãos trêmulas e o desespero naquele dia não me permitiram registrar muitas fotos, não filmei nem um vídeo, mas as imagens estão vivas em mim e ficarão para sempre. Concordo que nesse dia 29 de abril de 2015 “Não houve vencidos nem vencedores. Perdeu a democracia do Paraná” (Deputado Nelson Luersen do PDT).
Encerro esse relato com a certeza de que viver, estar e fazer a luta é melhor do que apenas ver a luta passar.
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Eu vivi o dia do Massacre no Paraná - Instituto Humanitas Unisinos - IHU